Stendhal

Viveu entre 1783 e 1842. Sendo o verdadeiro nome do autor Marie-Henri Beyle, este ficou no entanto conhecido por Stendhal. Entre as principais obras contam-se os romances O Vermelho e o Negro (1830) e «A Cartucha de Parma» (1839). Tornou-se conhecido e respeitado pela detalhada construção psicológica das suas personagens, sendo considerado um dos primeiros e principais adeptos do Realismo.

Nascido em Grenoble, Isère, na zona oriental de França, revelou-se uma criança infeliz, desagradado com um pai «pouco imaginativo» e lamentando a prematura morte da mãe, que ele adorava mas que faleceu quando o autor tinha apenas sete anos. Passou «os anos mais felizes da vida» na casa de campo da família, situada em Claix, perto de Grenoble. Tinha como melhor amiga a sua irmã mais nova, Pauline, com quem manteve correspondência frequente ao longo da primeira década do século XIX.

As realidades militar e teatral, características do Primeiro Império Francês (Napoleão Bonaparte) impressionaram o jovem Beyle. Foi-lhe atribuído um cargo administrativo no Conselho de Estado a 03 de Agosto de 1810, tendo este passado a fazer parte da Administração Francesa e depois participado nas guerras napoleónicas em Itália. Viajou profusamente pela Alemanha e integrou o exército napoleónico em 1812, aquando da invasão da Rússia.

Stendhal testemunhou os incêndios de Moscovo a partir dos arredores da cidade. Foi nomeado Comissário de Guerra responsável pelos Mantimentos do Exército e enviado para Smolensk de modo a prestar apoio às tropas em retirada. Atravessou o rio Berezina através de uma rota alternativa, abdicando da ponte sobrelotada, escolha que provavelmente salvou a vida de muitos homens, incluindo a sua. Voltou a Paris em 1813, desconhecedor dos contornos trágicos associados à evasão militar. Stendhal ganhara a fama, durante a Campanha Russa, de nunca perder a lucidez ou como ele dizia, manter o «sangue frio e a cabeça limpa». Mantinha também a rotina, barbeando-se todos os dias durante a retirada.

Após o Tratado de Fontainebleau, assinado em 1814, emigrou para Itália, instalando-se em Milão. Acabou por criar fortes laços com o país, passando aí boa parte do resto da carreira, enquanto cônsul francês em Trieste e Civitavecchia. Um dos seus romances, «A Cartucha de Parma», escrito em apenas 52 dias, decorre em Itália, que o autor considerava um país muito mais transparente e apaixonado do que a França do período da Restauração. Nessa obra, o autor afirma, por exemplo:

Para que isto fique claro nas mentes dos meus leitores franceses, elucido que em Itália, um país muito distante do nosso (para os padrões da época), as pessoas ainda se entregam ao desespero amoroso.

Stendhal identificava-se com um movimento emergente conhecido como Liberalismo e o seu advento em Itália convenceu-o de que o Romantismo enquanto género literário era o equivalente do Liberalismo político. Quando o autor foi nomeado cônsul em Trieste, no ano de 1830, acabou por originar alguns anticorpos devido ao seu evidente liberalismo e anticlericalismo.

Stendhal tornou-se também um diletante e um boémio frequentador das ruas de Paris, onde dava largas à sua faceta de mulherengo. Esta genuína cumplicidade com o género feminino torna-se evidente nos seus livros, tendo o autor sido bastante elogiado por Simone de Beauvoir na obra desta, «O Segundo Sexo». Um dos seus primeiros textos é «Do Amor», uma análise racional da paixão romântica, inspirada no amor não correspondido que este manteve por Mathilde, Condessa de Dembowska, que conheceu no seu período de Milão. Esta fusão – e simultânea oposição – entre análise fria e sentimento amoroso está presente nos melhores romances do autor, pelo que podemos considerá-lo um realista romântico.

Stendhal padeceu de enormes problemas físicos nos últimos anos de vida, apesar de continuar a produzir alguns dos seus melhores trabalhos. Tal como ficou registado no seu diário, foi-lhe administrado iodeto de potássio e mercúrio para tratamento da sífilis, o que lhe valeu diversos efeitos secundários: axilas inchadas, dificuldades em engolir, dores testiculares, insónia, tonturas, zumbidos nos ouvidos, pulso acelerado e «tremores tão fortes que mal podia segurar num garfo ou numa pena». A medicina moderna comprova que estes sintomas eram provocados sobretudo pelo tratamento e não pela doença.

