Vertigo


Prefácio

O clássico dos clássicos: «Vertigo» – a tradução portuguesa, que se fica por «A mulher que viveu duas vezes» está muito longe de lhe fazer justiça. «Vertigem» seria muito mais eficaz que a palavrosa e mutilada escolha e desconfio que Alfred Hitchcock concordaria comigo, mas prossigamos sem obcecar no tema, pois como os protagonistas do enredo bem sabem, obsessões há muitas e bem mais graves.


O Filme

 


Se existe filme que aborda o tema da obsessão em toda a sua força, é este.

Personagens reais existem poucas, mas cada uma delas desdobra-se em múltiplas, numa óbvia vertigem de identidades. A tontura começa  mesmo antes de se iniciar o filme, pois é logo no genérico que nos precipitamos na espiral que indica todas as «quedas» futuras. Sempre à conta do «ser feminino», sejam aqueles olhos de quem forem. Estamos na vertigem do real ou na vertigem do sonho quando um criminoso é perseguido nos telhados por dois polícias? O segundo, protagonista, falha um salto e fica suspenso de um algeroz, à beira da queda mortal. O primeiro tenta ajudá-lo, mas acaba por escorregar e precipitar-se no vazio (primeira vertigem-queda).

Quem salva então o protagonista? Ele próprio? Caiu? Não caiu? Sobreviveu à queda? Terá vivido ou sonhado tal episódio? Não se sabe. Logo depois, encontramo-lo vivo e de boa saúde no apartamento de uma amiga, em tempos noiva. A construção racional sugere que ficou debilitado com o «sucedido», física e psicologicamente. Antecipou a reforma ao ser diagnosticado com acrofobia (medo de lugares altos) e consequentes vertigens.

A primeira obsessão é portanto clínica/psicológica.

Sub-repticiamente, as pequenas obsessões entre o «casal». Ela quer estar com ele, mas de uma forma demasiado maternal e protectora (que pressupõe sempre controlo) e os sinais na conversa são evidentes, sugerindo um elemento que quer soltar-se (está a trabalhar num inovador e revelador modelo de sutiã) aprisionando «Devias continuar a trabalhar…não? Então devias talvez retirar-te para o campo…» e um elemento já aprisionado na sua aparente liberdade «Sou relativamente independente, nas finanças», «Libertar-me-ei destas vertigens passo a passo», «Vivo sozinho porque quero».

Entra novo jogador na trama, um ex-colega de faculdade do protagonista, agora um industrial casado com a fortuna da mulher. A sua obsessão é com ele próprio.

Pretende libertar-se da esposa que não ama, dos negócios que o aborrecem e da cidade que deixou de corresponder ao seu imaginário. Não é bem isto, contudo, o que ele conta. Oficialmente, quer que o ex-polícia siga a mulher, que começou a revelar um estranho comportamento, vagueando pela cidade e parecendo obcecada com o destino de uma bisavó, em tempos abandonada e suicidária.

Ainda que resistente «não quero muito ser arrastado para uma coisa desse género», o protagonista não resiste à «vertigem» da investigação. Começa então a desenrolar-se (ou a enrolar-se) o novelo, com repetitivos percursos de carro, visitas diárias a museus, cemitérios, igrejas e hotéis, todos eles locais de peregrinação e morte. A mulher do industrial parece de facto mergulhada na obsessão pela bisavó, receosa de poder repetir-lhe o destino, suicidando-se na juventude. O ex-polícia fica por sua vez obcecado pela mulher, pela sua beleza e perturbação, por uma imagem de perfeição e misticismo que nunca encontrou na ex-noiva.

Nova aparente inconsistência na história, a não ser que nos lembremos de como já é bizarro que o protagonista esteja vivo. A dado momento, este vê a mulher entrar num hotel e abrir as cortinas da janela do primeiro andar. Entra, fala com a dona do espaço, que lhe confirma que uma senhora costuma alugar aquele quarto, mas que de momento está ausente. Ele insiste, sobe as escadas, mas o quarto está de facto vazio. Vai à janela mencionada e desta, pergunta: «onde está o carro? O carro da mulher que entrou neste quarto?».

