Pus-me a pensar num dos meus modelos, um daqueles que por qualquer razão fútil aspirava ser. O caso ocorreu quando abordado pelo dito indivíduo, que me pedia esclarecimento sobre uma questão existencial qualquer.
Isso, de certo modo, virava os meus castelos cristalizados do avesso.
Era obrigado, por momentos, a conviver com um «mestre» que se socorria da pretensa sabedoria do «discípulo». Como poderia confiar num modelo que parecia saber menos do que eu?
Quando coloquei esta questão, alguém me respondeu que «tudo ia ficar bem», ou sendo rigoroso, «tudo me ia correr bem». O mais vazio dos lugares comuns, uma daquelas trivialidades que pesam tanto como um «bom-dia, até mais ver». Era suposto eu concluir desta frase lapidar que o tempo dos modelos já não era para mim, ou sê-lo-ia apenas no sentido de me ter tornado num. Nada mais longe da verdade, mas depois começamos a perguntar o que é isso de «verdade» e o texto não chega.
Em nome do tempo reduzido, tenho no entanto de conceder uma coisa: aquele modelo já tinha zarpado e apenas eu, na minha birra, o pretendia imutável.
Demorou ainda alguns anos, direi mesmo demasiados, o golpe final. O dia em que aquela cabeça tombou sob o golpe seco da guilhotina. Acabei, no entanto, por assinar-lhe a sentença.
Recentemente, tenho vindo a soprar o pó de várias memórias e nessa nuvem me surgem as provas, afinal evidentes.
Duvido que passemos sem modelos, mas duvido ainda menos que não estejamos condenados a executá-los, mais cedo ou mais tarde. Os únicos aceitáveis serão por isso os que nos iluminaram postumamente.
Um morto não cai em decadência, não muda de opinião, não tem convulsões de personalidade, não se deixa influenciar por terceiros, não se contradiz, não sofre, não adoece e sobretudo, não morre, uma vez que tratou disso na altura própria.
A esses podemos sempre regressar, pois por maior que seja o número de vezes que abrimos os livros, revemos as entrevistas ou analisamos os filmes, as velhas lições permanecem.
Os modelos vivos são um acidente à espera de acontecer. Ou um apodrecimento interno cujo cheiro temos de afugentar a custo.
Condenam-nos a abanar a cabeça, em absoluta vergonha do dia em que tomámos aquelas frases e conselhos, opiniões e devaneios como epifanias.
Ou a embarcar numa mentira permanente, desculpando-lhes as progressivas tolices, colando e recolando o braço articulado do boneco de madeira carunchosa em que se tornaram.