Modernismo – Mário de Sá-Carneiro

O_chapéu_de_Mário_de_Sá-CarneiroViveu entre 1890 e 1916. Poeta, contista e ficcionista, um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.

Nasceu no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos, ficou entregue ao cuidado dos avós, indo viver para a Quinta da Vitória, na freguesia de Camarate, às portas de Lisboa, aí passando grande parte da infância.

Inicia-se na poesia com doze anos, sendo que aos quinze já traduzia Victor Hugo, e com dezasseis, Goethe e Schiller. No liceu teve ainda algumas experiências episódicas como actor e começa a escrever.

Em 1911, com vinte e um anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de Direito, mas não conclui sequer o ano. Em 1912 conhece aquele que foi, sem dúvida, o seu melhor amigo – Fernando Pessoa.

Desiludido com a «cidade dos estudantes», segue para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-se a uma vida boémia, deambulando pelos cafés e salas de espectáculo, chegando a passar fome e debatendo-se com os seus desesperos, situação que culminou na ligação emocional a uma prostituta, a fim de combater as suas frustrações.

Na capital francesa viria a conhecer Guilherme de Santa-Rita (Santa-Rita Pintor). Inadaptado e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e trocou correspondência com o seu confidente Pessoa. É entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte) que se inscreve a sua fugaz – e no entanto assaz profícua – carreira literária.

Entre 1913 e 1914 vem a Lisboa com certa regularidade, regressando à capital devido à deflagração do conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, que em breve se transformou num confronto à escala europeia – a I Guerra Mundial.

Com Pessoa e Almada Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português (o qual, influenciado pelo cosmopolitismo e pelas vanguardas culturais europeias, pretendia escandalizar a sociedade burguesa e urbana da época), sendo responsável pela edição da revista literária Orpheu (e que por isso mesmo ficou conhecido como a Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu), um verdadeiro escândalo literário à época, motivo pelo qual apenas saíram dois números (Março e Junho de 1915; o terceiro, embora impresso, não foi publicado, tendo os seus autores sido alvo de chacota social) – ainda que hoje seja, sem dúvida, um dos marcos da história da Literatura Portuguesa, responsável pela agitação do meio cultural português, bem como pela introdução do Modernismo em Portugal. Também teve colaboração em diversas publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Alma Nova (1914-1930) e Contemporânea (1915-1926), e podem-se encontrar textos da sua autoria, publicados a título póstumo, na Pirâmide (1959-1960) e Sudoeste (1935).

Em Julho de 1915 regressa a Paris, escrevendo a Pessoa cartas de uma crescente angústia, das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do processo de escrita.

Uma vez que a vida que tinha não lhe agradava e aquela que idealizava tardava em concretizar-se, Sá-Carneiro entrou numa angústia crescente, que viria a conduzi-lo ao suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Embora tivesse adiado por alguns dias o dramático desfecho da sua vida, acaba por revelar, numa «carta de despedida» para Fernando Pessoa, as razões para se suicidar:

 

Meu querido Amigo:

A menos de um milagre na próxima segunda-feira 03 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»…
Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando, afinal tenho o que quero, 
o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui…
Já dera o que tinha
a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor, fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei. Tive tudo durante eles. Realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. […]

Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.

 

O amigo dedicou-lhe este texto:

 

Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida.

Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação.

São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença.

Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.

Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira.

In qua scribebat, barbara terrafuit.

Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo.

Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.

Fernando Pessoa, Athena, nº 2. Lisboa: Novembro, 1924.

 

Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias, como o Decadentismo, o Simbolismo, ou o Saudosismo, então em franco declínio. Posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como o Interseccionismo ou o Futurismo.

Nessas pôde exprimir com vontade a sua personalidade, sendo notórios a confusão dos sentidos, o delírio quase a raiar a alucinação; ao mesmo tempo, revela um certo narcisismo ao procurar exprimir o seu inconsciente e a dispersão que sentia do seu «eu» no mundo – revelando a mais profunda incapacidade de se assumir como adulto consistente.

O narcisismo, motivado certamente pelas carências emocionais (era órfão de mãe desde a mais terna puerícia), levou-o ao sentimento da solidão, do abandono e da frustração, traduzível numa poesia onde surge o retrato de um inútil e inapto. A crise de personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota o frenesi de experiências sensoriais, pervertendo e subvertendo a ordem lógica das coisas, demonstrando a sua incapacidade para viver aquilo que sonhava – sonhando por isso cada vez mais com a aniquilação do «eu», o que acabaria por conduzir ao seu suicídio.

Estudos recentes evocam a influência de Oscar Wilde na obra do autor, dias antes do seu suicídio. Acredita-se que, atormentado pela leitura de De Profundis, Mário de Sá-Carneiro tenha visto o ponto final da sua vida e da sua carreira.

Por fim, as cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o seu suicídio, são um autêntico diário onde se nota o crescimento das suas frustrações interiores.


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Uma das obras mais importantes do autor porque contém três das suas obsessões dominantes: o suicídio, o amor e o anormal avançando até à loucura.

O conto narra a história de um triângulo – Lúcio, Marta, Ricardo – onde os estudiosos vêem em Ricardo o outro de Lúcio, e Marta a ponte de ligação entre eles.

Apresentado sob a forma de romance policial, a exemplo das novelas fantásticas de Edgar A. Poe, o conto inicia-se com uma breve introdução na qual o narrador, Lúcio, assumindo-se como autor, justifica o seu objectivo: confessar-se inocente após ter cumprido os dez anos de prisão a que fora condenado por assassínio de um amigo, Ricardo de Loureiro. O narrador promete dizer toda a verdade, «mesmo quando ela é inverosímil», sobre essa morte ocorrida em circunstâncias misteriosas e sem testemunhas, mas considerada judicialmente «crime passional». Lúcio percebe uma semelhança entre Marta e Ricardo. Afirma que os dois têm os mesmos gostos e até o mesmo sabor do beijo ( Lúcio e Ricardo beijaram-se por causa de uma brincadeira).

Por ser um texto de vanguarda, já que o autor se empenhou na busca de novos significantes numa ruptura com o modelo centrado no código princípio-meio-fim, esta obra de ficção continua aberta a novos estudos.

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