Viveu entre 1891 e 1980. Ficou famoso por romper com os cânones literários, ao desenvolver um novo tipo de romance semiautobiográfico que misturava o estudo da personalidade, crítica social, reflexão filosófica, fluxo de consciência, linguagem explícita, sexo, associação livre surrealista e misticismo. Entre os trabalhos mais famosos estão Trópico de Câncer, «Primavera Negra», «Trópico de Capricórnio» e a trilogia «Rosa-Crucificação», baseadas nas suas vivências em Nova Iorque e Paris (publicações banidas nos EUA até 1961). Dedicou-se ainda a escrever diários de viagens, crítica literária e a pintar aguarelas.
Miller nasceu na casa de família, situada em Manhattan, Nova Iorque, filho de pais luteranos. Em criança, passou nove anos num bairro de Brooklyn, que seria mais tarde retratado em alguns dos seus trabalhos. Em 1900, acabou por se mudar para outra zona. Enquanto jovem, revelou simpatia pelo Partido Socialista Americano. Frequentou apenas um semestre da Faculdade.
O autor casou com a primeira mulher, Beatrice Sylvas Wickens, em 1917, tendo-se depois divorciado em 1923. Tiveram uma filha em 1919. Na altura, viviam em Brooklyn e Henry trabalhava numa conhecida empresa de comunicações (Western Union). Por volta de 1922, durante umas férias de três semanas, escreveu um primeiro romance – «Clipped Wings». Nunca chegou a ser publicado e dele sobrevivem apenas excertos, ainda que alguns deles tenham depois sido reciclados e inseridos noutros trabalhos, como «Trópico de Capricórnio». Miller afirmou mais tarde que esta primeira tentativa resultara num livro «muito longo e provavelmente muito mau».
Em 1923, ainda casado com Beatrice, Henry conheceu e apaixonou-se por uma misteriosa dançarina conhecida como June Mansfield, que contava apenas 21 anos. Envolveram-se, tendo depois casado em 1924. Nesse mesmo ano, Miller despede-se do emprego na companhia de modo a dedicar-se exclusivamente à escrita. O autor descreve esta fase – as agruras da escrita, os casos passionais, os falhanços, os amigos e alguma filosofia – na sua trilogia autobiográfica «Rosa-Crucificação».
Um segundo romance, «Moloch: or, This Gentile World», foi escrito entre 1927/28 e apresentado como um trabalho da autoria de June. Um abastado e idoso admirador, Roland Freedman, financiou a empreitada e a mulher mostrava-lhe semanalmente algumas páginas, afirmando serem dela. No entanto, o livro permaneceu na gaveta até 1992, 65 anos depois de ter sido escrito e 12 anos após a morte de Henry. «Moloch» aborda sobretudo o primeiro casamento do autor e os seus anos de trabalho na «Western Union». Um terceiro livro surgido pela mesma altura, «Crazy Cock», também ficou na sombra até à morte do autor. Inicialmente intitulado «Lovely Lesbians», «Crazy Cock» versava sobre a relação próxima da mulher com a artista Marion, apelidada por June de Jean Kronski. Esta viveu com o casal entre 1926 e 1927, altura em que ambas partiram juntas rumo a Paris. Este abandono enervou bastante o escritor, já que Miller desconfiava que as duas mantinham uma relação lésbica. Na capital francesa, as mulheres desentenderam-se e June regressou para junto de Henry alguns meses depois. Kronski suicidou-se por volta de 1930.
Em 1928, Miller passou vários meses em Paris com a mulher, uma viagem financiada por Freedman. A dada altura, numa rua da cidade, encontrou outro autor, Robert W. Service, que mais tarde recordou esse episódio na sua autobiografia:
Rapidamente a conversa caiu nos livros. Dava opiniões com autoridade, ridicularizando o pretensiosismo dos escrevinhadores do Bairro Latino, com as suas revistas bizarras.
