Autores Argentinos – Júlio Cortázar

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Viveu entre 1914 e 1984. Filho de argentinos, nasceu na embaixada daquele país em Ixelles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, e voltou à sua terra natal aos quatro anos de idade. Os pais separaram-se posteriormente e passou a ser criado pela mãe, uma tia e uma avó. Passou a maior parte da sua infância em Banfield, na Argentina, e não era uma criança feliz:

Pasé mi infancia en una bruma de duendes, de elfos, con un sentido del espacio y del tiempo diferente al de los demás.

Cortázar era uma criança bastante doente e passava muito tempo na cama, lendo livros que a mãe seleccionava. Muitos de seus contos são autobiográficos, como Bestiário, Final del JuegoLos Venenos e La Señorita Cora.

Formou-se Professor em Letras em 1935, na Escuela Normal de Profesores Mariano Acosta, e naquela época começou a frequentar lutas de boxe. Em 1938, com uma tiragem de 250 exemplares, editou Presencia, livro de poemas, sob o pseudónimo Júlio Denis. Leccionou em diversas cidades do interior do país, foi professor de Literatura na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional de Cuyo, mas renunciou ao cargo quando Perón assumiu a presidência da Argentina. Empregou-se na Câmara do Livro em Buenos Aires e realizou alguns trabalhos de tradução.

Em 1951, aos 37 anos, por não concordar com a ditadura na Argentina, partiu para Paris, pois recebera uma bolsa do governo francês para ali estudar durante dez meses, e acabou por ficar. Trabalhou durante muitos anos como tradutor da UNESCO e viveria em Paris até à morte. Teve uma relação de amizade com os artistas argentinos Júlio Silva e Luís Tomasello, com os quais realizaria vários projectos. Politicamente, revelou-se um mistério, devido à fragilidade dos rótulos da época, pois para a CIA, tratava-se de um perigoso esquerdista a soldo da KGB, mas esta considerava-o um notório agente do imperialismo a soldo da CIA, e perigoso agitador antissoviético, já que denunciava as prisões em Moscovo dos chamados dissidentes.

Em 1953, Cortázar casou com Aurora Bernárdez, uma tradutora argentina. Viviam em Paris, em condições económicas difíceis, quando surgiu a oportunidade de traduzir a obra completa, em prosa, de Edgar Alan Poe para a Universidad de Puerto Rico. Esse trabalho foi considerado pelos críticos como a melhor tradução da obra do escritor.

Em 1959, saiu o volume Final del Juego. O seu artigo Para Llegar a Lezama Lima foi publicado na revista Union, em Havana. Em 1962, lançou Histórias de Cronópios y de Famas. Em 1963, visitou Cuba enviado pela Casa das Américas, para ser jurado num concurso. Foi a época da intensificação do seu fascínio pela política. Na mesma altura teve um livro traduzido para inglês, e surge o lançamento de Rayuela, o seu grande sucesso, com cinco mil cópias vendidas no primeiro ano. Depois desse período, Cortázar comprometeu-se politicamente com a libertação da América Latina, que estava sob regimes ditatoriais.

Em Novembro de 1970 viajou ao Chile, onde se solidarizou com o governo de Salvador Allende. Em 1971, foi «excomungado» por Fidel Castro, tal como outros escritores, por pedir informações sobre o desaparecimento do poeta Heberto Padilla. Apesar da sua desilusão com a atitude de Castro, continuou a acompanhar a situação política da América Latina.

Em 1973, recebeu o Prémio Médicis pelo seu Libro de Manuel e destinou os respectivos direitos à ajuda dos presos políticos na Argentina. Em 1974, foi membro do Tribunal Bertrand Russell II, reunido em Roma para examinar a situação política na América Latina, em particular as violações dos Direitos Humanos.

Em 1976, viajou para a Costa Rica, onde se encontrou com Sérgio Ramirez e Ernesto Cardenal, e fez uma viagem clandestina até Solentiname, na Nicarágua. Esta viagem marcá-lo-ia para sempre e seria o começo de uma série de visitas a este país.

