Ao longo de 2013, foram-me chegando notícias sobre Portugal, sobretudo dos episódios mais insólitos.
No intervalo de outras coisas, acabei por resumir alguns desses temas em pequenas crónicas, que agora se recordam.
Continuam a chegar notícias espantosas de Portugal.
Ontem teve lugar mais uma manifestação nas galerias da Assembleia da República. Uma espécie de telenovela sul-americana, onde todos sabem o que vai acontecer, mas mesmo assim se deixam ficar, entretidos com a representação. Quando um grupo minimamente organizado se acerca das galerias para «assistir» aos debates, muitas vezes já munidos de mal disfarçadas faixas ou outros artefactos passíveis de fortalecer um qualquer protesto, parece-me de La Palisse que a determinado momento se irão erguer, exibindo os panos coloridos e gritando palavras de ordem.
Ontem, o que mais se ouviu foi um dueto entre «Demissão» e «Fascismo Nunca Mais», nada de novo nem verdadeiramente inspirador, apenas outro risco na melodia já decrépita das sociedades ocidentais.
Dentro desse contexto de alastrada decrepitude, a Presidente da Assembleia da República reagiu aos protestos com duas frases extraordinárias. A primeira rezava que «os deputados foram eleitos para ser respeitados». Esqueçamos portanto, essa coisa ultrapassada de elegermos representantes que naturalmente ganhariam o nosso respeito caso trabalhassem em prol de quem os elegeu, num saudável espírito colaborativo. Nada disso. Segundo a ilustre Presidente, estão ali para ser respeitados, ponto. Nada mais somos do que criancinhas que devem o subserviente respeito ao senhor professor, independentemente das reguadas e outros desmandos arbitrários que o ditatorial mestre queira infligir. Confiemos e entreguemo-nos à sabedoria divina do preceptor, qual decadentes mortais que se rendem ao destino traçado por Deus.
É tudo uma questão de fé. Se o caminho for tortuoso e incompreensível, são os desígnios do Senhor. Ou neste caso, da senhora Assunção Esteves.
A segunda frase já não é para todos. É só para as mentes superiores que conhecem Simone de Beauvoir. Pela segunda vez, ao melhor estilo daquela intelectualidade portuguesa que decora umas frases emblemáticas para as distribuir ao desbarato e ao sabor das conveniências, Assunção Esteves cita a personalidade francesa quando esta diz «não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes».
Aqui, é todo um novo mundo que se abre. Tenho a certeza absoluta que Assunção conhece o contexto original da frase, no qual «carrascos» eram os militares nazis que dominavam a França na Segunda Guerra. Assunção considera, portanto, que os deputados estão sob cerco e domínio implacável da população portuguesa. Antes assim fosse.
Pelo contrário, a situação inversa nunca esteve tão visível como agora. É nesse caso uma questão de esquizofrenia, de saúde mental. O jogo dos espelhos faz com que Assunção Esteves se coloque do outro lado, como a Alice. Por um momento, parece que estou a vê-la à porta da Assembleia, qual Pinheiro de Azevedo, a clamar «não gosto de ser sequestrada, pá. É uma coisa que me chateia».
Com tudo isto, José Miguel Júdice, como se sabe muitíssimo popular em Coimbra desde a revolução estudantil de 68, já veio a público dizer que «estes partidos têm de acabar e seria interessante avançarmos para um regime presidencialista».
Paralelamente, as sondagens anunciam o aumento da popularidade de partidos radicais em França e Itália. Gostaria de acreditar que o fim desta «ilusão democrática» permitiria a chegada do futuro, mas desconfio que se preparam novos passados.
Alguns filósofos descrevem a situação actual como «totalitarismo invertido» ou seja, um regime já não nas mãos de demagogos ou ditadores militares, mas de uma sociedade civil anónima, infelizmente não aquela que imaginamos, mas a dos grandes conglomerados económicos e financeiros.