Beleza Americana


 

Prefácio

Tive ocasião de abordar algumas diferenças entre Entretenimento e Arte aqui, mas só agora surge ocasião de sublinhar que também é possível fazer uma triagem entre escolhas técnicas/racionais e escolhas emocionais/sentimentais.

Vem isto a propósito do filme deste mês – Beleza Americana.

Durante décadas elegi-o como primeira escolha, não por considerá-lo o melhor produto da História do Cinema, mas porque secundarizava questões técnicas, artísticas ou outras, em nome das emoções que me despertou ao primeiro (e segundo) visionamento.

Data de 1999 – ano que nos ofereceu outros filmes de culto como Clube de Combate ou Magnólia – o que significa que tinha 19 anos quando o vi, o que por sua vez significa que estava mais permeável ao Romantismo do que ao Realismo. E se pensam que estou a exagerar, a lenda diz que terminei uma aventura amorosa porque esta se revelava incapaz de apreciar as tropelias de um saco voador.

Hoje, 20 anos depois, o primeiro lugar do pódio tem outro dono, mas Beleza Americana ainda se mantém entre as primeiras dez escolhas, o que não é de somenos. Hoje sinto-me mais próximo de Lester do que de Ricky, menos crente na poesia do mundo e mais próximo duma prosaica crise de meia-idade.

Porém, até nisso o filme se revela estranhamente intemporal: atravessamo-lo como se mergulhados num «oceano de tempo».

Se nunca o viram «não fazem a mais pequena ideia do que estou a falar, mas não se preocupem»:

Ainda vão a tempo.

 

Nota: Alan Ball vs. Sam Mendes

 

Rezam as crónicas que o argumento de Alan Ball nasceu muito mais ácido e cínico, terno a espaços, mas sem nunca ceder ao açucarado ou pedir ajuda ao humor fácil enquanto válvula de escape para a tensão ou constrangimento. E quem viu Sete Palmos de Terra sabe do que estamos a falar.

Sam Mendes, pelo contrário, nunca esteve seguro acerca do tom do filme, porque sequer foi capaz de entender o tom do argumento. Segundo o próprio, leu-o meia dúzia de vezes, quase todas de forma consecutiva, sem definir se estava perante uma comédia negra, uma história de amor, uma crítica social/de costumes ou um policial.

À partida, um texto que contenha tudo isto é uma boa notícia e Mendes vestiu esta confissão com as roupagens do (grande) elogio, mas o risco desse caleidoscópio temático é polvilharmos o resultado final com múltiplas tonalidades, sem fincarmos pé em nenhuma. Se a isto juntarmos o desejo indisfarçável de agradar aos estúdios e à generalidade da audiência, percebemos a sua necessidade de extirpar o argumento do seu lado menos gentil.

Em suma, temos Alan Ball a contar-nos um episódio negro – ainda que de humor negro – com Sam Mendes pronto a passar o algodão branco do conforto emocional. «Não liguem ao Alan, ele está só a brincar».

Beleza Americana é um grande filme. Sem tais tiques higiénicos, podia ter sido ainda melhor.


 

O Filme

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O meu nome é Lester Burnham. Tenho 42 anos. Daqui a menos de um ano estarei morto.

Tivesse a história começado com esta frase e toda a nossa atenção seria dedicada à descoberta dos possíveis autores dessa morte. Contudo, Ball não teve a intenção de criar um policial, pelo que Mendes escapa dessa ratoeira com uma curiosa introdução, o chamado cold opening.

Nele, vemos uma rapariga misteriosa – que mais tarde identificamos como Jane – a confessar num vídeo caseiro o seu desejo de ter um pai que se revele um modelo comportamental, ao invés de um «totó que mal se consegue controlar de cada vez que uma amiga minha vai lá a casa». A voz masculina anónima – que mais tarde descobrimos ser a de Ricky – pergunta-lhe: «Queres que o mate por ti?». Esta responde: «Sim, tratas disso?».

