
© Bernardo Martins
As janelas reluzem sob os raios convictos de um sol pouco frequente. Ainda que na companhia de meia dúzia de graus e da omnipresença do vento, tal basta para que os pálidos irlandeses se motivem a mostrar a pele, numa azáfama de sandálias, calções curtos e blusas cavadas. As carrinhas de gelados aceleram pelas avenidas, troando o chamariz musical característico, e as línguas de cascalho entrecortadas com punhados de areia que pomposamente se baptizam de praias fervilham desde logo de frequentadores. Há que valorizar o espírito desta gente.
Um complexo conjunto de circunstâncias colocou-os no mesmo alcance geográfico da fleuma inglesa e da indecisão escocesa. Em comum com os últimos, o mito, apimentado com vagos dados estatísticos dos geólogos, de que um dia a Natureza fará o que a política teima em negar: a separação total do domínio inglês. Enquanto os vizinhos do norte sustentam que num espaço temporal fora do nosso alcance, compreendido em milhões de anos, a Escócia quebrará as amarras com a cisão da massa de terra acima de Edimburgo, a voluntária que me atende no museu James Joyce não se digna a ser tão científica. Basta-lhe sonhar com ventos suficientemente poderosos para transformar a ilha numa jangada que flutue pelo Atlântico até chocar, envergonhada, com as costas do Canadá.
É talvez esta facilidade de êxodo para além das fronteiras do óbvio que permitiu germinar todos os líricos que agora partilham casa no Museu dos Escritores, em Dublin. De Oscar Wilde a Joyce, de Bram Stoker a Yeats.
Uma ilha, uma linha de horizonte, natureza indomável e um propósito.
É tudo o que basta.