Viveu entre 1876 e 1916. John Griffith Chaney, autor, jornalista e activista social, nasceu em São Francisco, na Califórnia. Foi pioneiro no que era, então, o novo mundo das revistas comerciais de ficção e também um dos primeiros romancistas a obter fama mundial e sucesso comercial com a escrita. As obras mais famosas são O Apelo da Selva, «Antes de Adão», «Caninos Brancos» e «O Lobo do Mar».
Presume-se que seja filho do astrólogo William Chaney. A mãe de London, Flora Wellman, uma professora de música e espiritualista que alegava dialogar com o fantasma de um chefe indígena, vivia com Chaney em São Francisco e engravidou. Este terá exigido que ela abortasse e ao ver a sua vontade recusada, renegou a criança. Desesperada, Flora tentou o suicídio com um tiro, mas acabou por escapar com uma ferida superficial. Assim que o bebé nasceu, a mãe entregou-o a uma ex-escrava de nome Virginia Prentiss, que se tornará uma figura de relevo na vida de London.
No final de 1876, Flora casou-se com John London, um veterano da Guerra da Secessão parcialmente incapacitado e recuperou a guarda do filho. A família mudou várias vezes de casa até se fixar em Oakland, onde London completou os estudos.
Em 1897, aos 21 anos, já estudante na Universidade da Califórnia, em Berkeley, London encontrou nos arquivos de imprensa notícias sobre a tentativa de suicídio da mãe e o nome do seu suposto pai biológico. Escreveu então para William Chaney, que vivia em Chicago. Dois anos depois, este informou que não poderia ser o pai de London, pois era impotente, dando a entender que Flora tivera relações com outros homens e que depois o caluniara ao dizer que ele insistira num aborto:
Nunca me casei com Flora Wellman, mas vivi com ela entre 11 de Junho de 1874 e 03 de Junho de 1875. Sofria nesse tempo os terríveis efeitos de muitas privações, dificuldades de vida e excessivo trabalho intelectual, sendo a nossa relação completamente platónica. Portanto, não posso ser o seu pai nem dizer com certeza quem seja ele. (…) O ‘Chronicle’ publicou que eu a expulsei de casa porque ela não quis fazer o aborto. Essa notícia correu o país inteiro, reproduzida por toda a Imprensa. Por causa disso, duas das minhas irmãs ficaram minhas inimigas. Uma delas morreu convencida de que sou culpado. Todos os outros parentes, excepto uma irmã que mora em Portland, ainda estão contra mim e consideram-me a vergonha da família. Na época do escândalo, publiquei em folheto uma declaração da Polícia em que se demonstrava a falsidade de muitas acusações levantadas contra a minha conduta, mas nem o ‘Chronicle’ nem os outros jornais que me difamaram quiseram desmanchar a calúnia. Desisti então de me defender e durante anos e anos a minha vida pesou como um fardo. Veio finalmente a reacção e agora já tenho alguns amigos que me consideram homem de bem. Já passei dos 76 e vivo na pobreza.
Chaney concluiu dizendo-se quem sabe mais afectado com tudo do que London. Este ficou arrasado com a carta. Meses depois, deixou a universidade em Berkeley e foi para Klondike. A respectiva certidão de nascimento parece ter sido destruída nos diversos incêndios que se seguiram ao terramoto de São Francisco de 1906, sendo por isso impossível saber o nome de quem aparecia no documento como seu pai.
Embora oriundo de uma família modesta, Jack não era tão pobre quanto alegou em relatos posteriores, mas foi essencialmente um autodidacta.
Antes disso, em 1885, assumira que a leitura de um romance famoso na época estava na base do seu posterior sucesso literário. Em 1886, na Biblioteca Pública de Oakland, conhece uma bibliotecária, Ina Coolbrith, que o encoraja a estudar (mais tarde, a mesma tornou-se na primeira poetisa premiada da Califórnia e uma figura importante na comunidade literária de São Francisco).
Em 1889, London começa a trabalhar entre 12 a 18 horas por dia numa fábrica de enlatados. Pouco tempo depois, esgotado, pede dinheiro emprestado à mãe adoptiva, Virginia Prentiss, compra um pequeno barco à vela a um pretenso pirata de ostras chamado French Frank e segue o mesmo tipo de vida. Em escritos posteriores, confessa ter também ficado com a amante de French Frank, Mamie. Contudo, alguns meses mais tarde, o barco sofre uma avaria irreparável e London desiste, sendo contratado como membro da Patrulha Pesqueira da Califórnia.