O autor acabou por falecer a 23 de Março de 1842, poucas horas depois de colapsar nas ruas de Paris. Foi enterrado no Cemitério de Montmartre.

Antes de estabilizar sob o nome Stendhal, o autor serviu-se de muitas outras opções literárias, incluindo «Louis Alexandre Bombet» e «Anastasius Serpière». O único livro publicado com o seu verdadeiro nome foi «The History of Painting» (1817). A partir dessa data, começou a assinar «M. de Stendhal, oficial de cavalaria». Esta escolha foi inspirada na cidade alemã de Stendal, local de nascimento de Johann Joachim Winckelmann, um historiador e arqueólogo famoso na época.

No ano de 1807, Stendhal passara algum tempo perto da cidade de Stendal, onde se apaixonara por uma mulher chamada Wilhelmine, que ele chamava simplesmente Minette e que o motivou a permanecer no local:

Não tenho qualquer interesse, de momento, a não ser em Minette, nesta loura e charmosa Minette, esta alma do Norte, de uma beleza que nunca encontrei em França ou Itália.

Stendhal acrescentou um «H» ao nome, para tornar mais clara a pronunciação germânica.

O autor serviu-se de inúmeras designações nos seus escritos autobiográficos e em correspondência, oferecendo com frequência pseudónimos a amigos, que os utilizavam. Terá inventado mais de 100 pseudónimos, com uma variedade impressionante. Enquanto alguns foram usados uma única vez, outros eram recorrentes. «Dominique» ou «Salviati» eram utilizados em situações íntimas. Outras vezes, recorre a opções cómicas «que o tornam ainda mais burguês do que ele já era: Cotonnet, Bombet, Chamier»: Uma boa parte, chegam mesmo a ser ridículos – «Don phlegm», «Giorgio Vasari», «William Crocodile», «Poverino», «Baron de Cutendre».

Um dos correspondentes, afirma:

Nunca terá escrito uma carta que não esteja assinada por um nome falso.

O Diário do autor e outros escritos autobiográficos estão recheados de comentários sobre máscaras e os prazeres de «experimentar a vida nas suas muitas versões». «Encarem a vida como se esta fosse um baile de máscaras», sugere ele, em 1814. Noutra ocasião, explica:

Acreditam em mim, se vos disser que usaria com agrado uma máscara e ficaria encantado se pudesse mudar o meu nome? A minha suprema felicidade seria poder transformar-me num alemão loiro e percorrer assim as ruas de Paris.

Os leitores contemporâneos do escritor foram incapazes de compreender e apreciar na totalidade o seu estilo realista, numa época em que vigorava o Romantismo. Essa validação chegou apenas no princípio do século XX. Este dedica a sua obra aos «Happy Few» (em Inglês no original). Tal pode ser interpretado enquanto referência ao Canto 11 de «Don Juan», de Lord Byron, que menciona os «thousand happy few» que apreciam a alta sociedade, ou ao verso «we few, we happy few, we band of brothers» de «Henrique V», da autoria de William Shakespeare, mas é provável que Stendhal se refira antes à obra «The Vicar of Wakefield» de Oliver Goldsmith, da qual memorizou algumas partes numa altura em que estudava Inglês sozinho.

Nesse trabalho, os «happy few» são, ironicamente, o reduzido número de pessoas que lêem a obra medíocre e arrogante do personagem principal.

Hoje em dia, a obra do autor é válida devido à sua dimensão histórica e psicológica, bem como pela ironia associada. Stendhal era um adepto insaciável de música, sobretudo de compositores como Domenico Cimarosa, Wolfgang Amadeus Mozart e Gioacchino Rossini. Chegou mesmo a escrever uma biografia de Rossini, «Vie de Rossini» (1824), mais valorizada pela detalhada crítica musical do que pela relevância histórica.


Romance histórico de cariz psicológico em dois volumes, publicado em 1830.

Aborda o desejo de ascensão social de um jovem provinciano, através de uma combinação de talento, trabalho árduo, engano e hipocrisia. Este acaba por ser traído pelas próprias paixões.

O título completo da obra, (O Vermelho e o Negro: Uma Crónica do séc. XIX), revela a dupla intenção do autor em construir não só um retrato psicológico do protagonista romântico, Julien Sorel, mas também uma sátira analítica e sociológica da realidade francesa no período histórico compreendido entre 1814–30.

Presume-se que o título se refere à tensão entre os interesses clericais (Negro) e seculares (Vermelho) do protagonista, mas é apenas uma interpretação entre muitas.