Não é evidente, ou sequer consciente, mas este artifício – anterior à frase introdutória de Lester – liberta-nos desde logo da faceta investigadora. Caso arrumado: Lester vai morrer e aquele estranho casal é certamente responsável. Sigamos em frente, vivamos o último ano do protagonista, tratemos de entender a sequência de eventos que levarão a tal desfecho.

Para começar, quem é Lester Burnham? Bom, sou eu. É o leitor. É um cidadão comum, habitante dos subúrbios, com uma profissão banal (publicitário e redactor numa revista), figurante de uma vida monótona que inclui uma rotina familiar translúcida. Recordando:

Daqui a um ano estarei morto. Obviamente, ainda não sei disso. E de certa forma, morto já eu estou.


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O ponto alto do seu dia é o ritual de masturbação que executa mecanicamente no duche matinal – até isso se revela desprovido de emoção. Depois, uma boleia contrariada da mulher que o despeja num cubículo impessoal onde tudo o que faz é desvalorizado, ignorado e/ou inútil – por fim, um novo superior hierárquico com idade para ser seu filho (Brad), anuncia-lhe o despedimento iminente, salvo se entregar a breve trecho um relatório onde «esclareça as razões pelas quais se considera merecedor do cargo que ocupa».

A diferença entre Lester e a mulher – Carolyn – não é o sucesso profissional, uma vez que esta – agente imobiliária de terceira categoria, quase invisível aos olhos da concorrência – parece igualmente condenada ao fracasso. A diferença é que, ao contrário do marido, ela «recusa-se a ser uma vítima», mantra que escuta no rádio do carro de cada vez que a confiança treme. Ou melhor ainda:

Para sermos bem-sucedidos, temos de exibir constantemente uma imagem de sucesso.

Os extremos a que estamos dispostos a ir em nome dessa imagem variam. No caso de Carolyn, talvez não existam. «Já viram como a cor da pega da tesoura de podar com que ela corta as rosas se assemelha à cor dos saltos dos sapatos? Isso não é uma coincidência», explica-nos Lester.


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A matriarca parece não ter tempo a perder, muito menos com o insípido marido. Informa com um sorriso profissional um dos vizinhos – Jim (um do par de Jim’s que forma o casal gay da casa ao lado) – o segredo para manter as rosas «tão belas», disparando logo em seguida com o mais profundo desprezo:

Lester podes demorar mais um bocadinho, por favor, ainda não me atrasaste o suficiente.

E ele, provavelmente sem querer, faz-lhe a vontade.

É talvez a única coisa que une mãe e filha: o desprezo/desilusão/desencanto que nutrem por Lester. Quando não se juntam nesse sentimento, mostram bem a disfuncionalidade da relação entre ambas:

Estás a tentar parecer feia?

Sim.

Parabéns, sucesso absoluto.

Lester tem a sua opinião sobre o caso:

Jane é a típica adolescente – revoltada, insegura, instável. Gostava de lhe dizer que tudo isso vai passar, mas não lhe quero mentir.

73175cfa-4b78-427a-925b-61dddcb83017Esta tem uma amiga e colega de secundário, Ângela, que pretende cumprir o papel de «mentora». Jane encaixa no protótipo da adolescente inadaptada e rebelde, que oculta as inseguranças com uma máscara de indiferença e antipatia. Ser terna é ser frágil, logo «à mercê». Ângela surge como a «companheira de estrada» que aparenta ter tudo o que Jane não tem (ou assim o julga): beleza, confiança, estatuto. Possui, por exemplo, acesso a um carro, logo pode mostrar-se protectora e emancipada de cada vez que oferece uma boleia à amiga. Jane aceita ser conduzida passivamente – imitando o comportamento de Lester com a mulher.

Para além de Jim&Jim, surgem novos vizinhos: os Fitts.