Se estamos acordados e ela entrou no hotel, como conseguiu sair, regressando ao carro sem que ninguém a visse? E porque razão lhe garante a dona que o quarto está vazio? Por outro lado, se o protagonista está a sonhar, como já teria sonhado o acidente inicial, onde começa a realidade? Que filme estamos a ver?



Por esta altura, o próprio espectador já estará, também ele, acometido de convenientes vertigens narrativas. A explicação fica por dar e logo saltamos para nova vigilância, na qual a musa observada tomba no rio, sendo de imediato salva pelo seu «protector». Aparentemente só consegue recuperar os sentidos horas depois, tendo sido entretanto levada para casa deste.

Obrigatória menção ao carácter dúbio, e por isso confuso, das personagens.

Uma mulher que cai ao rio e não recupera os sentidos não é levada para casa, mas para o hospital mais próximo. Contudo, o ex-polícia entende acertado transportar a esposa de um vago amigo de juventude para o quarto, despi-la até à nudez e secar-lhe a roupa na cozinha, enquanto aguarda que ela desperte. Não tem, na sua obsessão crescente, qualquer constrangimento moral – notar que estamos em 1958.

A «vítima» por sua vez, enquanto mulher casada, ao «despertar» sem noção do que lhe aconteceu, completamente nua na cama de um estranho, não entra em histeria ou choque indignado. Veste um robe transparente e dialoga com o desconhecido, por entre olhares e toques de mão. Menciona, de passagem, o seu estatuto de comprometida, mas está mais preocupada em admirar «o nome agradável e forte» do salvador.

O marido à beira do ultraje, tão-pouco se preocupa demasiado. Telefona para o amigo em busca de informações: «Ainda não chegou a casa. Ah, caiu ao rio? Está bem. Está na tua cama a descansar? Está bem. Vens trazê-la a casa mais tarde? Sem drama».

Será isto um cenário do real, sobretudo do real de 1958? Ou é o cume das fantasias do solitário protagonista, com os dias gastos a vigiar uma bela e jovem loira?

Em especial uma que se atira sem razão para o rio, de modo a podermos salvá-la heroicamente, despi-la e deitá-la na nossa cama, vendo-a regressar dentro do nosso roupão para junto da lareira acesa, onde podemos oferece-lhe café e tocar-lhe nas mãos?

Por fim, a pacata amiga/ex-noiva insinua a faceta de personalidade que terá minado a relação amorosa com o ex-polícia. Vemo-la vigilante (outra vigilância, outra obsessão) à porta deste, confirmando (na sua mente) a «traição» do amigo. Primeiro sai a outra, depois ele. «É isto que tens feito com o teu tempo?» sussurra, mordendo a raiva. «Deve ter sido muito bom».

A sequência de sonhos e informações empurram o enredo para o primeiro clímax. Nenhum dos membros daquele «casal» parece importado com os «terceiros elementos». A mulher esquece rapidamente que é casada e o ex-polícia que tem um amigo, marido «enganado», que lhe encomendou aquela vigília. Votada a superior desprezo está a ex-noiva, descartada quando tenta usurpar de forma surpreendente (e doentia) o lugar da «loira primordial».

Uma nota para a mencionada «vertigem» de identidades. O protagonista tanto pode ser John Ferguson, como apenas John, passando por Johnny O, ou ainda Scottie. Uma profusão de camadas, identificações, estágios de maturidade ou estilhaços de personalidade, conforme as circunstâncias e os interlocutores. Não se sabe bem quem está vivo e quem morreu, quem é de facto aquela pessoa, foco de todas as atenções. O respeitado agente de autoridade John Ferguson, o sedutor John, o pueril Johnny O ou o amigalhaço de faculdade Scottie? E a sua ex-noiva? Falamos da criativa da marca de roupa interior, reprimida e hesitante, da criativa que pinta quadros onde se auto-retrata como bisavó da loira vigiada (e tê-lo-á feito, deveras?), ou da neurótica que vigia Johnny O à porta de casa?

