Que é, pois, o Realismo? É uma base filosófica para todas as concepções do espírito – uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim considerado, o Realismo deixa de ser, como alguns podiam falsamente supor, um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico. Isso não é Realismo: é o seu falseamento. É dar-nos a forma pela essência, o processo pela doutrina. O Realismo é bem outra coisa: é a negação da arte pela arte, é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o Realismo é uma reacção contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento, o Realismo é a anatomia do carácter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.
Assim fala Eça de Queirós, nascido em 1845 na Póvoa do Varzim e falecido em 1900, em Paris. É um dos mais importantes escritores lusos. Foi autor, entre outros romances de reconhecida importância, de Os Maias e O Crime do Padre Amaro, considerados por muitos os melhores romances realistas portugueses do século XIX.
É filho de José Maria Teixeira de Queirós, nascido no Rio de Janeiro em 1820, e de Carolina Augusta Pereira d’Eça, nascida em Monção em 1826. O pai, magistrado e par do reino, convivia regularmente com Camilo Castelo Branco quando este vinha à Póvoa.
Uma das teses para tentar justificar o facto dos pais do escritor não se terem casado antes do nascimento deste sustenta que Carolina Augusta Pereira d’Eça não teria obtido o necessário consentimento da mãe, já viúva do coronel José Pereira d’Eça. De facto, seis dias após a morte da avó que a isso se oporia, casaram-se os pais de Eça de Queirós, quando o menino tinha quase quatro anos.
Eça, por sua vez, apresenta episódios incestuosos em criança relatados no diário de sua prima. Por via dessas contingências foi entregue a uma ama, aos cuidados de quem ficou até passar para Aveiro, para casa da sua avó paterna. Nessa altura, foi internado no Colégio da Lapa, no Porto, de onde saiu em 1861, com dezasseis anos, para a Universidade de Coimbra, onde estudou Direito.
O pai era também formado em Direito por Coimbra. Foi juiz instrutor do célebre processo de Camilo Castelo Branco, juiz da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, presidente do Tribunal do Comércio, deputado por Aveiro, fidalgo cavaleiro da Casa Real, par do Reino e do Conselho de Sua Majestade. Foi ainda escritor e poeta.
Em Coimbra, Eça foi amigo de Antero de Quental. Os seus primeiros trabalhos, publicados na revista Gazeta de Portugal, foram depois coligidos em livro, publicado postumamente com o título Prosas Bárbaras.
Em 1866, o autor terminou a Licenciatura em Direito na Universidade de Coimbra e passou a viver em Lisboa, exercendo a advocacia e o jornalismo. Foi director do periódico O Distrito de Évora e colaborou noutras publicações. Mais tarde fundaria a Revista de Portugal.
Entre 1869 e 1870, fez uma viagem de seis semanas ao Oriente (de 23 de Outubro de 1869 a 03 de Janeiro de 1870) na companhia de D. Luís de Castro, 5.º conde de Resende e irmão da sua futura mulher, D. Emília de Castro, tendo assistido no Egipto à inauguração do Canal do Suez. Visitaram igualmente a Palestina. Aproveitou as notas de viagem para alguns dos seus trabalhos, sendo o mais notável A Relíquia, publicado em 1887. Em 1871, foi um dos participantes das chamadas Conferências do Casino.
Em 1870, ingressou na Administração Pública, sendo nomeado administrador do concelho de Leiria. Foi enquanto permaneceu nesta cidade que Eça de Queirós escreveu a sua primeira novela realista, O Crime do Padre Amaro, publicada em 1875.
Tendo ingressado na carreira diplomática, em 1873 foi nomeado cônsul de Portugal em Havana. Os anos mais produtivos da sua carreira literária foram passados em Inglaterra, entre 1874 e 1878, durante os quais exerceu o cargo em Newcastle e Bristol. Escreveu então alguns dos seus trabalhos mais importantes. Manteve a sua actividade jornalística, publicando esporadicamente no Diário de Notícias, em Lisboa, a rubrica «Cartas de Inglaterra». Mais tarde, em 1888, seria nomeado cônsul em Paris, ano em que publica Os Maias.