Em 1893, depois de ter lido «Moby Dick», de Herman Melville, embarca no navio Sophie Sutherland, rumo à costa do Japão. Quando regressa, o país vive tempos turbulentos, com a crise laboral a assumir proporções desastrosas, e Oakland está assolada pelas greves. Após trabalhos extenuantes em diversas fábricas, une-se a uma marcha de protesto de trabalhadores desempregados conhecida como «O Exército de Kelly» e inicia uma vida nómada, revelando-se um mestre na arte de viajar de comboio como clandestino. Em 1894, passa 30 dias numa prisão de Buffalo, por vadiagem. Mais tarde, escreveu:
O chicote era um dos horrores impublicáveis da prisão. Eu digo ‘impublicáveis’, mas deveria dizer mesmo indescritíveis. Para mim, eram impensáveis até que os vi, mesmo não sendo eu nenhum novato nos caminhos do mundo, nem nos horrendos abismos da degradação humana. Seria preciso um mergulho profundo para chegar ao recôndito daquele lugar, mas restrinjo-me à leveza das coisas superficiais e jocosas, conforme as vi.
Após várias experiências como vagabundo e marinheiro, London regressa a Oakland e contribui com diversos artigos para o jornal académico. O seu primeiro trabalho publicado é «Tufão ao largo do Japão», onde relata as suas experiências de marinheiro. A história fica em primeiro lugar num concurso literário patrocinado por um jornal de São Francisco e rende-lhe 25 dólares.
O principal objectivo da sua vida passa então a ser o de entrar na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Em 1896, após um Verão de estudo intenso, é admitido. Como já vimos, circunstâncias financeiras e o episódio do falso parentesco forçaram-no a abandonar, em 1897. Não há indícios de que London tenha escrito para publicações estudantis durante este período.
A 12 de Julho de 1897, decide entrar na Corrida ao Ouro de Klondike, que se tornaria o cenário das suas primeiras histórias de sucesso. Essa aventura acabará, contudo, por lhe prejudicar a saúde. Como tantos outros homens mal alimentados nas lavras de ouro, Jack desenvolveu escorbuto. As gengivas incharam, fazendo-o perder os quatro dentes da frente. Uma dor constante aflige-lhe os quadris e os músculos das pernas e o rosto fica vincado por cicatrizes. Um padre de nome William Judge, «o Santo de Dawson», vivia nessa terra e oferecia abrigo, alimento e qualquer remédio que pudesse obter. Os esforços desta figura inspiraram um dos contos de London, «A Fogueira», que muitos críticos consideram o seu melhor trabalho.
Deixa Oakland com uma consciência social e inclinações socialistas, concluindo que a única esperança de escapar à «armadilha» do trabalho passa por educar-se e «vender o cérebro». Para ele, escrever torna-se um negócio, um passaporte para fora da pobreza e, quem sabe, um meio de subverter o sistema.
Ao regressar à Califórnia, em 1898, London começa a trabalhar deliberadamente para ser editado, um esforço descrito no romance «Martin Eden». A primeira história publicada é «To the Man On Trail», frequentemente incluída em antologias. Quando um jornal lhe ofereceu apenas cinco dólares pela história e demorou a pagar, Jack quase abandona a carreira de escritor, mas segundo ele, «fui salvo literalmente e literariamente» quando outro jornal aceitou a história «A Thousand Deaths», pagando 40 dólares.
London acabou por ser feliz ao escolher o momento de iniciar a carreira de escritor, pois foi justamente nessa época que novas tecnologias possibilitaram o surgimento de produções de baixo custo. Tal resultou numa explosão de revistas voltadas para o grande público e um forte mercado para contos. Em 1900, Jack ganhou 2500 dólares com a escrita, cerca de 65 000 dólares em valores actuais. As coisas estavam enfim no bom caminho.
Entre os trabalhos que vendeu para revistas estava um conto no qual um franco-canadiano brutaliza o seu cão. Este reage e mata o dono. A esse propósito, London afirmou que as acções dos homens são a principal causa do comportamento dos seus animais e que provaria isso em definitivo no trabalho seguinte.
A 26 de Janeiro de 1903, entregou o manuscrito concluído de O Apelo da Selva a um jornal. A 12 de Fevereiro, o editor aceitou comprar a história se London cortasse até cinco mil palavras e definisse um preço. Jack concordou e estabeleceu o preço em 0,03 dólares por palavra. A 03 de Março, recebeu um cheque de 750 dólares. Dois dias depois, a editora Macmillan comprou os direitos do livro por 2.000 dólares, com a promessa de fazer uma enorme campanha de publicidade.
