2001 – Odisseia no Espaço


Nota prévia: Se existem filmes acerca dos quais já quase tudo foi dito, este é um dos casos. Por conseguinte e obedecendo ao que mencionei aqui, o que se segue é apenas e só um relato subjectivo da minha experiência.


 

2001 é não só o melhor filme de ficção científica de todos os tempos, mas também o meu filme favorito em geral, pelo que a tentação de mergulhar num texto demasiado longo está sempre presente. Contudo, respeitar o espírito da obra passa precisamente por evitar o excesso – de palavras, sobretudo.

Quem conhece o trabalho – e alguma coisa da personalidade – de Stanley Kubrick, conhece a sua faceta detalhista, visível no empenho com que procura nunca exibir um plano supérfluo. Praticamente nada nos seus filmes existe por acaso – tendo o realizador sido quase sempre notado pelo inverso, ou seja, por incluir demasiados significados (e pistas) nas suas obras.

Os primeiros 50 segundos de 2001 resumem-se a uma tela negra, acompanhada por música clássica – Assim Falou Zaratustra de Richard Strauss. Podia ser um acaso, mas não é. De imediato somos informados que antes era o nada, agora – à medida que Zaratustra «fala» – surgirá tudo.

Não podemos sequer dispensar esta declaração como qualquer coisa de pretensioso, porque estamos realmente a falar do nada – se nos referirmos à História do Homem.

Somos remetidos para a imagem de dois planetas iluminados pelo Sol, que nos sugere o trio de dimensões abordado pela película:

 – A Terra (evolução humana);

 – Lua e Júpiter (exploração espacial);

 – Sol e Universo (Conhecimento e Ascensão).

Podemos então especular de forma muito segura que o tema de 2001 é a Evolução.


 

2001-a-space-odyssey


1 – A Madrugada da Existência

 

Estabelecida a premissa, encetamos a nossa viagem milenar. E começamos pelo princípio. Pelo nada, pelo silêncio, pelo vento espectral.

Por uma Era onde o Homem não estava no topo da cadeia alimentar, partilhando a sua condição de ser vegetariano com outras espécies. Onde a morte espreitava a qualquer instante nas garras de felinos mais inteligentes e poderosos. A Era da Besta.

Ontem como hoje, a água como recurso essencial à sobrevivência. Ontem como hoje, grupos que se formam, proto-tribos que batalham pelo controlo desse recurso, demasiado escasso para servir todos.

Os dias são árduos e as noites misteriosas e perturbadoras. O Homem está longe de ser Homem, está resumido a ser primata, mais uma forma de vida entregue a instintos básicos e ao terror que germina da ignorância.

Nessa madrugada existencial, uma madrugada particular traz consigo um salto evolutivo. A História Universal transforma essa ascensão numa consequência do desenvolvimento do cérebro, alimentado pelo consumo de carne, mas se a História do Homem fosse escrita por Kubrick (e Arthur C. Clark), o factor disruptivo que colocou o primata que éramos a consumir tal carne – depois de aprender a caçá-la – seria a chegada (ou queda) de um Monólito.

As respostas, portanto, não estão ao nível do solo, mas nas estrelas.

O monólito perfeito – na forma e na substância – é o símbolo da evolução, da inteligência e do conhecimento que pode ou não ter chegado do Universo distante.

Uma das conclusões aceitáveis é a de que não somos produto de um Deus antropomorfizado, não fomos «colocados» no planeta enquanto produto acabado, mas não é impossível que a nossa evolução tenha sido sustentada por uma «rede» de inteligência com origem alienígena.

Neste caso concreto, um Monólito misterioso que alavanca a evolução humana para estádios inconcebíveis sem a sua intervenção.

O líder dos primatas, ao «tocar» no objecto, acende no pensamento sinapses suficientes para que um osso possa também ser uma arma, ferramenta que lhe permitirá lutar por e obter cada vez melhores recursos.

Não só pode agora caçar – e consumir carne – como pode combater e derrotar grupos rivais, assumindo o domínio das fontes de água.

O símio é agora um verdadeiro Homem pré-histórico.

 

2 – Segunda Alvorada

 

2001-Satélite-OssoA elipse mais famosa da história do Cinema confessa-nos que tudo o que fizemos entre esse momento e a exploração espacial foram intermináveis variantes da mesma narrativa:

Homem utiliza recursos para desenvolver inteligência para desenvolver armas para obter recursos, com os grupos mais fortes a destruir os mais fracos.