A saber, coronel Frank, a mulher Bárbara e o filho adolescente Ricky. De notar desde logo o espelho invertido entre os Fitts e os Burnham: os (falsos) líderes (Frank e Carolyn), os passivos (Lester e Bárbara) e o (futuro) casal de inadaptados (Ricky e Jane). Ainda, a ironia do apelido: Fitts remete para «encaixe» deixando adivinhar o esforço que os membros dessa família fazem para «encaixar» numa sociedade e vida normais, apesar de serem tudo menos isso.


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Feitas as apresentações, as dinâmicas. Lester chega a casa à boleia da mulher, queixando-se do comportamento «fascista» do supervisor Brad. Pelo caminho, notam a chegada dos novos vizinhos e debatem se Carolyn contribuiu ou não para a partida dos anteriores quando lhes derrubou o centenário plátano: «Uma grande parte das raízes estavam no nosso quintal».

Ao jantar, tudo é transparente na falsidade. A «refeição saudável e saborosa», a música ambiente, a solenidade forçada, o silêncio cheio de gritos.

O que se passou Jane? Costumávamos ser amigos – Queixa-se Lester.

Tudo remete para um passado mais feliz, agora esvaído no tempo.

Podemos, certamente, tentar várias formas de reter essa felicidade, de simular impedir o caminhar do relógio, que consigo arrasta sonhos e esperanças. Ricky descobriu um método particular: gravar tudo o que lhe parece interessante numa camcorder. E neste momento, o seu olhar inquiridor descobriu poesia em Jane.

Nota: Lembram-se das referências a Romantismo e Realismo? É avisado salientar que é um erro olharem para este enredo a partir de um ângulo realista. Não é aliás por acaso que o mote do filme é «Olhem melhor». Olhem melhor não só para as mal construídas aparências dos intervenientes, mas sobretudo para o tipo de história que vos surge. Nenhuma destas personagens é real, no sentido naturalista do termo. São arquétipos, símbolos numa metáfora. E nenhum deles mais do que Ricky.

Se duvidam, desafio-os a descobrirem um adolescente de 18 anos semelhante a este: seguro, confiante, resolvido, imune a modas ou crítica dos pares, com uma dieta inteligente «não como bacon, mãe, lembra-se?», com uma inteligência displicente (executa sem dificuldade os trabalhos de casa logo de manhã, a caminho da escola), trabalhador/estudante (trabalha à noite como empregado de bar e de mesa) e pequeno traficante de droga com aparentes contactos importantes, tornando-o financeiramente independente dos pais.

Ricky consegue tudo: o pai exige amostras de urina semestrais para «saber» se o filho anda nas drogas? Ricky tem uma cliente que lhas fornece. Ricky precisa de uma chave para abrir um armário? Um cliente serralheiro faz-lhe uma cópia. Ricky recusa-se a fumar haxixe convencional, de modo a minimizar efeitos secundários? Existe um contacto no Exército Americano que lhe consegue produto geneticamente modificado.

Se isto não é uma espécie de super-homem dos adolescentes, anda lá muito perto. Ricky é tudo o que nós (e quem sabe Alan Ball) quisemos ser em jovens. Imunes, poderosos, inteligentes, atraentes, sensíveis. Lester resumirá tudo numa frase, a seu tempo: «Acabas de te tornar no meu novo herói».

largeContudo, nem mesmo o jovem Fitts escapa ao mal que aflige todos os intervenientes. A prisão (física e mental) em que se encontram. Essa alegoria é-nos exibida múltiplas vezes, com diversas representações de «barras» ou «celas» – janelas, visores de computador, reflexos.

Principal símbolo da rotina desesperante: a tentativa que Carolyn faz para vender uma casa. Da motivação interior neurótica «Vou vender esta casa hoje» ad nauseam, aos múltiplos clientes irredutíveis, passando pelos argumentos cada vez mais desconcertantes, a queda é lenta e constrangedora. No final, cortinas cerradas sobre o mundo, momento de breve colapso, recuperação da máscara. «Recuso-me a ser uma vítima».