Em 1930, mudou-se para Paris sozinho. Pouco depois começa a trabalhar em Trópico de Câncer, confessando a um amigo: «Começo amanhã o livro sobre Paris: primeira pessoa, sem censura, sem formalismos – que se lixe!». Apesar de passar por dificuldades financeiras no primeiro ano, as coisas mudam depois de conhecer Anaïs Nin que, juntamente com Hugh Guiler (seu marido), decidiu sustentá-lo ao longo da década de 30, incluindo a renda de um agradável apartamento. Nin tornou-se sua amante e financiou a primeira edição de Trópico de Câncer, em 1934. Descreveu ao detalhe nos seus diários a sua relação com Miller e com a mulher. O primeiro volume, respeitante aos anos de 1931-34, foi publicado em 1966. Nessa fase, June pediu o divórcio.
Em 1931, Miller arranjou emprego num jornal como revisor, graças a um amigo que lá trabalhava – Alfred Perlès. O autor aproveitou a oportunidade para editar alguns artigos de sua autoria, embora com o nome do outro, já que na altura apenas a equipa editorial tinha permissão para publicar no jornal. Esta fase acabou por se revelar bastante criativa, tendo Henry construído igualmente uma rede de contactos influentes que começaram a frequentar o seu apartamento. É nesta altura que um jovem escritor britânico, Lawrence Durrell, se torna um amigo inseparável. A correspondência trocada entre ambos será mais tarde publicada em dois livros. O autor deixa-se ainda influenciar pelos Surrealistas franceses.
Os seus trabalhos contêm quase sempre detalhes explícitos das suas experiências sexuais. O primeiro livro publicado foi banido nos EUA por ser considerado obsceno. As primeiras cópias vinham embrulhadas com o aviso: «Não enviar para os EUA ou Reino Unido». No entanto, manteve o hábito de escrever obras proibidas, como «Primavera Negra» (1936) ou «Trópico de Capricórnio» (1939), introduzidas depois de forma ilegal no mercado americano. Tal valeu-lhe a reputação de autor maldito. Apesar desta proibição se ter estendido por duas décadas, outro livro – «O Olho Cosmológico» – foi publicado em território americano em 1939, marcando a estreia de Miller nesse mercado. A obra é uma colecção de pequenos contos, alguns já presentes em «Primavera Negra».
Henry continuou a viver em França até meados de 1939.
Nesse ano, Durrell, que vivia em Corfu, sugeriu que Miller visitasse a Grécia. Este descreveu a experiência no livro «O Colosso de Maroussi» (1941), que considerou o seu melhor livro. Um dos primeiros elogios relevantes que obteve partiu de George Orwell, que afirmou em 1940:
Na minha opinião, trata-se do único escritor em prosa da língua inglesa com alguma imaginação e valor, nos últimos anos. Ainda que alguns possam considerar isto um exagero, não podem negar que Miller é um autor fora da caixa, que merece um segundo olhar.
No ano seguinte, o autor regressou a Nova Iorque. Seguiu-se uma viagem de um ano pelos EUA, essencial para o conteúdo de «Pesadelo em Ar Condicionado». Em meados de 1942, muda-se para a Califórnia, assentando em definitivo nessa região em 1944. Enquanto isso, os «Trópicos», embora proibidos em território americano, começavam a conquistar público na Europa e entre as comunidades de norte-americanos nos estrangeiro. Como já mencionado, entravam com frequência cópias nos EUA, que acabaram por chegar a determinado público, nomeadamente à Geração Beat. O seu maior representante era Jack Kerouac, o único que despertou o interesse de Miller. Tais obras acabariam por ser autorizadas na década de 60 e a sua reputação cresceu, mas por esta altura Henry tinha já pouco interesse em alimentar uma imagem de «escritor proscrito». Apesar disso, acabou por nunca afugentar por completo essa aura.
