Admitamos que se concilia.
Que num milagre organizativo e motivacional, se equilibram no trapézio as horas de sono, as lides caseiras, as burocracias sociais, as jornadas de trabalho e os nichos de escrita. Que se distende o tempo para que nele caibam a reorganização nocturna do cérebro, as refeições improvisadas, as contas domésticas, os impressos do escritório, os desafios da leitura.
E nos intervalos dessa chuva, escrevinhamos.
Sendo verdadeiramente optimista, admitamos mais longe, ao ponto de nos recostarmos numa conjuntura em que o tempo para existirmos realmente existe.
Ainda assim, são muitas as escarpas onde por certo nos iremos precipitar. Não quero ser demasiado soturno. Os bons dias estão lá. Aqueles em que as palavras são manipuladas com a facilidade de um malabarista de rua, desenhando no ar linhas de rigor espartano e fantasia Daliana. Em que a superfície do texto desliza num mar límpido recheado de rumos e a profundidade das entrelinhas rasga caminhos com a precisão das facas longas.
Mas são raros.
Durante muito tempo, ainda que suportados no indispensável esquema de trabalho, podemos gaguejar como iletrados primários. Podemos espremer cada neurónio até arrancar uma simples meia página. Ou podemos não suportar sequer o duelo com a página em branco.
E depois, a facilidade do adiamento. Em cada esquina espreita uma razão perfeitamente aceitável para não o fazermos. Em cada rochedo se ouve o canto de Gomorra de uma sereia, pronta a desviar-nos do objectivo. Todo um conjunto de ilusões que nos procura convencer que sim, há tempo. Que não, ainda não está tudo perdido.
Um curto exercício diz-nos que ninguém recorda mais do que uma dezena de escritores por cada século. Não seremos um deles.