Excertos retirados de uma entrevista concedida a George Wickes, em 1962.
Sobre Métodos de Trabalho
«Geralmente começo a trabalhar logo a seguir ao pequeno-almoço, (…) agora prefiro as manhãs e apenas durante duas ou três horas. (…) Antigamente trabalhava de manhã, dormia a sesta depois de almoço e recomeçava a trabalhar, por vezes até à meia-noite. Nos últimos dez ou quinze anos, apercebi-me que não é necessário trabalhar tanto. Chega a ser prejudicial, esgotamos o reservatório».
«Quando me sinto bloqueado passo à frente, só regresso ao problema no dia seguinte».
«É impossível prever quando tempo me levará um livro. De qualquer modo é uma falácia acreditar nas datas que um autor apresenta como sendo o início e o fim de um livro, pois este não esteve a escrever durante todo esse tempo. Chegam a existir pausas de anos».
«Todas essas questões são fúteis. Que interesse tem, quanto tempo se demorou a escrever o livro? Se perguntarmos a (George) Simenon, ele dará uma resposta cabal: leva entre quatro e sete semanas. É com esse tempo que conta, pois os livros dele têm um tamanho padrão. Mas é uma excepção, é um daqueles autores que afirma ‘Agora vamos escrever isto’ e dedica-se a isso de forma completa. Barrica-se em casa, sem fazer ou pensar em mais nada. Eu nunca poderia suportar esse tipo de vida. Tenho muitas outras coisas que quero fazer em paralelo com a escrita».
«Nunca faço correcções ou revisão enquanto escrevo. Digamos que produzo um manuscrito e depois, quando este arrefece – deixo-o a marinar um bocado, um mês ou dois – já vejo a coisa com outros olhos».
«De certa forma, creio que a última coisa que preocupa um escritor ou outro artista qualquer é o conforto físico durante o trabalho. Talvez o desconforto seja mesmo uma ajuda, ou um estímulo. Há muitos que se podiam dar ao luxo de trabalhar numa atmosfera protegida, mas que escolhem criar em condições miseráveis».
Sobre a Natureza Psicológica do Escritor
«Penso que muitos escritores possuem algo que se pode apelidar de natureza demoníaca. Estão sempre envolvidos em problemas, não apenas os relacionados com a escrita, ou durante o processo de escrita, mas em todos os parâmetros da vida. Com o casamento, amor, negócios, dinheiro, tudo e mais alguma coisa. Está tudo interligado, é parte integrante da mesma coisa. É uma faceta da personalidade criativa. Existem excepções, mas é assim com a maioria».
«Um escritor não deve pensar demasiado. Não sou grande pensador, o meu trabalho nasce do âmago».
«Tenho muitas passagens tumultuosas, que poderiam continuar indefinidamente. Para mim é óbvio que é assim que se deveria escrever sempre. Está aqui a grande diferença entre o pensamento Ocidental e Oriental, ao nível do comportamento e disciplina».
«Todo o artista se força a uma certa disciplina, todos se condicionam de alguma forma. A maioria do trabalho de escrita é feito longe da secretária. Acontece sobretudo nos momentos pacíficos que envolvem uma caminhada ou o fazer da barba ou qualquer actividade lúdica. Ou mesmo a conversar com alguém».
«Existe algo mais forte que nós. Quem escreve de facto os grandes livros? O que é afinal um artista? É alguém com uma percepção extraordinariamente apurada, que descobriu um modo de se conectar com tudo o que paira na atmosfera, no cosmos. Possui essa facilidade. Existe de facto alguém original? Tudo o que fazemos, tudo o que pensamos, já existe. Somos apenas intermediários, eis tudo. Porque será que diferentes ideias, diferentes descobertas científicas ocorrem com frequência em diversas partes do mundo em simultâneo? O mesmo é válido para todos os factores que permitem a criação de um poema, de um romance ou de uma obra de arte. É algo que já existe no ar, à espera que alguém lhe dê voz. Precisa do autor, do artista, para ganhar forma».
«Se o escritor tiver a noção de quem é, terá de agir de forma extremamente humilde. Terá de se considerar alguém na posse de uma determinada faculdade, destinada a ser posta ao serviço de outros. Não possui qualquer razão para ser orgulhoso, o seu nome não significa nada, o seu ego é inútil. Não passa de um instrumento num longo processo».