Em 1942, pouco depois da mudança para a Califórnia, Miller começou a escrever «Sexus», o primeiro romance da trilogia «Rosa-Crucificação». Nesta primeira parte, abordou um período de seis anos em Brooklyn, no qual se apaixonou por June e tentava por todos os meios tornar-se escritor. Tal como noutras ocasiões, toda a trilogia, terminada em 1959, começou por ser banida nos Estados Unidos, sendo apenas publicada em França e no Japão. Noutros trabalhos, escritos nos tempos da Califórnia, Miller mostrou-se bastante crítico da cultura consumista existente nos EUA, nomeadamente em «Sunday After the War» (1944) ou «Pesadelo em Ar Condicionado» (1945). «O Big Sur e as Laranjas de Jerónimo Bosch», publicado em 1957, é uma colecção de pequenas histórias sobre a sua vida e amigos nessa região.
Em 1944, conheceu e casou com a sua terceira mulher, Janina Martha Lepska, uma estudante de filosofia 30 anos mais nova. Tiveram dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Acabaram por se divorciar em 1952. Passado um ano, casou com a artista Eve McClure, 37 anos mais nova. Divorciaram-se em 1960 e esta morreu em 1966, provavelmente de complicações relacionadas com o alcoolismo. No ano de 1961, Miller marcou encontro em Nova Iorque com a ex-mulher (e protagonista de «Rosa-Crucificação») June. Não se viam há quase 30 anos. O autor confessará numa carta para Eve o seu choque com o «aspecto terrível» da ex-mulher, em acelerada degradação física e mental.
Em 1959, Miller escreveu um conto que considerou «a sua história mais estranha», um verdadeiro objecto de ficção intitulado «O Sorriso ao Pé das Escadas».
Em princípios de 1963, mudou-se para Los Angeles, onde passaria os últimos 17 anos da sua vida. Em 1967, casou-se pela quinta vez, agora com a cantora japonesa Hoki Tokuda. Por esta altura, começou a organizar jantares e reuniões com artistas e escritores da época.
Assim fala o autor sobre o facto de chegar aos 80 anos de idade:
Se nessa idade não estamos aleijados ou inválidos, se temos saúde, se ainda gostamos de caminhar, de comer, se conseguimos dormir sem ajuda de comprimidos, se ainda nos deixamos inspirar pelos pássaros, flores, montanhas e mar, podemos de facto considerar-nos afortunados. Devemos agradecer ao Senhor por tudo.
Miller e Tokuda divorciaram-se em 1977.
O autor acabaria por morrer na sua casa, em meados de 1980, com 88 anos.
Romance considerado «famoso pela sua sexualidade explícita» e responsável por contribuir para a noção de «liberdade de expressão, agora tida como garantida na Literatura». Nesse sentido, é uma obra de relevo do séc. XX.
Estou a viver na Villa Borghese. Não se vê uma grama de pó em lado nenhum, nem uma cadeira fora do sítio. Estamos sozinhos e estamos mortos.
Excerto introdutório
Miller escreveu o livro entre 1930 e 1934, durante o seu período de «vida nómada» em Paris. Eis a explicação oferecida para o título:
Assim foi porque para mim o cancro (câncer) é a doença da civilização, o término de um caminho errado, a necessidade de uma mudança radical, de começar do zero.
Situada em França (sobretudo Paris), entre o final dos anos 20 e princípio dos 30, a obra aborda a vida do autor enquanto aspirante a escritor. Numa parte mais avançada do texto, o próprio Miller procura explicar a sua abordagem artística:
Até agora, a minha ideia tem sido abstrair-me dos cânones. Passa mais por apresentar um renascimento das emoções, descrever a conduta de um ser humano na estratosfera de ideias, ou seja, quase à beira do delírio.
Combinação de autobiografia e ficção, alguns capítulos sujeitam-se a uma espécie de narrativa e falam de amigos reais do autor, bem como de colegas e locais de trabalho, enquanto outros nascem do fluxo de consciência, que redunda na ocasional epifania. O romance é escrito na primeira pessoa, à semelhança de outros trabalhos e não está sujeito a uma estrutura linear, flutuando entre passado e presente.