Esse foi o nosso quotidiano no planeta durante milénios.

Vamos portanto assumir que a dado momento as diferentes nações atingiram, não o ponto de ruptura, mas o de equilíbrio, situação que lhes permitiu uma convivência pacífica e colaboracionista, através da gestão racional dos recursos existentes.

Não é seguro que Kubrick nos soletre isto na sequência seguinte, mas não se trata de uma conclusão abusiva, uma vez que do osso selvagem passamos para uma nave espacial que a um osso se assemelha.

Servindo-se mais uma vez da música como núcleo narrativo – desta vez o Danúbio Azul de Johann Strauss Jr. – Kubrick presenteia-nos com um vasto conjunto de veículos espaciais que imitam todas as explorações humanas anteriores (especial destaque para os Descobrimentos), sendo a referência mais óbvia uma nave em forma de Roda. Outra ainda remete para o conceito de 4D.

Se quisermos «provas» de que em 1968 se sonhava com uma Humanidade unificada no ano de 2001, basta ouvirmos os diálogos entre os exploradores espaciais que acabam de desenvolver colónias na Lua: são multinacionais, reproduzindo o conceito das Nações Unidas. O que nos é sugerido é que a Terra está «resolvida» e a Humanidade partiu, como um todo, enquanto espécie, rumo à exploração espacial. Rumo ao 2º Nível.

Nessa viagem, abordam-se conceitos esotéricos na época, mas que hoje se reconhecem com facilidade: Skype é apenas o mais óbvio.

Contudo, quem conhece Kubrick sabe que normalmente a esperança caminha ladeada por um cinismo racional e os sinais dessa linha de pensamento desde logo se tornam visíveis: Os astronautas deslocam-se para o «lado escuro da Lua», ou seja, para o eterno desconhecido. Convém manter presente a ideia de que os nossos minúsculos charcos de luz estão sempre rodeados pela escuridão interminável. Por outro lado, até onde chegou de facto a nossa «evolução» mental/espiritual? Nos visores televisivos exibe-se um combate de judo, apenas a versão civilizada das lutas simiescas. A alimentação volta a ser precária – papas de diversos sabores, bolsas de líquido minúsculas (os arbustos e poças de água da pós-história). Algo tão elementar como o uso da WC carece de um infinito conjunto de instruções. E por fim, tudo nos é apresentado em escala gigantesca, reforçando a cada instante o nosso papel de formigas que acabam de abandonar – tímida e precariamente – o confortável formigueiro chamado Terra.

Em resumo, «lá fora» somos de novo primatas. Estamos de novo entregues à «madrugada» das coisas.

É então que surge o Monólito II.

Essa «descoberta» coloca em movimento exactamente os mesmos padrões que guiaram os símios. Primeiro, a luta pelo controlo da informação (é posto a circular um conjunto de boatos acerca do assunto) e como é óbvio, quem controla a informação controla os restantes membros da espécie. Depois, a mesma busca pelo «Conhecimento».

No relógio universal não passou muito tempo, apenas quatro milhões de anos, pelo que talvez não espante que continuemos mais ou menos no mesmo ponto evolutivo. A única diferença – na perspectiva «divina» – mostra-nos que os primatas aprenderam a sair de «casa», cobertos por elementares roupas espaciais.

Porém, ainda formamos um grupo desconcertado em redor do «desconhecido». Ainda caminhamos pelo deserto existencial com extrema cautela. Ainda tocamos na superfície do monólito em busca da Resposta.

Nesse momento, o grupo humano é atormentado por um potente sinal de «rádio», que pretensamente informa o espaço sideral da nossa chegada à «2ª casa do tabuleiro».

 

3 – Terceira Alvorada

 

A segunda elipse é microscópica, apenas 18 meses até ao salto seguinte.

Com a «informação» transmitida pelo Monólito II, reunimos capacidade suficiente para nos deslocarmos a Júpiter, a aparente «fonte» do sinal de rádio.

Os atentos encontrarão na forma da nave espacial que enceta a viagem o mesmo «osso» dos tempos pré-históricos.

