Este Ensaio Digital foi um de 5 publicados por Royce Alvet Joaquin num site do autor Catalão na Internet, entre Abril e Outubro de 2001. Joaquin nasceu em 1902 em Barcelona e foi um lutador da liberdade pela palavra, tendo participado na guerra civil espanhola como repórter. Morreu em 2002, dois meses antes de completar 100 anos de vida.
13:23 do dia 12 de Maio de 1921.
Eu saia do café Lant, numa rua paralela qualquer do Boulevard Saint-Michel quando a vi, a acender um cigarro, com os lábios grossos presos por momentos num gesto vago. Sei as horas porque me apeteceu olhar para o relógio barato, senti no estômago que era um daqueles momentos que deve ficar marcado no tempo. Não sabia quem ela era então, mas não senti vontade de o desconhecer por muito mais tempo. Estava frio e ela sugou o cigarro com prazer, passou as mãos com luvas pelo vestido justo, firmes contra o corpo magro e desviou o olhar por debaixo do chapéu escarlate escuro.
Começou a caminhar para longe. Eu tinha um compromisso importante, mas o que era verdadeiramente mais importante – o compromisso com um homem de meia idade que me prometia um emprego num jornal revolucionário ou o corpo daquela mulher deslumbrante que me acendia as entranhas de desejo?
Segui-a sem pensar. Estava cada vez mais frio. Eu estava a tremer enquanto caminhava e quase não sentia as pernas, muito menos os passos nos meus sapatos baratos – como o meu relógio. Passos após passos. Passámos por artistas que recolhiam as telas, algumas já manchadas, alguém gritava em Polaco e eu parei por um segundo por achar a língua estranhamente erótica, sem saber bem porquê. Quase a perdi com o olhar, a um virar de esquina, senti que ela olhava para trás percebendo-me, mas que mesmo assim me provocava. Acelerei o passo e apertei o casaco contra o frio gélido, começara a chover, uma chuva lenta e pesada, e eu fiquei deslumbrado a olhar para a água a cair nas pedras negras da rua escura, punham-se as nuvens em frente do sol antes radioso. Ela parou perto de uma casa, o cigarro no fim, deitado ao chão e pisado pelo calcanhar do salto alto direito. Olhou para mim, mas o seu olhar passou por mim, até ao fim da rua. Subiu. Desapareceu.
Fiquei sem saber o que fazer e fui forçado a continuar a andar, até chegar ao defunto corpo do cigarro apagado pela violência dos seus sapatos negros. Fiquei a olhar para ele e depois para a porta, de madeira barata – como os meus sapatos e o meu relógio. A porta estava entreaberta, não sei se por acaso. Entrei sem pensar, sacudindo a chuva do meu casaco, mas não do meu cabelo. Fechei os olhos e tentei seguir o seu perfume. Agarrei-me ao corrimão da escada velha e subi um, dois, três andares, até uma porta, outra, entreaberta… de dentro vinha o mesmo perfume: um acaso de romance perpetrado por essências selvagens de flores e cânhamo, com um silvo deliberado de absinto.
Molhei os lábios e deitei os olhos ao chão, senti-me possuído por uma vontade que tudo eliminaria para se consumir a si mesma, de qualquer modo, por qualquer preço. Vi-a na sala, quando pousava o chapéu e me olhava de soslaio, com o cabelo preso e os grandes olhos negros, passando as mãos com as luvas no corpo magro e depois ela caminhou pelo invisível até ao quarto principal. Lá fora a chuva intensificou-se, tornou-se monstruosamente ruidosa, trovejavam relâmpagos, ouviam-se os carros a fugir, passos de sapatos mais caros do que os meus, porque os meus não faziam barulho no andar. Eu estava no corredor, com o casaco aberto, sufocante, com a respiração presa, um calor incompreensível a subir-me das entranhas, sem tirar os olhos da porta do quarto dela, a adivinhar também a porta de entrada entreaberta. Ela apareceu com a luz de um flash que se intrometia pela vidraça pobre – como o meu casaco. Tinha libertado o cabelo negro e estava nua da cintura para cima, com um cinto de ligas negro, os mesmos saltos altos, matadores de cigarros. Não lhe disse nada. Caminhei largando o casaco pelo chão do corredor.
Beijei-lhe o pescoço como um animal, devorei-lhe o perfume inspirando-a profundamente e ceguei-a junto a mim, cingindo-a pela cintura fina, sentindo o seu sorriso malicioso. disse-lhe num sussurro de voz rouca: Sei o que quero e o que quero és tu e o teu corpo e a tua alma. Não vou parar enquanto não te consumir.
Desse dia em diante, persegui-a todos os dias. Ela era a minha doença, a minha razão de viver e nessa febre eu consumia todas as horas e todos os minutos. Ela era a minha doença e a destruição do meu ser.
Ainda hoje a persigo pelos dias de chuva, com medo de enfim ela ser minha, com medo de enfim me curar do seu perturbante feitiço… ela que me fez adoecer com o seu corpo em desejo, movimentos subtis em cristal.