A obra é vista como um romance de «maioridade» de Julien Sorel, o inteligente e ambicioso protagonista. Este é originário de uma família pobre e nada conhece dos meandros característicos do mundo que se propõe conquistar. Alberga múltiplas ilusões românticas, mas acaba por se transformar num mero peão nas maquinações políticas das pessoas influentes e implacáveis que o rodeiam. O enredo satiriza a sociedade francesa dos inícios do séc. XIX, acusando a Aristocracia e o Clero de materialismo e hipocrisia, prenunciando assim as mudanças radicais que em breve os derrubariam das suas posições de liderança.

A epígrafe do primeiro volume «La vérité, l’âpre vérité» (A verdade, a cruel verdade), é atribuída a Danton, mas à semelhança da maioria das epígrafes ao longo do livro não passa de ficção.

Enredo

Livro I

Julien Sorel, o ambicioso filho de um carpinteiro nascido na aldeia fictícia de Verrières, na zona oriental de França, prefere gastar os dias a ler e a fantasiar com as vitórias gloriosas do exército napoleónico, há muito desmembrado, do que auxiliar o pai e os irmãos no negócio da madeira. Estes fazem-lhe a vida difícil, menosprezando as suas pretensões intelectuais. Sorel torna-se acólito do Abade Chélan, a figura religiosa local, que lhe oferece uma posição como tutor dos filhos de Monsieur de Rênal, o presidente da câmara de Verrières. Embora construa uma fachada de clérico austero e pio, Julien pouco se interessa pelos estudos religiosos, com excepção do lado literário da Bíblia e da sua capacidade para memorizar passagens em Latim, muito útil quando se trata de impressionar as patentes superiores.

Inicia um romance proibido com a mulher do presidente, que se vê obrigado a terminar quando uma empregada de nome Elisa, que também está apaixonada por Julien, torna o caso público. O Abade Chélan envia então Julien para um seminário em Besançon, local que este considera monótono e recheado de «grupinhos». O director da instituição, Abade Pirard, apesar de inicialmente cínico, acaba por simpatizar com o recém-chegado e torna-se no seu protector. Quando mais tarde fica iminente a sua saída, este receia que Julien sofra as consequências de ter sido o seu predilecto e move influências para que o mesmo se torne no secretário privado do Marquês de la Mole.

Livro II

Nos anos que antecedem a Revolução de Julho de 1830 (segunda Revolução Francesa), Julien Sorel vive em Paris, como empregado da família de la Mole. Apesar de se ter transformado num indivíduo sofisticado e intelectual, continua a ser visto como um plebeu rude pelos membros da família e respectivos amigos, sendo quase sempre tratado com paternalismo. Este está no entanto bem ciente do materialismo e hipocrisia que caracterizam a elite parisiense, bem como da impossibilidade de cidadãos, mesmo com intelecto e sensibilidade superiores, atingirem cargos públicos, caso não sejam bem relacionados.

Julien acompanha o Marquês de la Mole a uma reunião secreta, sendo depois enviado numa perigosa missão que inclui recitar de cor uma carta ao Duque d’Angoulême, exilado em Inglaterra. Contudo, deixa-se envolver ingenuamente num inesperado caso amoroso e decora a mensagem de forma superficial, perdendo-se assim o significado político que a tornava importante. Sem disso se aperceber, arrisca a vida ao serviço dos monárquicos que tanto odeia, já que considera estar apenas a fazer um favor ao Marquês, seu patrão, que lhe merece respeito.

Entretanto, a sensual filha do Marquês, Mathilde de la Mole, enfrenta um drama emocional. Está dividida entre a paixão que sente por Julien (à conta das suas admiráveis qualidades pessoais e intelectuais) e a sua repulsa em envolver-se sexualmente com um homem de classe inferior. Este começa por achá-la desinteressante, mas a situação muda à conta das simpatias que recebe e da admiração que esta provoca nos outros. Por duas vezes é seduzido e rejeitado por ela, deixando-o mergulhado numa mescla de desespero, dúvida e felicidade (ao notar que esta o preferiu no lugar de outros pretendentes aristocráticos).

É apenas no decurso da sua missão secreta que este descobre a chave para conquistá-la em definitivo: um cínico jogo amoroso, que lhe é explicado pelo Príncipe Korasoff, um russo diletante. Com grande dificuldade, Julien simula um estado de indiferença para com Mathilde, provocando-lhe um ataque de ciúmes com um maço de cartas amorosas que pretendem supostamente cortejar Madame de Fervaques, uma viúva que se move no círculo social da família de la Mole.