Mas continuam a sê-lo, Carolyn, Lester e restantes. Até que chega um certo jogo de basquetebol juvenil.

Nessa noite, o protagonista é arrastado pela mulher para um evento no qual ninguém quer de facto estar: nem eles nem a filha Jane.

Estou a perder a maratona de James Bond (curiosa referência a falsos heróis).

A tua filha está a tentar comunicar connosco.

Odeia-nos.

O ponto de viragem é a rotina dançante que preenche o intervalo, cujo grupo integra Jane e Ângela. Lester entrou naquela bancada qual fantasma tropeçante e dela sai como se tivesse tombado na toca mágica por onde mergulhou Alice. A simples visão da ninfeta que se revela Ângela acorda Lester de um prolongado torpor existencial. A adolescente reabre-lhe as portas da Juventude Perdida.

Não deixem de notar o detalhe de termos Jane e Ângela a fumar marijuana no carro da última – enquanto símbolo do elemento protector que de certa forma libertará o elemento passivo para uma nova vida. Logo depois disto, Jane (ainda sem o saber) dará o primeiro passo para se livrar da sombra da amiga, ao notar que está a ser filmada por Ricky – logo, objecto de desejo deste. Isto acordará nela o mesmo tipo de confiança e renascimento que tomaram Lester de assalto depois de conhecer Ângela.


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As rosas vermelhas de Carolyn – podadas, aperfeiçoadas e amordaçadas – soltam-se agora em caóticas e poéticas pétalas escarlates, símbolos do desejo carnal de Lester.

Regressemos à família Fitts. Quem são os pais de Ricky, que armazena no quarto/cérebro, cada pequeno detalhe, cada pequena memória passível de esquecimento? (Vago paralelismo com um conto de Borges – «Funes o Memorioso», cujo protagonista é incapaz de esquecer seja o que for).

Frank é aposentado do Exército, tenso, neurótico, homofóbico, controlador, maledicente. É pelo menos a sua «máscara».

Bárbara é apenas funcional, mas aparenta existir num estado quase catatónico, como se perdida no tempo e espaço. Um ser vivo só vagamente recordado do que é viver.

A caminho da escola no dia seguinte – um dos tais percursos onde Ricky se livra com fluidez dos trabalhos de casa – temos um primeiro vislumbre da dinâmica entre este e Frank. O último resmunga sobre o casal gay que lhes bateu à porta – Jim&Jim – e o filho começa por argumentar de forma lógica: «Eles sentem que não há motivos para vergonhas, percebe?». Ao prever a exaltação do progenitor, muda radicalmente de estratégia, tornando-se ainda mais homofóbico que o pai: «Esses malditos gays dão-me vómitos», cortando assim – com uma violência surpreendente – qualquer reacção de Frank.

Chegado à escola, o processo continua. Jane aborda-o sobre a filmagem da véspera, acusando-o de ser «obcecado», mas este refuta, dizendo-se apenas «curioso». Fala menos com as palavras e mais com os olhos, como qualquer sedutor profissional. Jane fica um passo mais próxima de Ricky e um passo mais longe de Ângela «Não acredito que ele nem olhou para mim». A máscara desta é ser a sedutora com experiência sexual acima das restantes, a «futura modelo» que dorme com fotógrafos porque «o mundo real é assim». Como todas as outras máscaras, está lá para esconder qualquer coisa.

Novo padrão: de cada vez que Carolyn arrasta Lester para qualquer coisa, este sobe um degrau no seu processo de «renascimento».

O próximo passo não é emocional, mas profissional. Trata-se de um evento do ramo imobiliário, onde é necessário ser um campeão de relações públicas. O astro presente é Buddy Kane, o Rei dos Imóveis. Carolyn recita mantras por todos os poros e procura treinar o comportamento de Lester, como se este fosse um caniche levado a concurso. É já visível alguma acidez nas reacções do marido, algum do cinismo rebelde que abre as primeiras brechas na fachada, mas o início ainda é penoso.

