Sombra

Depois de muito mo anunciarem, acabei por disso me convencer.

Aparentemente, era uma criança com muita imaginação. Como filho único, restava-me a companhia que criava na mente, podendo esta desdobrar-se em todas as vozes que me aprouvesse. Arquitectar qualquer jogo ou brincadeira com amigos de carne e osso era a segunda opção. Raramente a primeira.

Como a grande maioria das crianças, tinha amigos imaginários. Não descia ao detalhe de lhes atribuir nomes ou formas concretas, contentava-me em pressenti-los nos recantos.

imaginary_friendDe muito cedo comecei a ler e em consequência disso a escrevinhar. Os adultos diziam que as histórias eram escuras. Nada que obrigasse os pais aflitos a correr para o psicólogo, apenas abundantemente temperadas com sombras. Nos meus contos infantis, as personagens não eram felizes para sempre. Neles se encontravam variadas intempéries, mansões abandonadas, tiroteios e  – para grande perturbação de alguns – mortes.

Desagradava-me ficar sozinho em casa. Ao contrário de hoje, detestava o silêncio. Perturbava-me ainda mais que o meu quarto ficasse em frente da porta principal, perdendo-se a sala onde os meus pais permaneciam no outro extremo do apartamento. As noites vestiam-se com um pensamento recorrente: alguém poderia invadir o interior e sorrateiramente mergulhar no meu quarto. Guiado pela tal imaginação fértil que tantas vezes germinava da inocência, também confundia o uivo dos cães com lobisomens.

Eram frequentes os pesadelos, polvilhados de gigantes, personagens decapitadas, fantasmas, répteis. Por vezes acordava em posições estranhas, parcial ou completamente tombado da cama e uma vez até despertei à porta da rua.

Não gostava de uma sala em particular, considerada a «sala das visitas» e por isso mesmo quase nunca utilizada. A decoração era escura, sufocante, cheia de móveis carrancudos, poltronas e estatuetas.

De cada vez que qualquer imprevisto me obrigava a entrar ali, de noite ou de dia, sentia um frio no estômago. Atormentava-me uma pequena figura de madeira em particular, feita de pau-preto. Retratava um velho curandeiro, apoiado num cajado. Lembro-me de atravessar a sala a correr e de imediato me escapar, batendo com a porta. O fantasmagórico idoso observava-me, pronto a levar-me para uma qualquer dimensão aterradora.

Porém, tudo aquilo que me assustava também parecia de alguma forma fascinar-me. Lia e relia contos misteriosos, que mais tarde inspiravam as pequenas histórias que rabiscava. Aceitava, relutante, a proibição de acompanhar determinados filmes televisivos, arrastando os passos para o quarto enquanto espreitava as imagens censuradas pelo canto do olho. O culminar deste processo deu-se num longínquo serão do século passado no qual, apanhando os progenitores distraídos, acompanhei breves minutos de uma narrativa sombria por entre os dedos das mãos.

Até que surgiu aquela noite. Talvez a única para a qual nunca encontrei uma justificação racional. Como era hábito, fui enviado para o quarto enquanto os adultos concluíam a sua programação adulta. Estou demasiado longe no tempo para recordar se existiria alguma razão que o justificasse, mas tenho presente que algo me impedia de percorrer aquele corredor.  Ouvia as ordens, sem conseguir mover as pernas. No extremo do corredor colei o olhar no seu final em curva, que desembocava na porta principal.

No limite daquela esquina, comecei a ver desenhada a sombra escura que me bloqueava o movimento.

A pressão intensificou-se, quase uma zanga, pelo que dei dois ou três passos renitentes.

O que se passou a seguir pode sem dúvida ser catalogado como imaginação fértil. Como terror de criança. Como qualquer outra coisa que um psicólogo, infantil ou não, descubra nos compêndios. Ou pode, simplesmente, não ter resposta.


nightmare


A mencionada sombra disforme, sem rosto, uma simples mancha negra flutuante, saiu do seu recanto e voou na minha direcção, emitindo um som muito semelhante a um rosnar. Não terá durado sequer um segundo completo. Gritei, apavorado, fugindo em lágrimas para a sala, convicto de que algo de ameaçador me perseguia.

Depois, os processos habituais nestas coisas. Os progenitores ergueram-se, impacientes, acenderam as luzes, levaram-me ao recanto sinistro e «provaram» que nada se passara. Que estava tudo «na minha cabeça».

Durante anos continuei a conviver com pesadelos. Por fim, comecei a escrever os tais contos «escuros». Nem mesmo após um familiar ter ali falecido voltei a pressentir qualquer outro fenómeno. Não naquela casa, pelo menos.

Porém, em qualquer ponto do meu código genético, aquela sombra permanece.

É o rosto para o qual só olho em certas noites.

 

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