Em Agosto de 1981 sofreu uma hemorragia gástrica. Em 1983, a democracia regressa à Argentina, e Cortázar fez uma última viagem à sua pátria, onde foi recebido calorosamente pelos seus admiradores, que o paravam na rua e lhe pediam autógrafos, em contraste com a indiferença das autoridades nacionais. Depois de visitar vários amigos, regressou a Paris. Pouco depois foi-lhe outorgada a nacionalidade francesa.

Carol Dunlop, a última esposa, faleceu a 02 de Novembro de 1982, e Cortázar teve uma profunda depressão. Morreu de leucemia em 1984, sendo enterrado no Cemitério de Montparnasse, na mesma campa da mulher. Nesta encontra-se a imagem de um «cronópio», personagem criada pelo escritor.

Em Buenos Aires, a praça situada na intersecção das ruas Serrano e Honduras tem o seu nome. Em 2007, foi dado oficialmente o nome de «Plaza Júlio Cortázar» à pequena praça no extremo ocidental da «Île Saint Louis», onde decorre o conto As Babas do Diabo.

É considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu tempo, mestre do conto curto e da prosa poética, comparável a Jorge Luís Borges e Edgar Alan Poe. Foi o criador de novelas que inauguraram uma nova forma de fazer literatura na América Latina, rompendo os moldes clássicos mediante narrações que escapam da linearidade temporal e onde os personagens adquirem autonomia e profundidade psicológica inéditas.

O seu livro mais conhecido é Rayuela, de 1963, que permite várias leituras orientadas pelo próprio autor.

Cortázar inspirou um grande número de cineastas, entre eles o italiano Michelangelo Antonioni, cujo longa-metragem Blow-up foi baseada no conto As Babas do Diabo (do livro As Armas Secretas).


rayuela_0Escrita em Paris e publicada pela primeira vez em Espanha, a 03 de Outubro de 1963, constitui uma das obras centrais do boom latino-americano.

Trata-se de uma narração introspectiva, em monólogo interior, que narra a história de Horácio Oliveira, o protagonista, de um modo tal que joga com a subjectividade do leitor e apresenta múltiplos finais. Este tipo de obra é normalmente apelidada de «anti-romance», ainda que o próprio Cortázar preferisse denominá-la «contra-romance».

Ainda que o estilo presente ao longo da obra seja muito variado, esta é normalmente considerada uma das primeiras obras surrealistas da literatura argentina. «De certa forma é a experiência de uma vida inteira e a tentativa de transportar isso para a escrita», afirmou Cortázar sobre Rayuela quando interrogado sobre o seu significado.

Com um total de 155 capítulos, o romance pode ser lido de várias formas:

 – Leitura tradicional, sequencialmente do início ao fim.

 – Leitura proposta por Cortázar, sequencialmente desde o primeiro capítulo até ao 56, abdicando do resto.

 – Obedecendo à sequência estabelecida pelo autor na tabela indicativa (que se encontra no início do livro), onde se propõe uma leitura completamente diferente, saltando e alternando capítulos. Tal cronologia, composta por vários elementos estilísticos da colagem, inclui textos de outros autores.

 – Pela ordem «que o leitor desejar», uma possibilidade que Cortázar explorou mais tarde no romance 62/modelo para armar.

Descrever o argumento de Rayuela de um modo linear é, seguramente, uma tarefa redutora que distancia o leitor do verdadeiro sentido da obra, pois exclui desse modo o vasto universo psicológico das personagens e as relações complexas que estes estabelecem com temas como o Amor, a Morte, a Arte, entre outros.

Com isto em mente, segue no entanto um resumo, dividido em três partes.

Primeira parte: «Do lado de lá»

A história decorre em Paris, onde Horácio Oliveira, o protagonista, vagueia pelas pontes da cidade em busca da amante, uma uruguaia chamada Lúcia (mais conhecida ao longo da história por Maga). A relação entre ambos é apaixonada, mas assimétrica: Maga, mulher emotiva, está irremediavelmente apaixonada por Horácio, que é mais analítico e frio, estando por isso mais hesitante num envolvimento emocional. Oliveira aprecia a companhia de Maga, mas é um homem que teve uma educação privilegiada e que adora os debates intelectuais, enquanto Maga, menos culta que ele, marca uma presença discreta.