Tudo muda no momento em que Ricky entra em cena, já que por mero acaso, aquele é o tipo de trabalho que este costuma aceitar para branquear a verdadeira fonte dos seus proventos. Olhem para isto como «homem de meia-idade reencontra juventude».

Se duvidam, que tal esta entrada entre dois estranhos – tendo um deles o dobro da idade?

O senhor «fuma»?

Não sei bem se esta proeza alguma vez foi tentada entre o vizinho adolescente e o pai quarentão, acabados de se conhecerem, mas tenho o direito de duvidar. Aceito contudo com facilidade que a cena simbolize um «diálogo» entre o quarentão em crise e o adolescente idealizado que não chegámos a ser. Ou seja, e como já vimos, mais Romantismo e menos Realismo.

Prosseguindo, é claro que Lester não fuma, mas é também claro que já fumou, 20 anos antes. Logo, desloca-se com Ricky para as traseiras do edifício em busca do passado. O jovem aproveita para se insinuar, com uma simplicidade desconcertante. «Sou seu vizinho, ando na escola com a sua filha – pois, a Jane – e se quiser mais produto, sabe onde moro». Pelo meio, o patrão de Ricky aparece – paralelismo com o de Lester – e o primeiro livra-se dele com a facilidade que irá inspirar o segundo:

Não te pago para isto.

Óptimo, não me pague. Demito-me.

A partir daqui, Ricky não é apenas «o novo herói de Lester» é a imagem do que este foi e quer voltar a ser. Discutem filmes de série B que mais tarde funcionarão como álibi para os negócios. Carolyn, já inebriada (droga legal vs. droga ilegal), vem em busca do marido como quem procura um subalterno mal comportado. Este já não se enerva, antes aprecia o novo ângulo que lhe foi ofertado. Num plano feliz, Ricky fica no exterior incógnito (mas livre de barras) e Lester regressa por momentos ao interior aparentemente mais afável (mas prisão dourada). Ângela forneceu um ambiente seguro a Jane para o consumo das drogas, libertando-a. Ricky emulou o padrão com Lester.


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Chegados a casa, descobrem que Ângela vai passar a noite com Jane, o que catalisa em definitivo o entusiasmo do protagonista no sentido de abraçar uma «nova vida». A partir de agora, abandonamos o insípido e resignado quarentão para dar passagem ao «jovem» Lester Burnham. Aquele que espreita a agenda da filha em busca do telefone de Ângela, que se engasga com a cerveja em alturas inconvenientes, ou que corre para a garagem em busca de um par de alteres minúsculos quando por acaso ouve a sua ninfeta comentar com Jane que «dormiria com o teu pai se ele ficasse em forma».

Ricky, obviamente, qual Observador, filma e grava tudo. «Isto é a vossa vida».

Como qualquer adolescente enfatuado, Lester masturba-se. E não já com o automatismo de quem bebe um café para conseguir acordar, mas com o desejo e propósito da paixão recente. Isto fá-lo perder por momentos a noção das fronteiras, ao ponto de acordar Carolyn durante o processo. Se estão à espera de um exercício de poder por parte do membro (até agora) dominante, «olhem melhor».

Desperto o vulcão, Lester começa a virar as mesas. Primeiro em casa, depois no trabalho. O famoso relatório que poderia «salvar-lhe o cargo» é ridicularizado e o despedimento transformado em chantagem muito bem-sucedida. De novo, mais Romantismo e menos Realismo.

O protagonista sai por cima e entra em período sabático, sustentado pelos 60 mil euros da indemnização.