O seu último livro foi A Ilustre Casa de Ramires, sobre um fidalgo do século XIX com problemas para se reconciliar com a grandeza da sua linhagem. É um romance imaginativo, entremeado com capítulos de uma aventura de vingança bárbara que se passa no século XII, escrita por Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista. Esta é uma novela chamada A Torre de D. Ramires, em que antepassados de Gonçalo são retratados como torres de honra sanguínea, que contrastam com a lassidão moral e intelectual deste.
Morre em 16 de Agosto de 1900, na sua casa de Neuilly-sur-Seine, perto de Paris. Teve funeral de Estado, estando sepultado em Santa Cruz do Douro.
A Geração de 70 (Vencidos da Vida)
Formada por Eça de Queirós, Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e Oliveira Martins, representa uma profunda revolução cultural.
Terminado o primeiro Romantismo de Garrett e Herculano, o panorama literário nacional estava reduzido ao ultrarromantismo bucólico de Camilo – decadente, monótono e fatalista. A Geração de 70 veio arrancar dessa modorra de degenerescência romântica não só a literatura mas sobretudo e de uma maneira geral, a cultura portuguesa.
As Três Fases Fundamentais em Eça de Queirós
Fase Romântica (1866-1876)
Inicia-se com os artigos e crónicas mais tarde incluídos em Prosas Bárbaras e termina com uma primeira versão de O Crime do Padre Amaro. Nesta fase, sente-se um escritor jovem e romântico, à procura de influências, sobretudo francesas. Pinta um universo povoado de fantasmas e atmosferas de mistério, numa linguagem lírica e adocicada. As principais obras deste período incluem O Mistério da Estrada de Sintra, As Farpas (em colaboração com Ramalho Ortigão) e Uma Campanha Alegre.
Fase Realista (1880-1888)
Inicia-se com a versão definitiva de O Crime do Padre Amaro e vai estender-se ao longo dessa década até à publicação de Os Maias. Eça adere progressivamente às teorias do Realismo e é atraído pelos valores do Naturalismo. Os romances agora escritos servem os compromissos ideológicos da Geração de 70 e são um retrato, visto por alguns como deformado e incompleto, da sociedade portuguesa da época, construído numa linguagem original, plástica, impregnada das características associadas ao autor. Há também uma deslocação do campo para a cidade. O Primo Basílio documenta a adesão aos ideais do Naturalismo.
Fase Final (1888-1900)
As obras principais neste período são A Correspondência de Fradique Mendes, A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras. O escritor, já em plena maturidade intelectual e artística, ergue uma obra de sentido construtivo, invertendo o percurso pessimista e derrotista da fase anterior. A linguagem sofre idêntica transformação. Antes tendencialmente objectiva, realista, atenta aos pormenores e situações, regressa agora a caminhos próximos do lirismo poético. Tal é visível sobretudo nos Contos.
Essencialmente, trata-se de um fresco caricatural da sociedade portuguesa do século XIX, em forma de crónica de costumes.
Existe uma acção central pertencente ao Naturalismo, recheada de episódios característicos do Realismo.
A acção principal narra a história de uma família ao longo de várias gerações: Caetano da Maia (Antigo Regime), Afonso da Maia (Liberalismo), Pedro da Maia (Ultrarromantismo) e Carlos da Maia (Realismo/Naturalismo).
Ao subtitular o seu romance de «Episódios da Vida Romântica», Eça apontou, desde logo, um objectivo de alcance estrutural e social: a interligação da acção principal com uma sucessão de acontecimentos de âmbito social que proporcionam a radiografia da sociedade lisboeta, e por extensão de Portugal, à época.
Episódios Principais
Jantar no Hotel Central
Objectivos: homenagear o banqueiro Jacob Cohen; proporcionar a Carlos um primeiro contacto com o meio social lisboeta, apresentar a visão crítica de alguns temas (Economia, Literatura, Política); proporcionar a Carlos a visão de Maria Eduarda.