Ambos se reúnem regularmente com amigos comuns, membros de um grupo conhecido como O Clube da Serpente, nada menos que um círculo de artistas, escritores e músicos, que passam as noites a beber, a ouvir música e a debater sobre arte, literatura, filosofia, arquitectura, entre muitos outros temas. Nestas conversas fazem-se referências frequentes a um escritor de nome Morelli, que professa a necessidade de romper com as formas linguísticas correntes, que considera gastas pelo uso exagerado. O grupo salta de tema em tema com relativa facilidade, mas Maga, que não leu tanto, precisa frequentemente que lhe expliquem os conceitos abordados. A sua forma de ser muito orgânica afasta-a do grupo e revela-se um importante presságio para o distanciamento final. O clube, apesar de tudo, demonstra afecto por Lúcia, mas quase sempre de uma forma condescendente.

Horácio e Maga vivem juntos há algum tempo, quando esta deixa de poder pagar os serviços da educadora do filho, Rocamadour, e se vê obrigada a trazer o bebé para a casa de ambos.

Por um lado, a saúde da criança é muito frágil, imprópria para tolerar o quotidiano daquele apartamento frio e insalubre, mas por outro, a ideia de enviar a criança para um hospital aterroriza a mãe. Tal dilema acaba por provocar uma doença grave no bebé. Neste contexto, Oliveira fica cada vez mais incomodado com a situação, pois nunca aceitou totalmente a ideia de morar com uma criança. Durante uma discussão entre os dois, Horácio deixa subentendido que nada o impede de terminar a relação. Maga cai num pranto. Oliveira sai de rompante, passando-lhe pela cabeça uma visita a Pola, outra amante. Hesita sobre se deve ou não regressar.

Mais tarde, enquanto divaga pelas ruas sem direcção certa, testemunha o atropelamento de um idoso. Um passante afirma que a vítima é um escritor, que vive ali perto. Chega a ambulância para levar o ferido.

Começa a cair uma chuva impertinente. Horácio continua com as suas deambulações e reflexões melancólicas. Fica bastante impressionado com o modo mecânico com que os paramédicos trataram a vítima do atropelamento. Ansioso por encontrar refúgio para o mau tempo, abriga-se à entrada de um teatro e acaba por entrar e ver o concerto de piano anunciado nos panfletos, de uma tal madame Berthe Trepat.

Lá dentro, Oliveira escuta as composições de Trepat, que lhe parecem mal escritas e pior interpretadas. O resto da audiência acaba por sair a meio. Tudo indica que Horácio simpatiza com a mulher, cujo fracasso está em completo e irónico contraste com a sua postura orgulhosa. Propõe acompanhá-la a casa, mas durante o percurso a pé, Trepat fica perturbada com os sucessivos elogios de Horácio, que ela interpreta como sendo uma tentativa de sedução. Perante isto, dá-lhe uma bofetada e Oliveira retira-se, humilhado.

Regressa ao apartamento de Maga, onde dá de caras com um pretendente desta, de seu nome Ossip Gregorovius. Horácio pensa que os dois dormiram juntos na sua ausência, mas na verdade Maga resistiu aos avanços deste novo personagem. Oliveira acaba por sentar-se com ambos, iniciando uma conversa semelhante às do Clube da Serpente, mas desta vez estão constantemente a ser interrompidos por um idoso que vive no piso de cima e que não pára de golpear o chão. No ponto crucial do debate, Oliveira toca em Rocamadour e descobre que o bebé está morto.

Após reflectir sobre a irracionalidade da morte e ponderar no caos que o sucedido irá provocar, Horácio, obedecendo à sua maneira de ser tradicional, decide não comunicar a terrível notícia. Em vez disso, e perante a impertinência do vizinho de cima, sugere a Maga que suba e confronte o sujeito. Assim que esta se retira, conta a Gregorovius o que aconteceu ao bebé. Ambos reflectem sobre as consequências legais. Gregorovius abstém-se de falar no assunto quando Maga regressa.