Esfuziante, pede dicas a Jim&Jim sobre como «ficar bonito nu» mais do que «ficar em forma». Recordando a sugestão de Ricky, usa a desculpa cinéfila para acompanhá-lo ao quarto, perante o olhar desconfortável de Frank. Lá se descobre então que o jovem tem uma rede de contactos extensa e métodos quase «infalíveis» para iludir o pai. Que vende «bom produto por 300€» e «produto exclusivo por 2000€». Que como confia em Lester, aceita pagamento faseado. E que mais uma vez este vai empurrar o pai de Jane para uma viagem turística à sua antiga juventude.

Gostas de Pink Floyd?

Gosto de muita coisa.

Era feliz e não sabia. Passava os dias a fumar erva e a fazer sexo.

O diálogo termina com um mantra curioso, que esclarece a dinâmica que aprisiona aquelas vidas: «Nunca subestimes o poder da negação».

Todos eles, sem excepção, negam algo evidente: são infelizes.

Ricky é o profeta que os vem libertar, não porque esteja desprovido de máscaras, mas porque – ao contrário dos outros – as usa para ser feliz e não para falsear essa felicidade. Lester é o primeiro a ouvir e seguir esses ensinamentos, qual apóstolo.

Carolyn não priva com Ricky, mas priva com os resultados da acção deste – «jovem» Lester – e a cadeia de eventos provoca ondas de choque: vendo que o marido embarcou em novo estilo de vida sem ela, opta por seguir a sua própria via, cimentada no caso extraconjugal que principia com Buddy. Este não se faz rogado em dar-lhe o «tratamento real» e nos intervalos explica-lhe que a maior sensação de «poder» (controlo) que experimentou foi «disparar uma arma».

O mandamento seguinte na invertida via-sacra de Lester – depois do exercício diário, da marijuana, do período sabático e do regresso às bandas de juventude (Pink Floyd, Bob Dylan…) – é arranjar um trabalho que lhe exija «o mínimo grau de responsabilidade possível». Acto contínuo, inicia funções numa cadeia de comida rápida. Lester já não é conduzido por Carolyn para um emprego que odeia, conduz-se a si mesmo com destreza para uma função que lhe agrada, ao som das músicas preferidas.

O «golpe» final de Ricky na família Burnham é dirigido a Jane, o exclusivo alvo do seu interesse. É ela a última a ser «libertada», mas é também ela que o seguirá até ao fim. O corte do cordão umbilical com Ângela dá-se no momento em que Jane prefere ir a pé «quase dois quilómetros» com Ricky até casa, do que aceitar a boleia da amiga – notar paralelismo com Lester. Nesse passeio, o jovem esclarece alguns mitos que sobre ele circulam, revelando que a sua «indisciplina» levou o pai a interná-lo numa escola militar e que a progressiva rebelião do filho – e consequente expulsão – redundaram em castigos físicos que o levaram ao limite da paciência. Esse limite foi atravessado no dia seguinte por um colega de escola, que pagou o preço. Por sua vez, tal descontrolo foi castigado com um internamento num hospital psiquiátrico, do qual saiu «curado». Talvez o estado «catatónico» da mãe, Bárbara, seja agora mais compreensível. Ainda assim, o filho acha que Frank «não é um homem mau», apenas perdido e aprisionado em enganos, como quase todos. Ricky podia estar bastante chateado com tudo o que lhe aconteceu, mas prefere ver a «beleza que há no mundo».

Dois momentos:

 – Fornecido com as chaves do seu «cliente serralheiro» mostra a Jane uma peça de colecção do pai, uma travessa com um símbolo nazi: «existe toda uma subcultura que adora estas coisas». E esse episódio simboliza a ditadura de pensamento e comportamento que paira sobre os intervenientes.

