Viveu entre 1888 e 1935. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português. Por ter sido educado na África do Sul, numa escola católica irlandesa, chegou a ter maior familiaridade com o inglês do que com o português ao escrever os seus primeiros poemas nesse idioma. O crítico literário Harold Bloom considerou Pessoa um «Whitman renascido» e incluiu-o no seu cânone entre os 26 melhores escritores da civilização ocidental, não apenas da Literatura Portuguesa mas também da Inglesa.
Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Traduziu várias obras do inglês (de Shakespeare e Edgar Allan Poe) para o português e obras portuguesas (nomeadamente de António Botto e Almada Negreiros) para o inglês.
Enquanto poeta, escreveu sob múltiplas personalidades – heterónimos como Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro – sendo estes objecto da maior parte dos estudos sobre a sua vida e obra. Robert Hass, poeta americano, afirma:
Outros modernistas como Yeats, Pound, ou Elliot inventaram máscaras pelas quais falavam ocasionalmente… Pessoa inventava poetas inteiros.
Álvaro de Campos
Entre todos os heterónimos, Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo da sua obra. Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo.
Começa a sua trajectória como um decadentista (influenciado pelo Simbolismo), mas logo adere ao Futurismo. Após uma série de desilusões com a existência, assume uma veia niilista, expressa naquele que é considerado um dos poemas mais conhecidos e influentes da Língua Portuguesa: Tabacaria. É revoltado e crítico e faz a apologia da velocidade e da vida moderna, com uma linguagem livre, radical.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Ricardo Reis
O heterónimo Ricardo Reis é descrito como um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estóicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, depurada e disciplinada. Faz uso da mitologia não-cristã.
Segundo Pessoa, Reis mudou-se para o Brasil em protesto com a proclamação da República em Portugal e não se sabe o ano da sua morte.
Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago continua, numa perspectiva pessoal, o universo deste heterónimo após a morte de Fernando Pessoa, cujo fantasma estabelece um diálogo com Reis, sobrevivente ao criador.
Aos Deuses
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E o ser feliz oprime porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores.
Pessoa, sobre Ricardo Reis:
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular e abandonei o caso. Esboçara-se-me contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo – tinha nascido sem que eu soubesse, Ricardo Reis.
Alberto Caeiro
Por sua vez, Caeiro, nascido em Lisboa, teria vivido toda a vida como camponês, quase sem estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterónimos (pelo ortónimo). Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma «não-filosofia». Acreditava que os seres simplesmente são e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.
Os escritos pessoanos que versam sobre a caracterização dos heterónimos, «Pessoa-ele-mesmo», Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o meio-heterónimo Bernardo Soares conferem a Alberto Caeiro um papel quase místico, enquanto poeta e pensador. Reis e Soares chegam a compará-lo ao deus Pã e Pessoa esboça-lhe um horóscopo no qual lhe atribui o signo de Leão, associado ao elemento Fogo. A relevância destas alusões advém da explicação de Fernando Pessoa sobre o papel de Caeiro no escopo da heteronímia. Citando a actuação dos quatro elementos da Astrologia sobre a personalidade dos indivíduos, Pessoa escreve:
Uns agem sobre os homens como o Fogo, que queima nele todo o acidental e os deixa nus e reais, próprios e verídicos e esses são os libertadores. Caeiro é dessa raça, Caeiro teve essa força.
Dos principais heterónimos de Fernando Pessoa, Caeiro foi o único a não escrever em prosa. Alegava que somente a poesia seria capaz de dar conta da realidade.
Possuía uma linguagem estética directa, concreta e simples mas, ainda assim, bastante complexa do ponto de vista reflexivo. O seu ideário resume-se no verso:
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
A sua obra está agrupada na colectânea «Poemas Completos de Alberto Caeiro».
Ainda Pessoa sobre o nascimento de Caeiro:
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada e apresentar-lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 08 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta e tomando um papel comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tal poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpem-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Bernardo Soares
Bernardo Soares é, dentro da ficção do seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa numa pequena casa de pasto frequentada por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando o seu livro que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX.
Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterónimo porque, como o seu próprio criador explica:
Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade.
A instância da ficção que se desenvolve no livro é insignificante, porque se trata de uma «autobiografia sem factos», como o próprio Fernando Pessoa situa o livro. Dessa forma, o que interessa na sua prosa fragmentária é a dramaticidade das reflexões humanas que vêm à tona na insistência de uma escrita que se reconhece inviável, inútil e imperfeita, à beira do tédio, do trágico e da indiferença estética. O facto de Fernando Pessoa considerar (em cartas e anotações pessoais) Bernardo Soares um semi-heterónimo, faz pensar na maior proximidade de temperamento entre Pessoa e Soares. Nesse sentido, para alguns, o jogo heteronímico ganha em complexidade e Pessoa logra o êxito da construção de si mesmo como o mais instigante mito literário português na Modernidade.
Carta de Fernando Pessoa a Casais Monteiro
«…E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.
Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm de ser, na prática da publicação preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
A questão é que fixei tudo isto em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes e como eu não sou nada na matéria.
Como escrevo em nome desses três? Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição. Aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta e o português perfeitamente igual. Ao passo que (Alberto) Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer ‘eu próprio’ em vez de ‘eu mesmo’. Reis melhor do que eu, mas com um purismo exagerado».
Excertos de O Caso Mental Português (1932)
Provincianismo/Mentalidade
A mentalidade das três camadas: a camada baixa (povo); a camada média (burguesia); a camada alta (elite-escol);
– Primeira camada: incapacidade de reflectir.
– Segunda camada: capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias.
– Terceira camada: capacidade de reflectir com ideias próprias.
A palavra «provincianismo» define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem.
Civilização: substituição do natural pelo artificial.
Progresso: artificialidade quotidiana, do «moderno».
O campónio, o provinciano e o citadino diferem entre si pelas suas diferentes reacções a esta artificialidade. O provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso mesmo o ama. Para o seu espírito desperto, mas incompletamente desperto, o artificial novo, que é o progresso, é atraente como novidade, mas ainda sentido como artificial.
A nossa elite-escol é estruturalmente provinciana, ou seja, padece de falta de desenvolvimento.
Os escritores portugueses são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer.
Não há poeta português que seja de confiança para além do soneto.
Poema: carne de emoção a cobrir um esqueleto de raciocínio.
A nossa elite política não tem ideias, excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro – aceites, não porque sejam boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o que quer que seja.
A nossa elite literária, ainda é pior. Nem sobre literatura tem ideias.