Sobre A Vida Escrita e a Escrita Vivida
«Estava mergulhado numa bruma. Não fazia ideia do que estava a fazer, nem para onde me dirigia. Era suposto estar a trabalhar num romance, a escrever um romance extraordinário, mas no fundo não estava a chegar a lado nenhum. Por vezes não escrevia mais do que três ou quatro linhas por dia. A minha mulher chegava a casa ao fim da noite e perguntava: ‘Então, que tal vai?’ (Nunca a deixava ver o que tinha feito). E eu respondia: ‘Oh, está a correr muito bem’. ‘Bom e em que parte estás?’ É preciso dizer que provavelmente, de todas as páginas que deveria ter escrito, tinha apenas completado três ou quatro, mas acabava por descrever tudo como se tivesse escrito cem ou cento e cinquenta páginas. Divagava sobre o que tinha feito, compondo o romance à medida que falava com ela. Ela ouvia e encorajava-me, com a perfeita noção que eu estava a mentir. Uns dias depois voltava ao tema: ‘E aquele parte que falaste, em que ponto está?’. Era tudo um embuste, um jogo entre nós dois. Uma delícia, uma delícia…».
«Todo o meu trabalho desde ‘(Trópico de) Capricórnio’, passando por ‘Rosa-Crucificação’, é sobre os sete anos em que vivi com esta mulher, desde que a conheci até partir para a Europa. Não altura não sabia quando me iria embora, mas sabia que iria fazê-lo mais cedo ou mais tarde. Esse foi o período crucial da minha vida de escritor, imediatamente antes de abandonar a América».
«Até Trópico de Câncer pode dizer-se que não passava de um escritor divagante, influenciado por tudo e todos, procurando assimilar todas as tonalidades e matizes de cada um dos escritores que me agradavam desde sempre. Era um homem literário, digamos. Depois, tornei-me um homem não-literário: cortei o cordão umbilical. Decidi que iria fazer apenas o que era capaz de fazer, expressar aquilo que era – daí ter usado a primeira pessoa, já que escrevia sobre mim próprio. Decidi escrever sobre a minha experiência, acerca do que conhecia e sentia. E essa foi a minha salvação».
«Tudo o que aconteceu de significativo na minha vida aconteceu por mero acaso».
«O homem literário tem de ser exterminado. Como é óbvio isso nunca acontece, já que este é parte crucial da nossa personalidade enquanto escritores. Qualquer artista se deixa fascinar pelas questões técnicas. Contudo, o outro lado da escrita passa por nós. Descobri que a melhor das técnicas é não usar nenhuma, nunca me sinto compelido a aderir a nenhuma técnica ou corrente particular. Tento manter-me aberto e flexível, pronto a seguir ao sabor do vento ou do pensamento. Essa é a minha técnica, se quisermos, estar alerta e disponível, usar o que me parece correcto no momento».
Sobre Surrealismo e Dadaísmo
«Os surrealistas servem-se do sonho e isso é sempre uma maravilhosa e fecunda faceta da experiência. De forma consciente ou inconsciente, todos os escritores recorrem aos sonhos, mesmo quando não se consideram surrealistas. A mente desperta é o que menos importa ao mundo das artes. O processo de escrita passa por trazer à superfície o que é mais desconhecido em nós. Limitarmo-nos a transcrever aquilo de que estamos conscientes é inútil e não nos leva a lado nenhum. Isso qualquer um consegue fazer, com um pouco de prática, qualquer um consegue ser esse tipo de escritor».
«O Dadaísmo era ainda mais importante para mim do que o Surrealismo. Era algo de verdadeiramente revolucionário, um esforço deliberado e consciente de virar tudo do avesso, de demonstrar a insanidade do nosso quotidiano, a inutilidade dos nossos valores. Existiam grandes talentos no movimento dadaísta e todos tinham grande sentido de humor. Era algo para nos fazer rir, mas também para nos fazer pensar».
Sobre os Estados Unidos
«Sinto que a América está essencialmente contra a figura do artista, que o vê como seu inimigo, uma vez que este representa a criatividade e o individualismo. Esses conceitos são de alguma forma vistos como anti-americanos. Penso que de todos os países, os Estados Unidos são o mais mecanizado e robotizado».