Na época, pareceu um acordo muito sensato. Os livros anteriores de London não tinham chegado à lista dos mais vendidos e nem ele nem o editor da Macmillan poderiam prever o sucesso do livro. Se Jack soubesse que este se tornaria num clássico da literatura norte-americana, cujos royalties o fariam rico, tudo teria sido diferente. Ainda assim, sem o extenso programa promocional, aquele poderia facilmente ter sido apenas mais um livro sobre cães. Nunca se saberá, mas Jack jamais se arrependeu da decisão, percebendo que a promoção extra da Macmillan fora um aspecto fundamental para o sucesso.
A história começa numa propriedade situada no Vale Santa Clara e tem como personagem um cão chamado Buck. A cena de abertura descreve a fazenda da família Bond, que London uma vez visitara. Buck foi inspirado num cão que os irmãos Bond lhe emprestaram, em Dawson.
Na sua vida adulta, London desenvolveu uma ampla gama de interesses, acumulando uma biblioteca pessoal de quinze mil volumes.
Casou-se com Elizabeth Maddern, ou Bessie, a 07 de Abril de 1900, no mesmo dia em que «O Filho do Lobo» foi editado. Esta fizera parte do seu círculo de amizades durante anos. Durante o casamento, London manteve contacto com Anna Strunsky, a co-autora de «The Kempton-Wace Letters», um romance epistolar que contrasta duas filosofias do amor. Anna, escrevendo as cartas de «Dane Kempton», defendia uma visão romântica do casamento, enquanto London, escrevendo as cartas de «Herbert Wace», argumentava com uma visão científica, baseada no darwinismo e na eugenia. No romance, a personagem de ficção contrariava o tipo de mulher que London conhecia.
Embora o autor se orgulhasse das filhas, nascidas entre 1901 e 1902, o casamento mergulhou em dificuldades. Jack reclamava com amigos que:
[Bessie] é devotada à moralidade. Quando lhe digo que a moral é apenas um sinal de baixa pressão sanguínea, fica furibunda. Abdicaria de marido e filhas em nome da maldita moralidade. É terrível. Sempre que volto para casa depois de passar a noite fora, não me deixa ficar no mesmo quarto, se puder evitar.
Ao que parece, Bessie receava que Jack estivesse envolvido com prostitutas e adquirisse alguma doença sexualmente transmissível.
A 24 de Julho de 1903, London disse a Bessie que abandonava a casa. Em 1904, assinaram o divórcio.
London havia sido apresentado a Charmian Kittredge pelo editor da MacMillan quando esta era sua secretária. Após divorciar-se de Bessie Maddern, o autor casou-se com Kittredge, em 1905. Esta tornou-se uma companheira inseparável em cavalgadas e pescarias, passando a acompanhar também a criação e o desenvolvimento dos seus originais. Enquanto estiveram juntos, viajaram diversas vezes, incluindo um cruzeiro pelo Havai e pela Austrália. Muitas das histórias de London baseiam-se em visitas ao Havai, a última delas ao longo de dez meses, em Dezembro de 1915.
London compara os conceitos de «mulher-mãe» e «mulher-companheira» em «The Kempton-Wace Letters». A alcunha de Bessie era «mãezinha», a de Charmian era «companheira». Todos os biógrafos aludem à sexualidade desinibida da segunda. London descobriu nela não somente uma parceira sexualmente activa e aventureira, mas a sua futura companhia para toda a vida. O casal tentou ter filhos, mas uma criança morreu no parto e a outra gravidez foi abortada espontaneamente.
Em 1905, London comprou um rancho de 1.000 acres (4 km²) na Califórnia, por 26.450 dólares, escrevendo depois que:
A par da minha esposa, o rancho é a coisa que mais prezo neste mundo.
Tentou a todo o custo fazer da propriedade um empreendimento bem-sucedido. Escrever, que para o autor sempre tivera uma faceta comercial, tornou-se então um simples meio de sustento:
Escrevo com o único propósito de fazer crescer a beleza que agora me pertence.
Após 1910, os seus trabalhos literários foram quase sempre mundanos, escritos para atender às necessidades do rancho.
