Só em Portugal, parece que se publicam em média dez mil (10 mil) livros por ano.
Num mercado como o americano, por exemplo, os números podem ser 100 vezes superiores.
É evidente que estas são estatísticas gerais, que englobam todos os géneros e estilos, não se cingindo à Literatura (e dentro desta, à Ficção).
Contudo, os eventos literários e os workshops na área estão a abarrotar de sonhadores em busca de uma fresta por onde possam espremer os projectos, mais ou menos realistas.
Estamos por isso a falar de milhões de pessoas, publicadas ou não, que se candidatam a entrar na categoria de «Escritores».
Tenho de confessar que me contorço com esta definição há muitos anos. Onde se traçam as fronteiras? Quem as traça? Com base em que parâmetros?
Ainda hoje não consigo ter uma resposta conclusiva, mas entretanto, num desses eventos literários, deparei-me com um princípio.
O membro do painel separou a multidão em três categorias: os Escrevinhadores, os Escritores e os Autores.
Escrevinhadores seriam a grande maioria, todos os que rabiscam em cadernos avulsos ou teclam furiosamente no mundo virtual, passando pelos que acumulam pastas de ficheiros com projectos diversos. Podem ter um, dois ou dez livros na gaveta, um, dois ou dez blogues/sites temáticos, ou apenas uma mão cheia de poemas em guardanapos de café. Podem até ter gasto tempo e dinheiro (sobretudo dinheiro) em edições de autor, com tiragens de 100 a 250 exemplares e distribuído tudo pela família, amigos e círculos próximos. O ego/crise existencial terão ficado mais calmos, mas para o resto do mundo continuam todos no mesmo saco. O saco dos irrelevantes.
Escritores, pelo contrário, seriam todos os que passaram, seja de que forma for, pelo crivo das editoras tradicionais. E quando digo tradicionais, estou propositadamente a ignorar as gráficas, as empresas de publicação e todos os outros fornecedores de serviços que produzem livros, pagos pelo interessado a peso de ouro. Falo apenas da boa e velha editora (seja ela uma micro feita por duas pessoas ou o maior grupo editorial do mercado) que recebe um original, avalia-o e dá luz verde à sua publicação. O selo de aprovação de um conjunto de profissionais, que transforma o manuscrito num produto acabado, registado, pronto a entrar nas bases de dados das livrarias, é o que à partida transforma alguém em Escritor.
Por fim, os Autores. Estes, uma elite que, segundo o membro do painel, se distinguiria dos restantes por trazer algo de novo à Literatura, uma Voz, em suma. Claro, sempre dentro de certos limites, pois sabemos que Bocage se inspirou em Camões, que Camões se inspirou em Petrarca e por aí adiante. Contudo, todos eles são Autores, pois fizeram algo de novo com o já existente. São esses que ainda estarão na memória daqui a dez ou 50 anos. Um em cada mil.
Como digo, é uma boa tentativa de classificação, ainda que continue imperfeita.
Pois dentro do mar imenso onde esbracejam pretensos Escrevinhadores e pretensos Escritores, existem inúmeros vasos comunicantes e incontáveis fendas nas barragens que pretendem separá-los.
Por exemplo, alguém que produza texto atrás de texto, livro atrás de livro, mas que nunca tenha conseguido (pelas mais variadas razões, nem todas a ver com a qualidade dos escritos) a aprovação de uma editora, é forçosamente um Escrevinhador, ou apenas um Escritor por descobrir?
Por outro lado, um Escritor – no sentido restrito de alguém que consegue um contrato editorial – que seja também uma figura pública e que por isso não tenha qualquer dificuldade em ser aceite enquanto produto de marketing que garante avultados lucros, merece estar acima do Escrevinhador anónimo, mesmo que a qualidade do que produz seja bastante inferior? Alguém que contrata (e há muitos mais do que se possa pensar a fazê-lo) um denominado ghost writer, ou seja, um indivíduo que passa para o papel tudo o que o outro não quer ou não consegue explanar (muito comum em figuras públicas) mas que coloca assim o produto na prateleira, é um Escritor? E o dito «escritor fantasma», cujo nome nunca sairá da sombra, é por isso um mero Escrevinhador?
Existem conhecidos casos de Escritores (publicados), depois transformados em Autores e Prémios Nobel, cujos textos foram mais tarde reenviados (enquanto exercício) para editoras, com ligeiras alterações (parágrafos trocados, inícios editados), sob outro nome (desconhecido), tendo sido de imediato recusados pelos avaliadores. Inclusive, pelas próprias editoras que os tinham publicado, anos antes. O que prova que toda e qualquer definição/decisão é absolutamente subjectiva e que as razões aleatórias que sustentam as escolhas de uns em detrimento de outros podem ir desde a óbvia falta de qualidade do texto (opinião que varia de editor para editor) até ao simples facto de o avaliador estar bem ou mal disposto nesse dia em particular.
Todos os grandes mitos que viram as suas obras rejeitadas (muitas) dezenas de vezes antes de alguém, numa determinada conjuntura aleatória, ter decidido aceitá-los, eram Escritores antes da aprovação oficial? Ou Hemingway, Joyce, Fitzgerald, Kipling, Orwell e outros que tais, estavam ao nível de qualquer amador do século XXI antes dos altos poderes os resgatarem ao anonimato?
Segundo Rúben Alves, um escritor é alguém «louco, alfabetizado, paciente, motivado e imaginativo».
Quem sou eu para discordar?