Gil Vicente
Pouco se conhece da biografia do nosso maior dramaturgo: terá nascido por volta de 1465, provavelmente em Guimarães; o Gil Vicente dramaturgo/poeta e o Gil Vicente ourives terão sido a mesma pessoa. Terá depois morrido por volta de 1536, em Lisboa.
A sua primeira peça, Monólogo do Vaqueiro, foi escrita e representada em 1502 para comemorar o nascimento do futuro rei D. João III.
É o início de uma carreira marcada por uma forte influência medieval, por uma religiosidade profunda, pela defesa dos desprotegidos, mas ainda através de uma acção dramática pouco consistente.
As suas farsas Auto da Índia (1509), Velho da Horta (1512) e Quem Tem Farelos? (1515) mostram já um Gil Vicente muito crítico em relação aos costumes e aos comportamentos da sociedade do seu tempo.
A sua linguagem foi-se tornando cada vez mais apropriada às situações, o seu estilo mais vivo e a sua sátira cada vez mais profunda e mordaz. As peças Farsa de Inês Pereira (1523), Clérigo da Beira (1529) e Auto da Lusitânia (1531) confirmam um dramaturgo no auge das suas potencialidades.
O conjunto admirável das pequenas figuras do teatro vicentino, recortadas com precisão e nitidez num fundo de graça e de ironia, traça no nosso espírito a visão clara – que nenhum dos severos cronistas da época nos pode dar – da vida íntima da sociedade portuguesa do século XV, desde as tabernas sombrias até aos salões pomposos da corte.
Gil Vicente não foi, à maneira de Camões, um cantor de epopeias, glorificador do maravilhoso espírito da raça, cuja visão ainda em parte a sua retina deslumbrada pôde conservar. Menos humanista, compreendendo talvez que o seu pensamento, como a sua técnica, não poderia alar-se às regiões onde a sublimidade do génio tocasse o valor dos feitos lusos, preferiu ser o cronista, subtil e irónico, dos costumes e dos homens do seu tempo, limitando-se a traçar esses pequeninos quadros, cheios de verdade e de beleza, da sociedade portuguesa, em cujo seio ele vivia e onde estava afinal o germe dessa epopeia lusa.
Contudo, a linguagem, que representa na história da língua o ponto de transição da forma arcaica para a forma moderna, revela já a influência do renovamento que se operou na era fecunda e luminosa dos Descobrimentos.
A galeria de personagens é vasta. Descontando os diabos, os anjos, as figuras mitológicas, lendárias, alegóricas, e os heróis de cavalaria, são todas «tipos» sociais. A sua psicologia é uma psicologia de grupo social e não uma psicologia individual.
Cultivou sobretudo a farsa com propósito satírico, cuja acção se reduz frequentemente a uma anedota burlesca.
Auto da Índia
Foca o comportamento da mulher de um expedicionário ao Oriente, entre a partida e o regresso deste. A acção não se dispersa, e os dois episódios – a embrulhada resultante do encontro dos dois galantes sôfregos e a chegada do ausente – bastam para dar o estofo e a medida da personagem central. O último destes episódios é uma obra-prima de senso teatral e cómico. É portanto uma peça de enredo, diferente dos autos religiosos, pois a intriga desenrola-se ao longo de vários anos. A heroína é uma mulher de Lisboa cujo marido parte para a Índia. Durante a sua ausência, que dura alguns anos, a mulher assim deixada sozinha leva vida divertida, com a cumplicidade da criada, mantendo duas ligações simultâneas. Entretanto, o marido volta, tão pobre quanto partira, e narra campanhas pouco nobres, plenas de roubos e pelejas. A mulher por seu turno, mentindo com tranquila imprudência, afirma que esteve roída de saudades durante a ausência do seu querido esposo. E, para terminar, retomam a vida como se nada se tivesse passado.
O Auto é um contraponto às ideias feitas, à moral corrente e à ideologia oficial, sendo por isso o reverso do mito dos Descobrimentos.
Auto da Feira
É construído em torno de uma ideia central, que é a do comércio.
O autor representa o mundo sob a forma duma feira em que os principais vendedores são um Anjo e um Diabo. O primeiro freguês é nada menos do que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende, tendo em conta a data da peça. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos respectivos cônjuges, campónios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Anjo lhes vende. Tudo acaba com uma cantiga entoada pelas camponesas em louvor do Natal. Pretende-se com isto esvaziar a quadra do seu sentido litúrgico, transformando-a numa alegoria satírica ou farsa de chacota.
Auto da Barca do Inferno
É uma complexa alegoria dramática. É a primeira parte da chamada trilogia das Barcas (sendo que a segunda e a terceira são respectivamente o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória).
Os especialistas classificam-na como moralidade, mesmo que muitas vezes se aproxime da farsa. Proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos que cobre sejam pertinentes na actualidade.
Diz-se «Barca do Inferno», porque quase todos os candidatos às duas barcas em cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e a da Glória, com o Anjo – seguem na primeira. De facto é muito mais o auto do julgamento das almas.
O Auto tem uma estrutura definida, não estando dividido em actos ou cenas, por isso para facilitar a sua leitura divide-se o auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma nova personagem. A estrutura é vista pelo percurso cénico de cada personagem, que demonstra as suas acções enquanto «julgado».
Existe um percurso cénico padrão – as personagens começam por se dirigir à Barca do Inferno (que está mais enfeitada, que salta mais à vista), percebem que aquela barca se dirige ao «arrais infernal» e vão à Barca da Glória. Aqueles que não podem entrar nesta barca voltam à Barca do Inferno, onde acabam por ficar.