Apesar das preocupações ecológicas, dos primeiros conceitos de agricultura sustentável e do esforço generalizado, a fazenda foi um fracasso económico. Sempre com falta de dinheiro e com despesas crescentes, London regressou ao lucrativo tema do Alasca em contos como «Lost Face», «Burning Daylight» e «Smoke Bellew» (1912). A sua longa viagem marítima deu origem ao autobiográfico «The Cruise of the Snark» e a uma sucessão de histórias e romances sobre o Pacífico.
Em 1912, contornou o cabo Horn num veleiro, viagem que deu origem ao soturno romance «The Mutiny of the Elsinore». Charmian sofreu o segundo aborto e assim se desvaneceram as possibilidades de vir a ter um rapaz. O seu último infortúnio foi perder uma mansão de pedra de 1400m² que tinha mandado construir na propriedade e na qual havia gasto 80 mil dólares (1 930 000 em valores actuais). Quando já estava pronta, um incêndio, possivelmente criminoso, destruiu boa parte da mansão, consumindo tudo o que era de madeira.
Alguns dos seus melhores contos foram escritos nos tempos de declínio, sobretudo em 1914. Prosseguiu ainda com os romances, um sobre boxe – «The Abysmal Brute», outro de ficção científica – «The Scarlet Plague», em 1915.
A última visita de London ao Havai dá-se no início de Dezembro de 1915. Regressa depois ao rancho, em Julho de 1916. Desenvolve problemas renais, mas continua a trabalhar.
Tal propriedade é hoje um Marco Histórico Nacional e situa-se no Parque Histórico Estadual Jack London.
O autor era vulnerável a acusações de plágio, não somente por ser um escritor celebrado, prolífico e bem-sucedido, mas também por causa do seu método de trabalho. London comprou enredos e romances a outros autores e usou incidentes recortados de jornais como material para seus textos.
Muitas fontes mais antigas descrevem a morte de London como suicídio e algumas ainda o fazem. Essa conjectura parece no entanto ser uma especulação. A certidão de óbito declara como causa de morte uma uremia após cólica renal aguda, normalmente causada por cálculos renais.
Jack morreu a 22 de Novembro de 1916, numa varanda do rancho. Sentia dores extremas e tomava morfina, sendo de facto possível que uma dose excessiva, acidental ou deliberada, tenha causado a morte.
As cinzas foram sepultadas, juntamente com as da segunda mulher, Charmian (que morreu em 1955), no Parque Histórico Estadual Jack London, em Glen Ellen, Califórnia.
Apenas uma rocha coberta de musgo marca o local da sepultura.
Curto romance de aventuras publicado em 1903 e passado numa região inóspita do Canadá durante a Corrida ao Ouro no final do séc. XIX, quando a procura por cães de neve estava no auge. O protagonista é um cão de nome Buck. A história tem início num rancho da Califórnia, com o rapto do animal e a sua venda como cão de trabalho, rumo ao Alasca. Este vai-se tornando cada vez mais selvagem, influenciado pela rudeza do ambiente e pela obrigação de lutar para conseguir sobreviver e subjugar outros cães. No final, abdica de qualquer réstia de cortesia, valendo-se dos instintos primários e da experiência adquirida para se impor no meio selvagem.
O autor passou quase um ano naquela região remota, de modo a recolher informação preciosa. A história começou por ser publicada em jornais no Verão de 1903, antes de adquirir a forma de livro no ano seguinte. O grande sucesso crítico e comercial tornaram London num autor reputado. Em 1923, o livro foi adaptado para filme, existindo várias versões da história ao longo dos anos.
Enredo
Começamos por conhecer Buck, um cão forte e imponente que vive feliz num rancho da Califórnia, enquanto animal de estimação de um tal juiz Miller. De súbito, é raptado e vendido pelo ajudante do jardineiro, para que este possa pagar dívidas de jogo, sendo embarcado para Seattle. É aprisionado, maltratado e mal alimentado. Assim que é solto, ataca «o homem da camisola vermelha», mas acaba espancado e ensinado a respeitar a «lei do clube». Buck é então vendido a dois representantes do Governo Franco-Canadiano, François e Perrault, que o levam para uma região do Canadá conhecida como Klondike. É lá que será treinado para ser um cão do Árctico. Com a ajuda de companheiros, rapidamente aprende a resistir às noites geladas e a socializar com a matilha. Surge entretanto uma rivalidade entre Buck e o problemático líder, de nome Spitz. Buck acaba por vencê-lo num combate «mortal», assim considerado porque a lei dita que o vencido seja chacinado pela matilha. É assim que Buck ascende à liderança do grupo. A matilha é então vendida a um carteiro de ascendência escocesa, que os faz transportar cargas enormes para as zonas mineiras, em jornadas de trabalho prolongadas e esgotantes. Um elemento, um husky pouco ágil de nome Dave, adoece e acaba por ser abatido.