Intervenientes:
– João da Ega (Realismo/Naturalismo)
– Cohen (Finanças)
– Tomás de Alencar (Poeta ultrarromântico)
– Dâmaso Salcede (Novo-Rico Burguês)
– Carlos Da Maia (Observador Crítico)
– Craft (Britânico, Estrangeiro)
Conclusões:
– Falta de personalidade (Alencar e Ega mudam de opinião quando Cohen quer; Dâmaso cuja divisa é «Sou Forte» é o primeiro a defender a fuga em caso de crise);
– Incoerência geral (Alencar e Ega discutem até à agressão física e mais tarde abraçam-se como se nada fosse);
– Falta de Cultura e Civismo generalizados nas classes altas (com excepção de Carlos e Craft).
As Corridas de Cavalos (Comédia Social)
Objectivos: Novo contacto de Carlos com a Sociedade, incluindo o Rei; olhar crítico de Carlos sobre essa sociedade; cosmopolitismo falhado.
Caricatura: O hipódromo parecia um palanque de arraial, as pessoas não sabiam ocupar os lugares, as senhoras não se sabiam vestir, o bufete tinha terrível aspecto, as corridas terminam em pancadaria ou no caos.
Conclusões:
– Fracasso Total
– Verniz civilizacional estalado
– Sorte de Carlos ao jogo prenuncia a desgraça futura.
Jantar dos Gouvarinhos
Objectivos: Reunir as classes altas e a camada dirigente; demonstrar a ignorância das mesmas.
Conclusões: Superficialidade e incapacidade de diálogo por manifesta falta de cultura.
A Imprensa
Objectivos: Analisar a situação do jornalismo e confrontar o nível deste com a situação do país.
Conclusões: Baixo nível, intriga suja, compadrio político, Jornais-País.
O Sarau no Teatro da Trindade
Objectivos: Ajuda às vítimas das inundações; temas caros à Sociedade (caridade e oratória); voltar a criticar o Ultrarromantismo.
Conclusões: Classes dirigentes mais uma vez alheadas da realidade, deformadas pelo excesso de sentimentalismo; Oratória-País.
A intriga principal tem uma estrutura trágica, assemelhando-se o seu desenvolvimento ao de uma tragédia clássica. Três momentos essenciais: a peripécia (revelações casuais de Guimarães a Ega), o reconhecimento (mudança no relacionamento de Carlos e Maria Eduarda) e a catástrofe (morte de Afonso e separação dos amantes).
Personagens
Personagens Planas/Tipo:
Eusebiozinho – Educação retrógrada
Alencar – Ultrarromantismo
Conde de Gouvarinho – Político incompetente
Sousa Neto – Administração pública
Palma «Cavalão» – Jornalismo corrupto
Dâmaso Salcede – Novo-Riquismo
Steinbroken – Diplomacia inútil
Cohen – Alta Finança
Craft – Estrangeiro
Personagens modeladas
Carlos da Maia (protagonista)
Cosmopolitismo, sensualidade, luxo, diletantismo, dandismo; apesar da Educação, falhou devido ao meio onde se instalou – uma sociedade parasita, ociosa, fútil, sem estímulos – e a factores hereditários – fraqueza/cobardia do pai e egoísmo/futilidade/boémia da mãe.
Maria Eduarda
Vítima do meio pernicioso onde passa a infância, adolescência e juventude.
Afonso da Maia
Símbolo do velho Portugal do Liberalismo que contrasta com o novo, da Regeneração, cheio de defeitos.
João da Ega
Projecção literária de Eça de Queirós; contraditório (romântico, mas progressista); diletante, autor de inúmeros projectos inacabados.
Pedro da Maia
Prolongamento físico e temperamental da mãe; vítima do meio lisboeta, da educação retrógrada; falha no casamento e na vida.
Maria Monforte
Vítima da literatura romântica, leva vida promiscua primeiro e miserável depois.
Enredo
Tudo começa com a descrição da casa – O Ramalhete – em Lisboa, mas que nada tem de fresco ou de campestre. O nome vem-lhe de um painel de azulejos com um ramo de girassóis, colocado onde deveria estar a pedra de armas.
