Realidade Agora a Cores*

Foi aqui que falei pela primeira vez na tragédia conhecida como «A Grande Fome».

Um fenómeno desta magnitude entra necessariamente na arquitectura genética de um povo. Existe um «antes da Fome» e um «depois da Fome».

Uma das regiões mais afectadas foi precisamente a zona Oeste da ilha. Ergueram-se memoriais aos contos de terror que sobreviveram na memória colectiva. Um deles exibe de forma tripartida a figura esquálida de uma criança, um par de mãos e uma cabeça de mulher.


Famine-memorial

Monument to the Great Famine –   County Clare.


A legenda esclarece que a criança simboliza todas as que deambulavam, esfaimadas, órfãs, espectrais, pelas ruas e campos do território, batendo às portas dos casebres em busca de qualquer migalha que lhes permitisse sobreviver mais umas horas.

Só na região de Clare, 20 mil foram enterradas em valas comuns.

As mãos estendidas não carecem de explicação, é todo um povo transformado em farrapos mendicantes.

A terceira, talvez seja a que mais impressione os espíritos sensíveis. É conveniente esclarecer que os pais de família estavam quase sempre ausentes, em busca de emprego, alimento, ou executores do mais cobarde dos abandonos. Também acontecia errarem grandes distâncias, perecendo antes de poderem regressar a casa.

Quer isto dizer que a mulher se via encarregada da sobrevivência dos filhos e só depois dela própria, enquanto aguardava pelo regresso do companheiro. Tal situação redundava na maioria das vezes na morte da progenitora, sendo os descendentes responsáveis pelo enterro.

Dois factores se adicionam. Os campos eram patrulhados por fauna variada, nomeadamente lobos, tão esfaimados como os humanos. Os terrenos, sobretudo em períodos invernais, tornavam-se demasiado rijos para serem escavados, cobertos que estavam por camadas de gelo. As sepulturas eram baixas, irregulares e facilmente violadas por predadores.

Eis a simbologia. A cabeça enquanto desmembramento dos defuntos, às mãos dos próprios filhos, cada parte enterrada num local distante, na desesperada tentativa de enganar o macabro.


 

* Título retirado de um livro de Rui Zink.

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