Em termos cronológicos, parecemos agora capazes de comprimir maior quantidade de informação em menor quantidade de tempo. Ou seja, de «evoluir» mais depressa. Notar várias coisas: os astronautas caminham no interior da nave sem fato; a questão da gravidade foi resolvida, dispensando o uso de calçado específico; a qualidade e quantidade da comida evoluiu; a capacidade de comunicação com a Terra evoluiu – observa-se a existência do que hoje se apelida de tablets, a emissão televisiva chega sem dificuldade aos confins do espaço e o cenário geral é pouco diferente de uma qualquer casa terrena; domínio quase total das técnicas da hibernação/criogenia.

A nave é apropriadamente denominada Discovery 1 (Descoberta 1) e tem como missão calcorrear meros 500 milhões de kms até ao destino.

A tripulação é formada por cinco elementos humanos – três em estado avançado de hibernação – e por um supercomputador conhecido pela alcunha HAL – que remete para Heuristically programmed ALgorithmic computer, ou Computador Algorítmico Heuristicamente Programado, em tradução livre.

Os dois elementos humanos despertos são Dave Bowman e Frank Poole.

Somos de imediato convidados a reflectir sobre a dicotomia Homem-Máquina, sobretudo no que diz respeito às fronteiras entre ambos. O computador HAL está a bordo porque é superior aos Humanos que o construíram – assegurando assim o sucesso da missão se tudo o resto falhar – ou é de tal forma evoluído que adquiriu valências «humanas»? – isto é, sentimentos e consciência, logo propensão para cometer erros?


2001_ Uma Odisseia no Espaço


Se a primeira opção parece ser a que prevalece entre a tripulação, sendo inclusive publicitada entre a opinião pública sob a forma de entrevistas prévias à partida, a dinâmica ao longo da viagem depressa tomba na derradeira alternativa. HAL não comete o erro que «admite» ter cometido – a falsa previsão de uma futura avaria – mas comete o «erro» de se julgar bastante superior aos seus colegas humanos. Numa série de planos esclarecedores, HAL «conclui» que os três elementos em hibernação podem facilmente perecer com uma breve alteração dos ritmos vitais, e o mais alto estado evolutivo nos restantes elementos (incluindo um admirável controlo das emoções) ainda surge demasiado primitivo aos «olhos» de uma máquina ultra-inteligente. Para HAL, os humanos, além de aborrecidos (ver jogo de xadrez), são orgânicos, logo pouco fiáveis. E o dever de HAL é «garantir a todo o custo o sucesso da missão». Esse sucesso pode ser posto em causa, ainda que sem intenção, pelo erro humano. Solução: eliminar o Homem.

O supercomputador executa o teste: simula uma avaria e analisa a reacção dos colegas. É a melhor forma de confirmarmos – ele e nós – a persistente fragilidade do Homem no Espaço. De tudo carecemos e tudo nos atrapalha. Precisamos de fatos que nos assegurem a sobrevivência, fatos esses ligados a cabos que se ligam a cápsulas que são controladas pela nave-mãe (por HAL). Um trapézio disponível para balançar com o mínimo dos sopros. E na queda, o vazio eterno.

Conclusão preliminar: não existe avaria. Quem tem razão? A máquina infalível ou o humano que a programou? Está destruído o elemento essencial da «relação» – confiança mútua.

Dave e Frank decidem conferenciar longe dos «ouvidos» de HAL, mas subestimam a sua capacidade de obter informação: leitura de lábios.

Nesse diálogo silencioso se percebe que está em marcha a «morte» do computador, considerado falível. Pode uma máquina interpretar o movimento dos lábios? Especialistas consideram improvável, mas no dia em que criarmos uma máquina com as capacidades de HAL, essa improbabilidade diminui. Para além disso, esta máquina foi programada por humanos que evoluíram para um superior estado de consciência (superior ao nosso) à conta do Monólito II, logo, as leis normais já não se aplicam.

A escolha essencial é a seguinte: quem atingirá a Quarta Alvorada? Homem ou Máquina?

Apropriadamente, surge um «intervalo».

Isto porque se apresenta uma nova escuridão, um novo deserto. Da Terra para a Lua e desta para os arredores de Júpiter, Homem e Máquina percorreram esse longo caminho juntos, mas estamos agora perante uma verdadeira bifurcação.