Funciona assim enquanto reflexão absorvente da condição humana. No seu quotidiano de aspirante a escritor, Miller descreve as suas experiências numa comunidade de boémios em Paris, que passam por ocasionais períodos de fome, indigência, solidão e desespero, a que se associa a separação da mulher:
Um tipo pode viver em Paris – disso me apercebi – apenas de desgosto e angústia. É uma dieta amarga – mas talvez a melhor para certo género de pessoas. De qualquer modo, ainda não era o fim da linha para mim. Estava apenas a brincar com o destino… Percebi então por que motivo Paris se torna tão atractiva para os torturados, os alucinados, os maníacos do amor. Entendi por que razão aqui, no centro da roda, podemos conceber as teorias mais fantásticas e inverosímeis, sem que a sua estranheza nos ocorra. É neste local que relemos os livros de juventude e neles descobrimos novo enigmas, um por cada cabelo branco. Caminhamos pelas ruas conscientes da nossa loucura, como possuídos, porque se torna óbvio que estes rostos indiferentes e frios são os guardiões de qualquer coisa. Todas as fronteiras desaparecem e o mundo assume a sua condição de matadouro.
Existem muitas passagens que descrevem explicitamente os encontros sexuais do narrador. Certos críticos argumentam que:
A comédia sexual é de cariz notoriamente baixo, embora com um apelo visceral bastante forte. As personagens em geral são caricaturas e as personagens masculinas tropeçam nos labirintos criados pelas suas ideias pré-concebidas sobre a Mulher.
Música e dança são outros temas recorrentes. A primeira é «sinal de uma vitalidade rejeitada a todo o instante pelo autor».
Para além do narrador na primeira pessoa de nome «Henry Miller», as personagens principais são:
Boris
Um amigo que aluga quartos na Villa Borghese. Baseado na pessoa de Michael Fraenkel, um escritor que dera abrigo a Miller nos seus dias mais difíceis, em 1930.
Carl
Um amigo escritor que se queixa constantemente dos optimistas, de Paris e do ofício da escrita. Miller ajuda-o a escrever cartas de amor para «uma cabra rica chamada Irene», e este depois relata ao primeiro o resultado do encontro. Carl vive num pardieiro e tem relações sexuais com um menor. Personagem baseada num companheiro de letras chamado Alfred Perlès.
Collins
Marinheiro que se torna amigo de Fillmore e Miller. Uma vez que este confessara a sua paixão por um rapaz, no passado, a cena onde o mesmo despe um Miller tomado pela doença é interpretada enquanto desejo homo-erótico.
Fillmore
Um «jovem do corpo diplomático» que se torna amigo de Miller. Convida-o a ficar em casa dele, sendo depois acompanhados por uma «princesa» russa de nome Macha. Fillmore e Miller perturbam o decurso de uma missa, durante uma ressaca. Na parte final do livro, Fillmore promete casamento a uma mulher francesa chamada Ginette, grávida dele, mas o facto desta possuir um temperamento abusivo e controlador faz com que Miller convença o outro a abandoná-la e a deixar Paris. Personagem baseada em Richard Galen Osborn, um advogado.
Mona
Personagem inspirada na segunda mulher do autor, June Miller. Este recorda-a com nostalgia.
Tania
Mulher casada com Sylvester. Inspirada em Bertha Schrank, mulher de Joseph Schrank. De notar que aquando da feitura do livro, Miller mantinha um caso tórrido com Anaïs Nin. Logo, reordenando as letras, podemos transformar Tania em Anaïs, bastando trocar o «T» pelo «S».
Van Norden
Amigo do narrador e decerto «o homem mais sexualmente corrupto» do enredo, revelando «total falta de empatia com as mulheres». Van Norden refere-se a estas com modos antipáticos que incluem «a minha cabra», «merda da cabra», «cabra rica» «cabras casadas», «cabra dinamarquesa» ou «cabras burras». Miller ajuda-o a encontrar quarto de hotel, local para onde este leva as conquistas «diariamente». Baseado em Wambly Bald, um colunista cor-de-rosa.