 – Levando Jane até ao quarto, decide mostrar-lhe «a coisa mais bela que alguma vez filmou». Um saco de plástico que numa manhã anunciadora de tempestade bailou diante da câmara durante 15 minutos. Esse episódio permitiu-lhe concluir que «existe toda uma vida por detrás das coisas, uma força benevolente e pacificadora».

images (1)Esta teoria talvez não nos permita concluir a Fé de Ricky – apesar da sua aura de Cristo – mas seguramente nos indicia uma pessoa espiritual, mais no sentido poético do que religioso. Também um determinista, filosoficamente falando, alguém que – convencido que o mundo é algo de estruturado, ainda que oculta essa estrutura para o olhar destreinado – encontra aí a sua confiança, paz de espírito e segurança existenciais. Jane descobre nele «o modelo comportamental», segundo ela, ausente no pai. Da mesma forma que Lester, por não se poder interessar pela filha (juventude) direcciona essa atracção para Ângela, Jane, carente de referências adultas no pai, direcciona e transforma essa falha em interesse amoroso por Ricky.

Eis-nos num segundo jantar. Ou melhor, no jantar que irá demonstrar o quão diferentes estão os seus intervenientes.

Mesma sala, mesma música, quem sabe mesmo prato. Porém, Lester bebe cerveja pela garrafa e está imerso na sua nova realidade. Jane descobriu a parceria de Ricky, pelo que se afastou emocionalmente dos pais, em definitivo. Carolyn, também com novo amante, elevou ao nível máximo o desprezo pelo marido.

Todos esgrimem os seus argumentos – Carolyn desespera com o facto de Lester se ter demitido – mas no final é preciso que se desperdice uma bela travessa de espargos para que a «loiça se parta».

Jane foge para o quarto e Carolyn tenta manipulá-la contra o pai, tentativa que a filha ignora. Na sequência lógica, quebra-se ainda mais o laço entre ambas. Afinal, um dos mantras de Carolyn é:

Podemos contar apenas connosco.

Em parte, talvez isso seja verdade. Talvez todas aquelas personagens – e todos nós – estejam irremediavelmente sozinhas, pouco importando as diferentes encarnações que escolham. Se argumentam que a excepção está em Ricky e Jane, recordo que (noutro brilhante jogo de espelhos) Lester e Carolyn foram algo de muito semelhante 20 anos antes: ingénuos, esperançosos, rebeldes, cheios de vida.

Portanto, dali a 20 anos, se ainda estiverem juntos, Ricky e Jane poderão passar pela mesma crise existencial, a braços com filhos que os ignorem e desprezem.

Para já observam-se à janela, cada um na sua «prisão», Romeu e Julieta dos subúrbios. Jane liberta-se oferecendo virtualmente o corpo, «estou nua perante os teus olhos».

Porém, quando estamos numa prisão, o carrasco aparece com frequência. Frank irrompe pelo quarto do filho, tresloucado, batendo antes de fazer perguntas. O medo costuma alimentar tais coisas. Isso, mais do que um armário aberto.

Andas na droga outra vez?

Não senhor, só quis mostrar à minha namorada a sua travessa nazi.

Namorada?

A surpresa neste tom de voz revela mais do que qualquer outra coisa.

Existem regras na vida, Ricky. Precisas de estrutura. De…

Disciplina. Sim senhor. Obrigado por me ensinar, não desista de mim, pai.

Por esta altura confio que o leitor saiba ler nas entrelinhas.

Estrutura, Disciplina, Poder, Mantra. «Não chovam na parada de Carolyn», meus amigos. Esta controla a sua vida, seja na carreira de tiro, na cama de Buddy ou…bem…talvez um certo Pontiac Firebird de 1970 tenha outra opinião.


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É aqui oportuno salientar a importância da cor vermelha, enquanto simbolismo. Rosas, pétalas, automóvel, até a porta de entrada. Se é vermelho, normalmente pertence a Lester. Se é vermelho representa vida, paixão, desejo, rebelião, juventude.

Carolyn entra com o seu carro no pátio a cantar em plenos pulmões que «ninguém a vai impedir seja do que for» e a observá-la está um sarcástico Pontiac/Lester. Ao entrar em casa, este diverte-se (num pormenor delicioso) com um carrinho telecomandado, como que a meter sal na ferida. Esse carrinho tenta de alguma forma que Carolyn «tropece».