É nesta altura que aparecem vários amigos do Clube da Serpente. Dois deles, Ronald e Babs, contam que outro membro do grupo, Guy Monod, acaba de tentar suicidar-se. Logo de seguida chega novo elemento, Étienne, e informa que Monod sobreviverá, ainda que esteja em estado grave. Embarcam então numa nova torrente de discussões filosóficas e complexas, durante as quais, em surdina, partilham os detalhes do sucedido. Maga é excluída da conversa, até que finalmente se apercebe que o filho está morto, ao deslocar-se ao quarto para lhe dar um remédio. Entra em histeria, e o caos temido por Oliveira tem por fim início. Maga procura o apoio de Horácio, mas este sente-se sem força ou sem vontade para isso, acabando por permanecer em silêncio antes de finalmente partir.

Dá-se o velório do bebé. Todos os membros do clube marcam presença, com excepção de Horácio, que mais uma vez prefere divagar sem rumo pelas ruas de Paris. Quando por fim regressa ao apartamento, passaram-se vários dias, e Maga desapareceu. Gregorovius é o novo inquilino. Este dá a entender que Maga pode ter regressado à sua Montevideo natal, mas Horácio duvida da capacidade financeira desta para encetar a viagem. Mostra-se desinteressado, mas no fundo suspeita que ela pode ter cometido suicídio após o funeral. Uma terceira possibilidade é que tenha ido visitar Pola, a quem foi diagnosticado um cancro de mama.

Enquanto caminha pelas margens do Sena, Horácio encontra uma indigente das relações de Maga, ainda que não se recorde bem de quando foi o último encontro. Como não tem para onde ir, senta-se e fala uns minutos com a sem-abrigo. Segundo se lembra, a mulher chama-se Emanuelle. Esta propõe-lhe que partilhem a compra e o consumo de uma garrafa de vinho, pelo que acabam ambos ébrios debaixo de uma ponte. Emanuelle tenta fazer-lhe sexo oral, mas a polícia aparece subitamente e prende-os.

São levados para a esquadra, juntamente com dois homossexuais. Durante o percurso, Oliveira continua a reflectir sobre a sua busca por unificação e a sua relação com Maga. Os homossexuais, por sua vez, conversam sobre um caleidoscópio. Concluem que apenas debaixo da luz certa se podem identificar os «padrões mais belos».

A primeira parte do livro termina com a suspeita de Oliveira, segundo a qual o céu é algo que não está por cima da terra, mas à sua superfície ainda que a alguma distância, podendo cada um de nós aproximar-se dele do mesmo modo que as crianças jogam ao jogo da macaca (Rayuela).

Segunda parte: «Do lado de cá»

A acção transfere-se agora para a Argentina, iniciando-se com uma breve introdução na qual se fala de Manolo Traveler, um amigo de infância de Horácio que vive em Buenos Aires com a sua esposa Talita. Traveler é descrito como um tipo inquieto, apesar de ter um casamento estável. Este tem um mau pressentimento quando Gekrepten, uma antiga namorada de Horácio, o informa que o mesmo, desaparecido há anos, está de regresso. Apesar do desconforto, Talita e ele aparecem no porto para dar as boas-vindas a Horácio, que confunde momentaneamente a esposa do amigo com Maga. Oliveira recupera depois alguma ordem mental quando vai viver com Gekrepten, com quem partilha um quarto de hotel na rua em frente à casa de Traveler e Talita.

Arranja um emprego como vendedor de quadros, mas não se dá muito bem com as funções. Traveler, que trabalha num circo com Talita, propõe-lhe que trabalhem todos. Continua, porém, com dúvidas. A presença de Oliveira perturba-o, sem que saiba muito bem porquê. Começa por achar que a causa são os avanços que este faz a Talita, mas acaba por concluir que se trata de algo mais profundo. Para além disso, não duvida da fidelidade da esposa. Incapaz de decifrar o mistério ou de pedir a Horácio que os deixe em paz, Traveler sente-se cada vez mais ansioso e impotente, começando inclusivamente a sofrer de insónias.