Podemos especular que os «mensageiros alienígenas» são indiferentes ao resultado, porém este será radicalmente diferente conforme o «vencedor».

HAL ganha o primeiro assalto. Frank Poole é desconectado da nave-mãe e após um brevíssimo estertor, transforma-se num corpo celeste flutuante. Os três astronautas em hibernação «desligam-se» com um gesto. Dave Bowman inquire a máquina sobre o sucedido, mas esta alega «não ter informação suficiente», uma suprema ironia.

Pela terceira vez, assistimos a uma luta entre «dois grupos» pelo controlo – neste caso, Homens vs. Máquinas.

Dave, preso na casca de noz que é a cápsula exploratória, observa a gigantesca Discovery controlada por HAL, tal como antigos navegantes enfrentaram Adamastores. Findo o curto combate, somos convidados a concluir algumas coisas, desde logo que a melhor «máquina» ainda é o Homem.

Em caso de dúvida, notem a resolução gélida, «maquinal» de Bowman à medida que reentra na nave, abre caminho como um exterminador por entre galerias e portas e sem um segundo de hesitação «desliga» HAL.

Em caso de dúvida, notem a «emoção» na voz do computador, os pedidos de clemência, a análise atrapalhada e contraditória, a visceral tentativa de «sobrevivência» exibida pela «vítima».

HAL «tem medo».

HAL «sente-se a morrer».

HAL «recorda o seu nascimento, a 12 de Janeiro de 1992».

HAL gasta os últimos instantes a cantar Daisy, numa das cenas mais emblemáticas da história do Cinema. Os mais curiosos podem procurar a letra completa da canção e nela descobrir novas camadas irónicas.

Não restam, portanto, dúvidas. O Homem saiu vencedor, dobrou em primeiro lugar essa curva evolutiva, confirmando (ao contrário do que ainda hoje se teme) que o seu destino não é nem transformar-se numa, nem ceder passagem à Máquina. O seu (possível) destino é transcender esse estado, escapar ao orgânico e ao robótico para ser Essência.

Só então, com a «morte» de HAL se revela um segredo, quem sabe «o segredo», que pode (ou não) ter justificado o comportamento da máquina. Foi confirmada a existência de vida alienígena inteligente no planeta Júpiter, sendo esta a criadora dos Monólitos.

 

4 – Quarta Alvorada

 

20490049_i9c64Dave Bowman terá o privilégio insuperável de ser o pioneiro. A guiá-lo, um terceiro Monólito, desta vez não fixo num ponto, mas flutuante, à solta na órbita de Júpiter. Não podemos deixar de pensar em migalhas siderais, que atraem o Homem para o seu Destino.

Contudo, servirá este Monólito III para guiar Dave até Júpiter ou antes para o empurrar através de uma outra dimensão, um «túnel» no espaço e no tempo rumo a inimagináveis realidades? Bem…

Se fosse de súbito concedido a uma formiga o contacto efectivo com um ser humano, de que modo processaria esta esse «encontro»?

Adivinhamos que tentaria classificá-lo à luz da sua «realidade de insecto». Conceitos, formas, nomenclaturas, tudo seria readaptado pela sua capacidade de percepção e entendimento.

Assim, por exemplo, se um ser humano feito de mente humana e conceitos humanos se encontrar de súbito numa galáxia distante, recebido por entidades superiores que transcendem a matéria (energia), o seu cérebro primitivo – por comparação – será forçado a readaptar conceitos.

Logo, colocado num «espaço» tridimensional (espécie de zoo), vagamente semelhante ao que conhece na Terra, poderá encontrar ali um «espelho», um «quarto», uma «cama», uma «refeição».

Nos espelhos encontramos reflexos de nós mesmos, ilusões e dimensões. O «quarto», vagamente decorado à maneira oitocentista, remete para o período do Iluminismo – Ideias, Conhecimento.

Um copo que se parte sugere o quebrar do «corpo», do orgânico, da «cápsula». Sendo o líquido a «essência».

O derradeiro Monólito – o quarto – é também o derradeiro (ou primeiro?) portal para o Novo Homem. Um Super Ser/ Semi-Deus.

Essa Criança-Estrela regressa então a «casa», encerrando o ciclo? Ou parte em definitivo rumo ao Universo?

 

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