O idílio tem a fantástica vantagem de estar sempre do outro lado das nuvens.
Imune ao mundano, pode exibir-se no seu cume glorificado, tão irresistível quanto fugidio, qual mitológica sereia.
Com facilidade se explanam os detalhes desses projectos grandiosos, em que as obras perfeitas reluzem nas suas capas esplendorosas, nos escaparates das melhores casas. Com ingenuidade se descrevem os cenários, as rotinas e as envolvências de todo o processo que levará ao êxito.
Acima de tudo, existe a autonomia financeira que permite uma dedicação exclusiva. Primeira e mais complexa utopia. Enquanto os restantes seres humanos, falhos do toque de Midas, se arrastam debaixo de chuva para filas de trânsito que os levam a empregos enfadonhos ou enervantes, nós podemos distender o corpo nos lençóis quentes, enquanto acordamos ao som das gotas a cantarolar na janela. Podemos passar a manhã a aconchegar o estômago com uma chávena de chá, escolher com calma os produtos frescos no mercado da esquina e dedicar a tarde ao mais recente sonho literário.
As noites serão atravessadas pelas leituras essenciais e inspiradoras. Sem patrão, sem horário que não o que decorre da nossa auto-disciplina, sem pressão.
As editoras estarão ansiosas, perguntarão em artigos da especialidade «por onde andava esta nova esperança literária» e as filas de caçadores de autógrafos estender-se-ão além-fronteiras.
Não será assim, de todo.
Se falharmos na tentativa de encontrar um exorcista complacente, estaremos contudo condenados a tentá-lo, até ao fim das forças. Não surgindo um milagre na lotaria, ou uma forma de rendimento colateral e fortuita, teremos sempre de perder a grande maioria do tempo numa função detestável. Detestável, mesmo que dentro da área preferida, com os colegas ideais e a remuneração justa. Detestável, simplesmente porque tem de existir para dar cobertura à única que importa, à que deveríamos estar a fazer.
Eis então o precipício redondo: sem o trabalho pago, rói-nos na consciência o tempo que gastamos a escrevinhar. Este existindo, os dias passam-se em ansiedade controlada, em busca das migalhas temporais onde nos vai ser permitido ter identidade.