Horácio, entretanto, vai descobrindo mais traços de Maga em Talita. Em simultâneo, considera-se parecido com Traveler. Tenta por isso imiscuir-se na vida íntima do casal, sem sucesso. A sua frustração cresce, ao ponto de começar a revelar sinais de esgotamento mental. Numa tarde extraordinariamente quente, Oliveira passa horas na tarefa de endireitar uma mão cheia de pregos, sem no entanto saber no que pretende usá-los. Esta acção despoleta de imediato um episódio alucinado, no qual Horácio convence Traveler e Talita a ajudá-lo a construir uma ponte entre as janelas dos edifícios, para que ela possa atravessar o vazio. Uma vez concluído o artifício, Horácio pede a Talita que atravesse a ponte e lhe leve mais pregos e erva-mate. Traveler mostra-se tolerante perante as excentricidades do amigo, mas Talita está assustada e pede para não participar. Está convencida que se trata de uma espécie de teste. Finalmente, atira-lhe com a erva e os pregos, mas não atravessa a «ponte».

Pouco tempo depois, o dono do circo vende o negócio a um empresário brasileiro e com o dinheiro adquire um hospital psiquiátrico. Traveler, Talita e Horácio aceitam trabalhar no novo local, apesar da ironia existente em tal cenário (ou talvez por isso mesmo). Horácio brinca, dizendo que de qualquer modo é impossível que os pacientes do hospital estejam mais loucos que eles três. No dia próprio, procede-se à transferência de propriedade do hospital. Os pacientes devem estar de acordo com o negócio, assinando para isso um documento, e os três amigos são convocados como testemunhas. Chega então a altura de conhecerem o novo director do hospital, o doutor Ovejero, e a assistente Remorino. O dono, ex-proprietário do circo, e a respectiva esposa, Cuca, estão também presentes. Um a um, os doentes são encaminhados para a sala onde o documento vai ser assinado, num processo que se prolonga até quase ao fim da noite. Todos eles são convocados através do número do quarto e não do respectivo nome. A maioria tem um temperamento dócil.

Talita é convertida em farmacêutica interna, enquanto Horácio e Traveler fazem o papel de auxiliares ou guardas nocturnos. O local é gelado e escuro, sobretudo nas longas horas que antecedem o amanhecer. Os três refugiam-se com frequência no aconchegante ambiente da farmácia, onde bebem e conversam. Remorino mostra a Traveler e Oliveira onde fica a cave, local onde se armazenam os corpos dos falecidos, e ao mesmo tempo, o melhor sítio para manter as cervejas frias.

Uma noite, Horácio está a fumar no seu quarto do segundo andar, quando vê Talita a atravessar o jardim iluminado pela lua, provavelmente a caminho do quarto. Logo em seguida, julga ver Maga no mesmo local, a brincar ao jogo da macaca. Contudo, quando esta o observa, volta a ser apenas Talita. Há uma espécie de culpa que começa a apoderar-se de Oliveira, que de imediato arquitecta a ideia que alguém quer matá-lo enquanto está de guarda. Provavelmente Traveler.

Nessa mesma noite, enquanto Oliveira permanece no segundo andar a reflectir sobre as implicações simbólicas do elevador naquele hospital, Talita vai ter com ele e começam a falar de diversos assuntos, entre os quais Maga. Nesse momento, o elevador entra em funcionamento a partir da cave. Conclui-se que está um paciente no seu interior. Depois de encaminharem o homem para o quarto, Horácio e Talita decidem descer, para descobrir o que fazia o louco lá em baixo.

Uma vez na cave, junto aos cadáveres, Horácio começa a falar com Talita como se ela fosse Maga. Num momento de desespero, tenta beijá-la, mas é repelido. De regresso ao seu quarto, Talita conta a Traveler o sucedido. Enquanto isso, Oliveira regressa ao seu próprio quarto, agora plenamente convencido que Traveler pretende matá-lo. No escuro, principia a construir uma espécie de barricada composta por bacias cheias de água no chão, e fios atados a objectos pesados, por sua vez presos à maçaneta da porta.

A partir daqui, Oliveira permanece sentado às escuras do outro lado do quarto, junto à janela, enquanto aguarda por Traveler. As horas passam, lenta e ansiosamente. Traveler chega por fim e procura entrar. O caos e confusão resultantes atraem o doutor Ovejero e os pacientes para o jardim, de onde observam Horácio à janela, em vias de saltar. Traveler procura convencer Horácio a não prosseguir com os seus intentos, mas acaba por concluir que se este pretende acabar com a vida, então o melhor é não o impedir.