À conta disso, Mathilde cai de amores por Julien, acabando mesmo por confessar que está grávida dele embora fique – durante a estadia deste em Inglaterra, em missão diplomática – oficialmente noiva de Monsieur de Croisenois, um jovem nobre, agradável e rico, herdeiro de um ducado.

Ao descobrir o romance entre os dois, o Marquês de la Mole não esconde a revolta, mas acaba por acalmar-se à conta da determinação da filha e da sua própria simpatia por Julien, oferecendo-lhe uma propriedade rentável, um título aristocrático e uma comissão militar no Exército. No momento em que se preparava para abençoar o casamento entre os dois, o Marquês recebe uma carta versando o carácter de Julien, remetida pelo Abade Chélan, o primeiro benfeitor de Sorel em Verrières. Esta foi na verdade escrita por Madame de Rênal, influenciada pelo Abade, seu confessor e nela se fazem avisos acerca do carácter interesseiro do protagonista, descrito como um predador de mulheres emocionalmente frágeis.

Ao ser informado de tudo, Sorel regressa armado a Verrières e atinge Madame de Rênal durante a missa na Igreja local. Esta sobrevive mas ele é preso e condenado à morte. Mathilde procura salvá-lo subornando autoridades locais e a própria Madame de Rênal, ainda apaixonada por ele, recusa testemunhar e apela à sua absolvição, com o auxílio dos padres que participaram na sua educação desde tenra infância. Apesar de tudo, Julien parece determinado a aceitar o destino, pois considera que a sociedade materialista em que está inserido não está disposta a aceitar um homem de origens humildes, quaisquer que sejam as suas adquiridas valências intelectuais ou emocionais.

Entretanto, o futuro duque, Monsieur de Croisenois, um dos afortunados produtos da sociedade em causa, morre num duelo relacionado com a defesa da honra de Mathilde de la Mole. Apesar do amor desta permanecer intacto, a teimosia romântica e intelectual de Julien tornam as visitas à prisão um dever e pouco mais.

Quando o mesmo é informado de que Madame de Rênal sobreviveu ao ataque, o seu velho amor por ela renasce, concluindo-se que apenas ficara adormecido durante o período parisiense. Esta também o visita na prisão.

Depois da morte deste na guilhotina, Mathilde de la Mole recria a conhecida narrativa datada do séc. XVI sobre a Rainha Margot, que beijou a cabeça cortada do seu amante, Joseph Boniface de La Mole. Para além disso, manda construir um altar na tumba de Julien.

Madame de Rênal, mais discreta, morre nos braços dos filhos, três dias depois.

Análise

A obra situa-se no período histórico correspondente aos últimos anos da Restauração dos Bourbon (1814–30) e o advento da segunda Revolução Francesa, que originou o Reinado dos Franceses (1830–48).

As ambições cosmopolitas de Julien Sorel nascem das tensões entre o seu Republicanismo utópico associado à sua nostálgica fidelidade a Napoleão e a real política resultante de uma conspiração associada à contra-revolução, alimentada por nobres como o Marquês de la Mole, para quem Julien trabalha para garantir a sobrevivência.

Stendhal questiona com frequência a validade e até a importância de uma pretensa «honestidade», uma vez que a maioria das personagens, em especial o protagonista, estão bastante conscientes da necessidade de representarem um papel em nome da aprovação social. O termo «hipocrisia» nasce aqui da contradição entre pensamento e sentimento.

O filósofo e crítico René Girard identifica na obra uma estrutura triangular que intitula «desejo mimético». Segundo o mesmo, desejamos alguém somente quando este/a é desejado/a por outra pessoa. Ou seja, o desejo entre duas pessoas é sempre mediado por uma terceira. Tal comprova a perversidade do relacionamento entre Mathilde e Julien, tornada evidente quando este começa a seduzir a viúva Fervaques para despoletar o ciúme de Mathilde, para além de assinalar o fascínio e tentação do protagonista pela alta sociedade que tanto despreza.

André Gide considera que se trata de um romance à frente do seu tempo, mais apropriado para leitores do século XX, já que na época do autor os romances de ficção eram constituídos por diálogos e descrições de um narrador omnisciente.

A grande contribuição literária de Stendhal foi a introdução de factores psicológicos (sentimentos, pensamentos, monólogos interiores) associados às personagens, sendo por isso considerado o criador do romance psicológico.

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