Os donos seguintes de Buck são um trio de aventureiros (Hal, Charles e uma mulher de nome Mercedes), oriundos dos Estados Unidos, sem qualquer experiência ou capacidades de sobrevivência nas terras selvagens do Norte. Revelam grandes dificuldades para controlar o trenó e ignoram os avisos acerca dos perigos do degelo primaveril. Começam por desperdiçar demasiada comida com os animais e mais tarde fazem-nos passar fome, quando ficam sem mantimentos. Durante a viagem, encontram John Thornton, um nómada experimentado, que desde logo nota o estado enfraquecido e negligenciado dos cães. Aconselha o trio a não atravessar o rio, mas este ignora o aviso e ordena a Buck que avance. Exausto, esfaimado e consciente do perigo, o cão recusa, permanecendo estendido na neve. Ao observar o modo como Hal espanca o animal, Thornton entende a bravura e valia deste e enojado com a atitude do outro, golpeia-o com o cabo de um machado e liberta Buck das amarras. Informa o grupo que pretende ficar com ele, para desagrado dos outros. Apesar de uma breve discussão, estes partem e insistem em atravessar o rio, mas tal como Thornton dissera, o gelo quebra e os três afogam-se, arrastando consigo o trenó e os restantes cães.
Buck ganha respeito e afeição por Thornton, à medida que recupera a saúde e as forças com a ajuda deste. Mais tarde, salva-o, depois de John cair a um rio. O cão faz várias provas de devoção, destreza e força, ajudando o novo dono a enriquecer. Mais tarde, outros procuram comprá-lo a Thornton, mas este recusa. Continua na sua busca por mais ouro, enquanto Buck explora território e socializa com outros cães das redondezas. Uma noite, ao regressar de uma longa caçada, depara-se com os cadáveres do dono e de outros habitantes, assassinados por um grupo de nativos. Buck acaba por matá-los, para vingar a morte de John, mas é então atacado por uma matilha de lobos. Sai vencedor, descobrindo porém que um lobo com quem travara amizade faz parte dessa matilha. Segue então trás dele e do restante grupo, rumo à floresta, cedendo definitivamente ao apelo da selva.
No final, notamos que Buck regressa todos os anos a um local específico para visitar o túmulo do antigo dono.
Análise
Em determinada fase da vida, London estava com dificuldades em encontrar trabalho, vendo-se reduzido a pequenos biscates. Enviou uma carta a um editor, oferecendo-se para escrever um conto de aventuras no Alasca, mas viu a ideia rejeitada uma vez que, nas palavras do outro:
O interesse do público pelo Alasca reduziu-se substancialmente.
Alguns anos depois, Jack escreveu outro conto acerca de um cão chamado «Bâtard», que no final da história mata o próprio dono. Vendeu a narrativa a uma revista, que a publicou em 1902, com o título «Diablo – A Dog». Relatos da época comentam que depois disto, o autor decidiu escrever O Apelo da Selva para «redimir a espécie» aos olhos do público. Contava fazer um conto, mas segundo o autor:
Queria criar uma história gémea do meu outro conto sobre cães, mas a coisa fugiu ao meu controlo e em vez de 4000 palavras, o texto viu-se com 32 000 antes de ser dado como pronto.
A intenção de London era fazer uma história comercial acerca da Corrida ao Ouro.
Contudo, O Apelo da Selva insere-se hoje num género mais profundo, no qual um animal é antropomorfizado de modo a exibir características humanas. Ao longo do enredo, o autor imbui o cão de reflexões e pensamentos de cariz humano, ao ponto de ter sido acusado de ser um farsante, por fornecer sentimentos «irrealistas» a um animal. Jack era, como outros da sua geração, influenciado pelo Naturalismo proveniente da Europa, visível em autores como Émile Zola, que explorava com frequência temas como a dicotomia entre Genética e Influência do Meio.