Terceira parte: «De outros lados»

Formada pelos capítulos prescindíveis, esta parte é feita de textos adicionais, como recortes de jornal, citações de livros e afins, que ajudam a compreender melhor diferentes secções do romance. Não se torna obrigatória para entender o enredo, mas sim para solucionar certos enigmas que surgem ao longo das duas primeiras partes.

Por exemplo, ao lermos esta secção, o leitor passa a saber que Horácio, após tentar atirar-se da janela, acaba por ser internado no hospital, sendo sedado por Ovejero, que está convencido que ele sofre de delirium tremens. É também aqui que se descobre muito mais sobre o misterioso Morelli e se percebe de que forma se conheceram Maga e Emanuelle.

Através dos escritos de Morelli analisam-se alguns dos motivos que sustentam a feitura do romance (como o desejo de escrever uma obra na qual o leitor possa agir enquanto coargumentista). É também aqui que se descreve a personalidade e as motivações interiores de Oliveira com maior detalhe e se revela que é Morelli o escritor atropelado na primeira parte do romance.

Esta parte, e por conseguinte o livro, terminam com o relato do encontro entre Horácio e Morelli no hospital, no qual o último pede ao primeiro que se desloque ao seu apartamento e organize os seus apontamentos. A maior parte dos manuscritos são inéditos, e Oliveira não só considera tal trabalho uma grande honra, como julga tratar-se da sua melhor oportunidade para atingir a plenitude espiritual, emocional e metafísica.


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Significado do título

Júlio Cortázar considerou para o romance o título Mandala, palavra que alude aos símbolos circulares do hinduísmo e do budismo, representantes do universo interno (microcosmos) e externo (macrocosmos) e são utilizados na meditação para alcançar a unidade com o ser, sendo essa a busca de Horácio Oliveira durante o enredo. No entanto, acabou por considerá-lo demasiado pretensioso, tendo então optado pelo nome Rayuela (Jogo da Macaca), referindo-se ao jogo infantil. O objectivo deste é atingir o céu, ir suplantando os quadrados (molduras) através de salto em pé coxinho. Assim, o «céu» do jogo transforma-se no símbolo dessa quimera que Oliveira impõe a si mesmo, dessa busca por algo que não consegue definir.

O Leitor como protagonista

Quer no conteúdo, quer na forma, Rayuela reivindica a importância do leitor, empurrando-o até certo ponto para uma acção e protagonismo que lhe estavam vedados no romance clássico, onde o importante era conduzir o interlocutor através de uma história linear até ao destino final. Em Rayuela, pelo contrário, o argumento não passa de um cenário onde os personagens se movimentam, donos de uma vitalidade livre e profunda, fornecida por um autor que não se responsabiliza por nada.

Rayuela semeia a negação do quotidiano e a abertura de novas realidades onde as situações mais absurdas evoluem até originarem as piores consequências, por entre uma total ligeireza, e até com sentido de humor. Estes novos caminhos que se abrem constituem uma renovada forma de atingir o «céu» da Rayuela.

Muitos críticos referem-se a esta obra como sendo um «anti-romance», devido ao seu carácter inovador, uma vez que rompe com todos os cânones pré-estabelecidos à época da sua publicação. Contudo, Cortázar não estava completamente de acordo com esta classificação, pois considerava que esta aparentava ser uma «tentativa algo venenosa de destruir o romance enquanto género». Devido a isto, preferia o termo «contra-romance», já que a sua intenção era «encarar de outra maneira a relação entre o romance e o leitor: incitá-lo a modificar a sua atitude passiva perante o livro, convertê-lo numa parte activa e crítica do mesmo, suscitando assim uma espécie de polémica entre autor e leitor».

Personagens

 

Horácio Oliveira – Protagonista da história. De origem argentina, tem entre 40 e 45 anos de idade. Possui um vasto conhecimento sobre inúmeros temas. Mudou-se para Paris com intenção de estudar, mas nunca o faz. Arranja um trabalho obscuro como organizador de correspondência. Tem ainda um irmão, advogado, que vive em Rosário (Argentina). Vive a vida numa busca constante, mas segundo Ossip Gregorovius, outro personagem do romance «…dá a ideia que já tens no bolso aquilo que procuras».