Desgraça inusitada, totalmente dependente da acrofobia de John se manifestar no instante decisivo: Madeleine, a sedutora esposa do industrial, consuma o suicídio que todos aguardavam, mas nem todos temiam. A fantasia de Scottie, para o bem e para o mal, está definitivamente morta. Isto coloca-o num estado catatónico, pois apesar de julgado inocente de todos os eventos, desculpado até pelo marido outrora tão zeloso, a todo o instante apaparicado pela mais maternal de todas as ex-noivas «Mother is here» – curiosa referência a Psycho – nada lhe pode devolver a fantasia que se passeava com ele pelas tardes dentro e acordava nua na sua cama.

Nova abertura na trama. John sai ou não do manicómio? «Aquele estado pode durar seis meses, um ano ou ser mesmo irreversível» afirmara o médico. O que vemos depois disto, assumindo que o já visto existiu, é de novo «realidade» ou uma nova fantasia da mente catatónica de John? Se saiu, porque não procurou a ex-noiva e eterna amiga, a única a visitá-lo no internamento? Quem seria aquela mulher, que se pintou bisavó de Madeleine? Existiu? Ou desapareceu «num longo corredor espelhado, cujo fim é o negro da ausência» como a própria Madeleine descreveu?

Oficialmente, «três meses depois», temos de novo John em busca de Madeleine pelas ruas da cidade, tal como a bisavó desta terá feito séculos antes, em busca do filho desaparecido, segundo uma das mais famosas lendas de S. Francisco. E quem disse que as lendas não se repetem?

Por um acaso conveniente (e apesar do considerável tamanho da cidade) não demora muito até que John descubra Madeleine, se bem que não como tal, antes como Judy, uma versão mundana, morena e muito pouco instruída.

Nova «vertigem» na infinita espiral. Quem existiu foi Judy, que se transformou em Madeleine cumprindo ordens do amigo de John. Madeleine/Judy nunca foi mulher deste, antes amante, e juntos congeminaram aquele absurdo plano para ilibá-lo do assassínio da verdadeira mulher. Durante meses criou a imagem física e psicológica da outra, passeou-a pela cidade e treinou-a para representar o papel de esposa «condenada», pronta a ser «salva» pelo recrutado John. Não existe bisavó louca (ou será que existe, já que faz parte da lenda de S. Francisco?), existe somente um viúvo rico, uma mulher morta, uma Madeleine espectral e uma Judy demasiado comum.

John não se conforma, transforma-se num fantasma a perseguir outro, aparição dentro de aparição, vertigem dentro de vertigem. Aquele já não pode ser o John que amou a fictícia Madeleine, nem pode ser o respeitável agente da autoridade John Ferguson, muito menos o pueril Johnny O. É talvez o irascível, quase violento Scottie, que arrasta Judy/Madeleine para a torre da igreja de onde ela (não) caiu.

Mesmo depois de a transformar progressivamente na mais perfeita das cópias, estava já a copiar uma cópia, ou antes, a recriar uma fraude. A Madeleine ideal existia apenas na sua mente, como afinal existiam todos os espectros ideais na mente de cada uma das personagens. Judy queria «John», John queria «Madeleine», a noiva queria «Johnny O» querendo ao mesmo tempo ser «Madeleine», num sem fim de espirais.

A última mostra Judy em queda livre, assustada com o fantasma de uma freira que surge das sombras, alegando «ter ouvido vozes». Podemos conceder que Judy/Madeleine estivesse viva até aquele momento, tendo, como a tradução portuguesa quis mostrar, «vivido/morrido duas vezes». Porém, só as pessoas que nunca foram vivas podem de facto morrer as vezes que quiserem. Os vivos morrem apenas uma vez. A aparição da freira é verosímil? Ou é mais uma assombração entre as restantes? Uma velha freira pode estar a meio da noite na torre de uma igreja, sem objectivo definido ou aceitável que não o de no momento certo sair das trevas para assustar Judy e provocar assim a sua «morte»? E John? Empurrou ele Judy – a duplamente falsa Madeleine – para o vazio? Terá ele por fim tombado no vácuo onde devia obrigatoriamente ter caído na primeira cena, no telhado?

A vertigem é infinita. A obsessão também.


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