O conto é também visto como um exemplo da Pastoral Americana – um tema central da Literatura dos EUA – no qual o herói mítico enceta o seu regresso à Natureza. À semelhança de outras personagens, como Huckleberry Finn, Buck simboliza uma reacção à industrialização e às convenções sociais. London apresenta a tese de forma simples, clara e poderosa, ideia mais tarde explorada no século XX por autores como William Faulkner e Ernest Hemingway.
O interesse sustentado na obra provém, segundo os estudiosos, do facto de esta ser uma fusão entre alegoria, parábola e fábula, incorporando elementos das intemporais fábulas com animais, nas quais estes exibem uma certa sabedoria e outros contos com animais onde normalmente a reflexão suplanta o instinto. London foi influenciado, por exemplo, por Rudyard Kipling e o seu «O Livro da Selva», escrito pouco tempo antes, que também combina os conceitos de parábola e fábula animal. O Apelo da Selva aprofunda e acrescenta camadas a este tipo de histórias.
O enredo obedece ao arquétipo do «mito do herói» no qual Buck, o protagonista, enceta uma viagem, é transformado por esta e atinge o apogeu. Quanto à forma, divide-se em quatro partes distintas:
Na primeira, Buck sofre actos violentos e luta pela sobrevivência; na segunda, prova a sua capacidade enquanto líder; na terceira, experimenta a morte (simbólica e quase literalmente) e no final assistimos ao seu renascimento.
O conto de London é um relato de sobrevivência e regresso ao estado primitivo. Segundo os analistas: «o mais forte, sagaz e inteligente é o único que sobrevive quando a vida é selvagem».
Este conceito é desenvolvido ao longo do enredo, uma vez que o autor coloca Buck em situações de conflito com humanos, com outros cães e com o meio ambiente – tendo de desafiar, conquistar e sobreviver a todos. Buck, que é um cão doméstico, é forçado a convocar a sua herança primitiva, tem de aprender a ser selvagem para se tornar de novo num ser selvagem. Descobre que num mundo dominado por «paus e pedras», onde impera a lei da matilha e cães plácidos como Curly arriscam-se a ser desfeitos em tiras pelos restantes, sobreviver sem olhar a meios é fulcral.
London explora também o binómio «Natureza vs. Ninho». Buck, criado como animal de companhia, é contudo um lobo na sua essência. A radical mudança de ambiente liberta em si as suas características primordiais.
É patente a noção de que o verniz civilizacional é frágil, sendo evidente a brutalidade que resiste nas profundezas do Homem, que faz com que o regresso a um estado primitivo esteja sempre a curta distância. Um sub-tema é a ideia de que o Homem é controlado pelo Materialismo.
O simbolismo e imagens variam nas diferentes fases do enredo. Na primeira fase, relacionada com o conceito de viagem e auto-descoberta, é notório o ambiente violento, recheado de dor e sangue. Numa segunda fase dominam as noções de fadiga e de proximidade da morte. A terceira é um período de renovação e renascimento, pelo que ocorre na Primavera. A terminar, quando Buck retorna à Natureza, é colocado num cenário vasto, dominado por uma «atmosfera bizarra», um local desértico e desprovido.
O mesmo se passa com os cenários. Enquanto o Sul representa o mundo ameno e materialista, o Norte simboliza um mundo incivilizado e essencialmente competitivo. A dureza, brutalidade e vazio do Alasca reduzem a vida ao estritamente necessário. Buck é obrigado a combater e derrotar Spitz, o cão que disputa com ele uma posição dominante. Quando mais tarde é vendido a Charles, Hal, e Mercedes, descobre-se num acampamento insalubre, onde os cães são maltratados, o que faz deles invasores sujos de uma paisagem imaculada. Por outro lado, John Thornton e amigos são descritos como estando «em comunhão com a Terra». Mantêm o acampamento em condições, tratam bem os animais e simbolizam a nobreza do Homem em parceria com a Natureza. Ao contrário de Buck, Thornton não consegue derrotar os seus rivais humanos e é nessa altura que o protagonista decide reverter em definitivo para o estado selvagem.
As personagens são também elas simbólicas. Charles, Hal e Mercedes representam a vaidade e a ignorância. Thornton e amigos a lealdade, pureza e o amor.
London usa diferentes estilos narrativos para transmitir a sua mensagem. Escolhe uma prosa afectada e barroca para descrever os cenários com Charles, Hal e Mercedes, querendo com isso representá-los enquanto corpo estranho na Natureza. Pelo contrário, com Buck e restantes, opta por um estilo contido e simples – mais tarde fonte de inspiração e mesmo imagem de marca de Ernest Hemingway.