Maga (Lúcia) – Protagonista feminina da história. Nascida no Uruguai, viajou para Paris com o filho, Rocamadour. É conhecida pela sua distracção e por não possuir o mesmo nível cultural do grupo de amigos e conhecidos, situação que muitas vezes a faz sentir embaraçada e posta de lado («é uma tristeza sermos ignorantes»). Apesar disso, o seu desembaraço e ternura são muitas vezes invejadas pelos integrantes do Clube da Serpente. Aquilo que Oliveira mais inveja em Maga é a sua forma de encarar a vida: esta «nada no rio, enquanto ele apenas observa, ao longe».

Rocamadour – O bebé, filho de Maga. O seu verdadeiro nome é o mesmo do pai, Francisco. Está ao cuidado de uma ama, conhecida como Madame Irene, mas Maga acaba por encarregar-se da sua educação. No decurso da trama, o bebé adoece e acaba por morrer no apartamento partilhado por Maga e Horácio, isto na mesma noite em que Guy Monod tenta suicidar-se. A morte da criança revela-se de capital importância no desenrolar do romance.

 Étienne – Pintor e um dos melhores amigos de Oliveira durante a sua estadia em Paris. A personagem é inspirada num amigo que Cortázar conheceu em 1955, tal como Edith Aron (Maga): esse amigo é o artista franco-argentino Sérgio de Castro.

Ronald – Pianista norte-americano de jazz e bebop que vive em Paris. Noivo de Babs.

Babs – Ceramista norte-americana, noiva de Ronald.

Guy Monod – Amigo de Étienne. Aparece aquando da apresentação dos elementos do grupo, e tenta suicidar-se no final da estadia de Oliveira em Paris, mas não possui papel principal na trama.

Morelli. – Romancista estabelecido (identificado por alguns como o alter ego de Cortázar), estudado e admirado pelos integrantes do Clube. É descrito na primeira parte como um idoso que foi atropelado e ajudado por Oliveira. Na terceira parte, clarifica-se a identidade do mesmo quando Oliveira e Étienne vão visitá-lo ao hospital. Cortázar coloca nas palavras de Morelli a sua ideia de Literatura, referindo-se a uma produção limpa e sem elementos «barrocos».

Ossip Gregorovius – Está apaixonado por Maga, o que faz com que não seja bem visto por Oliveira. É um intelectual, semelhante a todos os outros integrantes do Clube da Serpente. O passado é pouco conhecido, mas refere-se a três mães diferentes ao longo da história. É romeno.

Perico Romero – Espanhol, amante de Literatura.

Pola – Jovem francesa, amante de Oliveira. Para conseguir que Horácio a deixe, Maga executa um ritual vudu com uma boneca figurativa, e lança-lhe ainda uma maldição para que adoeça com cancro de mama. Pola acaba, de facto, por contrair tal doença, o que provoca em Maga um enorme sentimento de culpa.

Wong – De origem chinesa, aparece pela primeira vez no capítulo 14. Carrega consigo uma maleta cheia de livros, e na carteira, fotos ilustrativas de uma famosa execução decorrida em Pequim, no ano de 1905.

Traveler – Amigo de juventude de Oliveira. Vive na Argentina. É casado com Talita. Oliveira vê nele uma versão melhorada de si próprio.

Talita – Esposa de Traveler. Oliveira encontra nela traços de Maga.

Gekrepten – Namorada de Horácio. De origem argentina, é extremamente passiva, o completo oposto de Maga. No início da segunda parte, Oliveira regressa à Argentina e vive uns tempos com ela.