«Encontrei na Paris dos anos 30 a liberdade que não conhecia na América. O contacto com as pessoas pareceu-me muito mais fácil – pelo menos com o tipo de pessoas que me agradavam. Conheci mais gente parecida comigo e acima de tudo, sentia-me tolerado. Nunca pedi para ser aceite ou compreendido, ser tolerado chegava-me. Nos Estados Unidos nunca senti isso, a Europa era um mundo novo para mim. Talvez tivesse sido semelhante noutro sítio qualquer – bastava estar num mundo diferente, exótico. Durante toda a minha vida – e isto faz parte da minha estranheza psicológica – sempre gostei do que era exótico».
«Em relação à Califórnia (…) enfim, tenho uma natureza Oriental. Como na China Ancestral, quando o artista ou filósofo começa a envelhecer e se retira para o campo. Tem a ver com existir e meditar em paz».
Sobre Paris, Escritores, Influências e sua Ausência
«Falava muito mais em Inglês enquanto estive em Paris do que Gertrude Stein. Mas estava mergulhado na língua francesa. Ouvir uma língua estrangeira de forma diária apura-nos a língua materna, torna-nos conscientes de matizes e tonalidades quase sempre ignoradas. Acabamos também por esquecer ligeiramente as coisas, o que nos torna desejosos de recordar certas frases e expressões. Tornamo-nos mais conscientes da própria língua».
«Nunca tive qualquer relação com o grupo de Gertrude Stein. Nunca a conheci nem ninguém das suas relações. Vendo bem, não conhecia quase nada de nenhum grupo. Fui sempre um lobo solitário, contra grupos, ajuntamentos, seitas, cultos, ismos e afins. Conheci alguns surrealistas, mas nunca me fiz membro do grupo surrealista ou de qualquer outro».
«Encontrei-me com (George) Orwell um par de vezes, quando visitou Paris. Não diria que é um amigo, apenas um conhecimento passageiro. Mas estava extasiado com o livro dele («Na Penúria em Londres e em Paris»), para mim é um clássico e o seu melhor livro. Apesar de ser um tipo bastante agradável, à sua maneira, acabei por achá-lo meio tolo. Tal como a maioria dos ingleses era um idealista e, na minha maneira de ver, um idealista tolo. Um homem de princípios, como é costume dizer-se. E os homens de princípios aborrecem-me».
«Considero a política algo de fundamentalmente podre e corrupto. Não nos levará a lado nenhum. Sobretudo o género de política idealista defendida por Orwell. O problema dos idealistas na política é que carecem de um sentido de realidade. E um político, para sê-lo, tem sobretudo de ser realista. Esta gente cheia de ideais e princípios está toda fora de contexto, parece-me. É preciso ser-se duro, quase criminoso, para se ser um político, alguém pronto a sacrificar o povo, a chaciná-lo se preciso for, em nome de uma ideia, boa ou má. Apenas esses atingem o sucesso político».
«É difícil escolher, porque os escritores de quem gosto são muito diferentes. São escritores que se transformam em mais do que isso. Têm um factor X misterioso, de certa forma metafísico, oculto. Um factor extra que extravasa as fronteiras da Literatura. A questão é que as pessoas lêem para se divertir, para passar tempo ou para serem instruídas. Eu nunca fiz nenhuma destas coisas, li apenas para me evadir de mim mesmo. Por isso procuro sempre os autores que me façam sentir assim».
Sobre (claro) Obsceno
«É muito simples. O obsceno é o essencial, a pornografia é o acessório. Acredito na partilha da verdade, de forma fria e chocante se necessário, sem disfarces. Por outras palavras, o obsceno é um processo catártico, enquanto a pornografia se limita a acrescentar camadas de sujidade».
«Nas civilizações primitivas existia um motivo para os tabus, ao contrário da vida de hoje em dia, nas sociedades civilizadas. Nessas, o tabu é algo de perigoso e doentio. Os povos civilizados não precisam de códigos morais ou de princípios. Falamos neles, prestamos uma espécie de vassalagem oral, mas no fundo ninguém acredita em tal coisa. Ninguém pratica estas regras, não existe espaço para elas no quotidiano. Os tabus não passam de cabides, de produtos de mentes doentias, diria, de pessoas cobardes que não tiveram a coragem de viver e que sob uma capa de moralidade e religiosidade nos impõem estas coisas. Para mim o mundo civilizado tem de estar livre de religião. A prática religiosa em vigor nas sociedades civilizadas é sempre algo de falso e hipócrita, o completo oposto do pretendido por qualquer profeta».