Os participantes dividem-se em dois grupos: as personagens alegóricas e as «tipo». No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal. Ao longo de toda a obra são como que os «juízes» do julgamento das almas tendo em conta os seus pecados e vida terrena. No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo (D. Anrique), o Onzeneiro, o Sapateiro (Joanantão), o Parvo (Joane), o Frade (Frei Babriel), a Alcoviteira (Brízida Vaz), o Judeu (Semifará), o Corregedor e o Procurador, o Enforcado e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrenas, o que os individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características um sinal de corrupção.
Cada uma representa uma classe social, uma determinada profissão ou mesmo uma crença. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam os seus pecados na vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento pelos mesmos.
Gerada numa época de transição, nascida no seio de uma sociedade que rapidamente se transformava, a obra de Gil Vicente reflecte, como nenhuma outra do seu tempo, o processo dialéctico dessa mudança, ainda que prisioneira das suas contradições.
A língua está intencionalmente enriquecida de variantes: as mesmas palavras aparecem na sua forma arcaica e na forma moderna da época, nas formas populares e de corte, com pronúncia portuguesa e hispânica, de mistura com fraseado em latim.
Gil Vicente era essencialmente cristão e as suas obras representam a visão da vida e da sociedade do seu tempo, através de um olhar moralista.
António Ferreira
Com A Castro, houve uma tentativa de ressuscitar a Tragédia Clássica.
Origem da Tragédia – A palavra vem do grego trágos + odé, que significa canto dos bodes ou canto para o bode. Crê-se que tem origem no facto de os actores se vestirem com pele de cabra. A origem da Tragédia encontra-se nas composições líricas corais que se faziam em honra de Dionísio (deus grego do vinho e alegria, equivalente a Baco nos romanos). Se os cantos e as danças, entusiastas, com sátiras a alguns aspectos da vida permitiram o aparecimento da comédia, as reflexões mais sérias e tristes que mostravam os aspectos negativos da existência, muitas vezes pela crença num destino funesto, provocaram o aparecimento da tragédia.
Estrutura da tragédia clássica latina:
- Prólogo – exposição inicial.
- Episódios – os atos que constituíam a intriga (3-4).
- Êxodo – desenlace ou desfecho.
Lei das três unidades:
- Unidade de ação – história de amor de Castro e Pedro contra o Estado.
- Unidade de lugar – Coimbra, junto do Mondego, Montemor-o-Velho.
- Unidade de tempo – Dois dias.
Papel do Coro – Espectador privilegiado que interpreta os sentimentos de outros espectadores. Um «ator» que interpreta as ideias do autor. Personagens de uma condição social superior.
Elementos intrínsecos característicos da tragédia:
- Híbris – desafio do protagonista aos deuses, às autoridades ou ao destino.
- Pathos – sofrimento intenso como consequência do desafio e capaz de despertar a compaixão do espectador.
- Agnórise – reconhecimento de um facto inesperado.
- Clímax – o crescendo trágico até à peripécia (mudança repentina de estado nas personagens, muitas vezes resultante da agnórise).
- Catarse – reflexão purificadora.
- Catástrofe – desfecho trágico.
Outros elementos:
- Némesis – vingança dos deuses ou do destino perante o desafio arrogante do homem.
- Destino – necessidade como fatalidade.
- Phóbos – sentimento de medo.
- Éleos – sentimento de piedade.
Em A Castro:
Ato I/II – Ambiente idílico.
Ato III/IV/V – Acontece a tragédia.
A Híbris n’A Castro encontra-se no desafio à sociedade, porque Dona Inês e D. Pedro insistem no seu amor contra as razões de Estado, que se vinga através dos conselheiros do rei.
A Pathos, que se traduz no sofrimento de Dona Inês, surge quer a partir das preocupações que encontra e que o sonho pressagístico confirma, quer quando enfrenta o rei e os conselheiros e conhece a sentença de morte.
O Clímax revela-se na gradação que conduz à certeza da morte, após o sonho e depois do encontro com o rei e os conselheiros. O coro é aqui um elemento preponderante, enquanto intervém na acção, anunciando a Inês a morte predita no sonho e confirmando essa morte.
A Catarse aparece em várias reflexões do coro e confirma-se como procura de purificação dos sentimentos e das acções humanas. É resultado dos sentimentos de terror e de piedade que se vão provocando nos espectadores.
Ato I – Amor de D. Pedro e de Dona Inês; inquietações.
Ato II – Preparação do desenlace; razões para a morte de Inês.
Ato III – Presságio da morte; impotência perante o destino.
Ato IV – Destino e razões para o Estado vencer o Amor.
Ato V – Vingança, Esperança no «reencontro».
António José da Silva
O advogado João Mendes da Silva e D. Lourença Coutinho eram judeus, cristãos-novos, que viviam no Rio de Janeiro, onde nasceu o filho, António José da Silva em 1705. Devido a isto, o futuro dramaturgo ficou conhecido como «O Judeu».
Aos oito anos veio para Portugal, formou-se em Direito, em Coimbra, e exerceu a advocacia em Lisboa. Ainda em Coimbra, foi preso, juntamente com a mãe, acusados da prática de judaísmo. Entretanto, casou com D. Leonor Maria de Carvalho, sua prima, também de origem judia. Em 1737 foi de novo preso, condenado à morte e executado em auto-de-fé, em Lisboa, em 1739.
A sua peça mais conhecida é Guerras de Alecrim e Manjerona.