Temas Principais

 

Ordem vs. Caos

Horácio afirma sobre ele próprio: «Impus uma falsa ordem, que esconde o caos, fingindo dedicar-me a uma existência de profundo significado, e desperdiçando-a contudo numa vivência que mal se atreveu a molhar o pé nessas terríveis águas» (final do capítulo 21). A vida de Oliveira obedece a tal descrição, uma vez que este troca constantemente de país, empregos e amantes. O próprio romance exibe uma ordem fictícia apesar de no seu conteúdo existir sobretudo caos. Tem um princípio e um fim, mas a viagem que intermedeia os dois aparenta ser um processo aleatório. O destino de Horácio é tão difuso para o leitor quanto para ele. Esta mesma ideia está perfeitamente expressa nos improvisos do jazz. A vários níveis, as melodias são construídas sobre bases improvisadas, que obedecem a regras musicais pouco rígidas. Cortázar utiliza o mesmo processo, servindo-se de uma prosa límpida, rica em metáforas e regionalismos, para descrever a vida.

 

Horácio vs. Sociedade

Horácio divaga de cidade em cidade, trabalho em trabalho, amante em amante, vida em vida. Porém, mesmo mergulhado nesta existência nómada, procura encontrar uma noção de ordem por entre o caos do mundo. Está sempre isolado: Quando está com Maga, não se sente ligado a ela; quando está nas reuniões do Clube, sente-se superior; quando está com Traveler e Talita, critica aquele modo de vida. Até no encontro com Morelli, o elemento com quem tem mais afinidades, cede às convenções sociais entre paciente e visitante.

 

O Enigma da Consciência

Um dos maiores debates entre Horácio e Ossip, que ameaça mesmo fracturar a consistência do Clube, é aquele que Oliveira apelida de «Enigma da Consciência». A Arte prova a existência de uma Consciência? Ou não passa de uma continuação dos processos de aprendizagem primitivos, no interior do cérebro? Talita levanta uma questão semelhante num jogo de perguntas e respostas com Horácio, onde este defende que só quando conseguimos viver no abstracto e abandonamos a nossa história biológica se torna possível atingir uma verdadeira consciência.

 

A definição de Fracasso

A vida de Horácio parece inútil devido ao facto de ele se considerar um falhado. A vida de Maga parece inútil uma vez que esta nunca encetou um processo de cura acerca dos abusos e violações que sofreu na infância. A vida de Traveler parece inútil porque nunca teve coragem de fazer o que realmente queria, pelo que até a alcunha que adoptou está recheada de uma ironia cruel. Contudo, nenhuma destas pessoas é vista pelo mundo exterior como exemplos de fracasso. Estão presos em tal definição devido aos respectivos comportamentos autodestrutivos.

Os capítulos curtos acabam por transmitir a ideia que não existe verdadeiro significado no romance, ou na vida como um todo. Para Horácio, a existência não passa de um conjunto de momentos artísticos, através dos quais se pode compreender o mundo de maneira profunda, mas que não permitem a criação de nada verdadeiramente importante.

Outros temas de destaque são o conceito de Obsessão, Loucura, Vida enquanto Circo, Natureza e Significado do Sexo e Autoconhecimento.

Toco a tua boca.

     Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo se desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.

    Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto.

Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõe-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela.

E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.

Excerto de Rayuela

Quando os famas saem em viagem, os seus costumes ao pernoitarem numa cidade são os seguintes: um fama vai ao hotel e indaga cautelosamente os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo dirige-se à Polícia e lavra uma ata declarando os móveis e imóveis dos três, assim como o inventário do conteúdo das suas malas. O terceiro fama vai ao hospital e copia as listas dos médicos de plantão e suas especializações.

Terminadas estas providências, os viajantes reúnem-se na praça principal da cidade, comunicam as suas observações e entram no café para beber um aperitivo. Mas antes eles seguram-se pelas mãos e dançam em roda. Esta dança recebe o nome de Alegria dos famas.

Quando os cronópios saem em viagem encontram os hotéis cheios, os comboios já partiram, chove a cântaros e os táxis não querem levá-los ou cobram-lhes preços altíssimos. Os cronópios não desanimam porque acreditam piamente que estas coisas acontecem a todos, e, na hora de dormir, dizem uns aos outros: «Que bela cidade, que belíssima cidade». E sonham a noite toda que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados. E no diz seguinte levantam-se contentíssimos, e é assim que os cronópios viajam.

As esperanças, sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens e são como as estátuas que é preciso ir ver porque elas não vêm até nós.

Excerto de Histórias de Cronópios e de Famas

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