«A actual ‘civilização’ forma parelha com a palavra ‘morte’. Vejo-a enquanto algo mutilado e tem sido assim desde sempre. Não sou daqueles que acredita nos ‘anos de ouro’. Considero que tal fase, a ter existido, foi apenas para uns poucos escolhidos, enquanto as massas permaneceram na miséria, esmagadas por superstições, ignorância, pressões de todo o género, estranguladas pela Igreja e pelo Estado. Esta civilização é a arteriosclerose da Cultura».
«Se exagero na obscenidade? Se o fizer, que mal tem? Por que razão isso nos preocupa tanto, o que temos a recear? Palavras, palavras, o que temos a temer nelas? Ou nas ideias que elas descrevem? Suponhamos que falam de algo perturbador, seremos por acaso cobardes? Não enfrentámos já tudo e mais alguma coisa, não estivemos à beira da destruição vezes sem conta, através de guerras, doenças, pestilência, fome? Que temos a recear do hipotético exagero da obscenidade? Onde está o perigo?».
«Não escrevo nada que não se encontre nos jornais americanos. Essa sim, uma escrita sádica, perversa e grotesca. A minha ao menos é alegre e natural, sendo por isso saudável. Não escrevo nada que as pessoas não digam ou façam constantemente. Afinal onde fui buscar tais coisas? Não as tirei do bolso. Estão à nossa volta, respiramo-las todos os dias, as pessoas é que se recusam a aceitar isso. Entre a palavra escrita e a palavra falada, onde está a diferença? Sabe que nem sempre lidámos com estes tabus. Houve um tempo na Literatura em que quase tudo era permitido. Foi apenas nos últimos dois ou três séculos que esta atitude ganhou raízes».
«Penso que escrevi equitativamente sobre temas metafísicos e sexo. O problema é que os críticos prestam apenas atenção ao sexo».
Sobre Cinema
«O que mais lamento é o facto de o Cinema enquanto meio nunca ter sido explorado como devia. É um meio poético, recheado de possibilidades. Basta pensar em temas como o Sonho e a Fantasia. Quantas vezes se aborda isso? Uns pozinhos aqui e ali. E atente-se em todos os meios técnicos ao nosso dispor, sem que tenhamos sequer começado a explorar tudo. Poderíamos criar maravilhas incríveis, dar origem a uma alegria e beleza sem limites. E o que fazemos? Pura porcaria. O Cinema é a mais livre de todas as linguagens, eu aliás ficaria satisfeito se chegasse o dia em que este pudesse substituir a Literatura. Nos filmes recordamos rostos e gestos, de uma forma impossível de fazer nos livros. A Música tão-pouco atinge o mesmo grau de envolvimento. Vamos a um concerto e a atmosfera é má, temos pessoas a bocejar ou a adormecer, o evento arrasta-se, não tocam as músicas que queremos e por aí fora. O Cinema (…) é o equivalente a uma chuva de meteoritos».
Miller sobre Miller
«Comecei a escrever de forma séria aos trinta e três anos. Até então não acreditava em mim enquanto escritor, enquanto artista. Escrevi todos estes livros autobiográficos não por me considerar uma pessoa assim tão importante, mas por – apesar de agora soar absolutamente ridículo – considerar que estava a contar a história mais trágica alguma vez vivida por alguém. Acabei por descobrir que sou apenas um amador do sofrimento, como é óbvio. E até, que tudo o que passei foi bom para mim, pois abriu-me as portas de uma vida mais feliz a partir do momento em que aceitei o sofrimento passado. Quando assim é, o coração abre-se como uma flor».
«O sucesso não me diz nada. Para mim é tudo irreal e acaba por me ser desagradável. As pessoas preocupam-se com algo que já deixou de me preocupar. Como todos agora estão muito entusiasmados (com os livros) pensam que eu também tenho de estar. Consideram que deve ser uma grande coisa para mim, ser finalmente aceite. Eu pelo contrário acho que já fui aceite há muito tempo, pelo menos por aqueles que me interessavam. Ser agora aceite pela multidão anónima não me diz nada. Acaba mesmo por ser doloroso, porque acontece pelas razões erradas. Ou seja, é um fenómeno sensacionalista, em nada relacionado com o meu valor enquanto artista».
«O ponto de vista do autor é apenas um entre muitos. A sua visão acerca do valor do seu trabalho perde-se no meio de todas as outras opiniões. Será que o autor conhece o seu trabalho tão bem como imagina? Tendo a pensar que não. Considero que este é acima de tudo um intérprete, que ao sair do próprio transe acaba por ser surpreendido pelas próprias palavras e actos».