Afonso da Maia casou-se com Maria Eduarda Runa e deste casamento resultou apenas um filho: Pedro da Maia. Este, que teve uma educação tipicamente romântica, era muito ligado à mãe e após a sua morte ficou inconsolável, tendo só recuperado quando conheceu uma mulher chamada Maria Monforte, com quem casou, apesar de Afonso não concordar. Deste casamento resultaram dois filhos: Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Algum tempo depois, Maria Monforte apaixona-se por Tancredo (um italiano que Pedro fere acidentalmente e acolhe em sua casa) e foge com ele para Itália, levando consigo a filha, Maria Eduarda. Quando sabe disto, Pedro, destroçado, vai com Carlos para casa de Afonso, onde comete suicídio. Carlos fica na casa do avô, onde é educado à inglesa (tal como Afonso gostaria que Pedro tivesse sido criado).
Passam-se alguns anos. Carlos torna-se médico e abre um consultório. Mais tarde, conhece uma mulher no Hotel Central, num jantar organizado por João da Ega (seu amigo dos tempos de Coimbra) em homenagem a Cohen. Essa mulher, vem depois a saber-se, chama-se Maria Eduarda. Os dois apaixonam-se. Carlos crê que a sua irmã morreu. Maria Eduarda crê que apenas teve uma irmãzinha que morreu em Londres. Os dois namoram em segredo. Carlos acaba depois por descobrir que Maria lhe mentiu sobre o seu passado – podiam ter-se zangado definitivamente. Guimarães vai falar com João de Ega e dá-lhe uma caixa que diz ser para Carlos ou para a sua irmã Maria Eduarda. Ega descobre tudo, conta a Vilaça (procurador da família Maia) e este acaba por contar a Carlos o incesto que anda a cometer. Afonso da Maia morre de desgosto.
Há ainda a abordagem científica. O romance foi escrito numa altura em que as ciências floresciam. Eça joga nele com o peso da hereditariedade (Carlos teria herdado da avó paterna e do próprio pai o carácter fraco, e da mãe a tendência para o desequilíbrio amoroso), e da acção do meio envolvente sobre o indivíduo (Carlos fracassa, apesar de todas as condicionantes que tem a seu favor, porque o meio envolvente, a alta burguesia lisboeta, para tal o empurra). A psicologia dava os seus primeiros passos – é assim que Carlos, mesmo sabendo que a mulher que ama é sua irmã, não deixa de a desejar, uma vez que não basta que lho digam para que ele como tal a considere.
O romance termina quando Carlos, passados dez anos, regressa a Lisboa de visita. O final é ambíguo, tal como a acção de Carlos e João da Ega ao longo da narrativa: embora ambos afirmem que «não vale a pena correr para nada» e que tudo na vida é ilusão e sofrimento, acabam por correr desesperadamente para apanhar um transporte público que os leve a um jantar para o qual estão atrasados.
Ainda Eça, a propósito da obra:
Em Portugal há só um homem – que é sempre o mesmo, sob a forma de dandy, ou de padre, ou de escriturário ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, ‘deixa-te ir’, sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto e é o português verdadeiro. É o português que tem feito esse Portugal que vemos.
O que domina como objecto de reflexão é Portugal, personagem oculta por detrás das personagens visíveis. Um país aparentemente sem remédio, que as elites não são capazes de salvar.
O niilismo de Eça é bem visível n’Os Maias. Este é um romance sobre a decadência, a história simbólica da ruína de uma família que, a seu modo, na sucessão das suas gerações, desde o Antigo Regime até ao Portugal contemporâneo de Eça, representa o destino e até os períodos da História de Portugal. A história de uma família é assim a história de uma degenerescência.
Se a estirpe da família Maia se perde, que dizer então do país? Daí a importância das discussões no Hotel Central sobre os destinos nacionais e sobre a necessária invasão espanhola.
Se o melhor produto da melhor educação europeia dá como resultado uma alma frouxa, de coração mole e até demasiado egoísta – Carlos prefere deixar morrer o avô a privar-se de uma noite de amor com aquela que já sabe ser sua irmã – que esperar então do resto da massa do país, criada nos saguões da Baixa, enxague, amarela, flácida e em tudo artificial?
O que a obra pretende, em suma, é mostrar uma comunidade que perdeu precisamente essa consciência da sua própria dignidade, restando-lhe apenas morrer, apagar-se do firmamento das nações vivas e fortes, ou continuar a rir-se dolorosamente de si mesma.