O que fizeste com a Toyota?

Troquei-a por este. Sempre quis tê-lo e agora tenho. Sou Rei.

Não deverias consultar-me?

Deixa-me ver…não, nunca a conduziste.

Entre outras coisas, lançam-se aqui pistas para dois estilos de vida discordantes.

Carolyn é materialista em nome do estatuto, mais do que da utilidade. É preciso ter um carro, quer o utilizemos quer não. Um sofá não é apenas isso, é um «sofá de 4000€ forrado com seda italiana».

Lester – o jovem e este «novo jovem» – redescobriu quem sabe as filosofias hippies dos anos 70. O Pontiac é um símbolo sim, mas emocional e não material. Um sofá, mesmo que feito de ouro, é «apenas um sofá».

Isto não tem vida. São apenas coisas. Mas tornaram-se mais importantes para ti do que viver. Isso é de loucos.

(Qualquer semelhança com outro filme de culto do mesmo ano – Clube de Combate – talvez não seja completa coincidência).

«Mas eu estou de facto nu», replica Ricky, bem-disposto, ao ser filmado por Jane. Regressámos ao início do filme, agora perfeitamente familiarizados com o casal que se revela diante da camcorder.

Ricky e Jane são de facto «parceiros de crime», mas talvez não do crime que lhes foi imputado de início. Todos – e não apenas eles – estão «nus». Ou estarão a breve trecho.

Conhecem aquela famosa frase, «hoje é o primeiro dia do resto da vossa vida»? Bem, é válida para todos os dias menos para um: o derradeiro.

Agora, cada um dos rochedos está alinhado diante do precipício. Só temos de os fazer rolar. De certa forma, talvez Ricky tenha razão. Talvez exista, de facto, uma ordem escondida por trás das coisas, que uma vez descoberta nos permite exorcizar o medo. Talvez nada tenha qualquer importância, deixando-nos tempo livre para apreciar a beleza que resta no Mundo. Porque a sequência de eventos que se segue é demasiado improvável para ser considerada aleatória.

Em resumo: Carolyn e Buddy precisam de comida rápida, para repor as calorias perdidas, logo, estão condenados a surgir no local de trabalho de Lester, que está condenado a descobri-los. Mas não faz mal. Uma verdade ácida é superior a uma mentira (pouco) doce. Claro está que a partir daqui, Buddy «vai dar um tempo» porque «para ser bem-sucedido há que projectar uma imagem de sucesso». Parece que a chuva está mesmo disposta a estragar a parada de Carolyn. Entretanto, Lester precisou de treinar, logo, deu uma corrida com Jim&Jim, logo, aos olhos de Frank, algo está mal. E fica pior quando o mesmo Lester também precisa de marijuana, logo tem de ligar a Ricky, que tem de inventar uma desculpa pouco convincente para ir ter com ele, despertando a curiosidade controladora do pai que entra no quarto e coincidentemente descobre – entre milhares de outras – a gravação que o filho fez (de relance e por acaso) de um Lester a levantar pesos na garagem. Frank cometeu um erro. Olhou, mas não olhou melhor. Olhou de facto ainda pior, quando espreitou pela janela e viu Ricky inclinado sobre Lester. Está, obviamente, a enrolar um cigarro ao amigo, mas tudo depende do ângulo, sobretudo quando Jane e Ângela chegam e os outros são obrigados a retirar-se à pressa. Vemos o que queremos ver, vemos de acordo com os nossos medos, preconceitos e vontades. Não existe realidade, apenas a nossa realidade. O que será pior? Ter um filho traficante ou homossexual? Perguntem a Frank.

Perguntem a Frank porque Ricky está cansado de perguntas. Sobretudo as que são feitas com os punhos. Num momento de inspiração, este encontra o ponto de fuga daquele cárcere. Mais do que explicar ao pai a verdade, é hora de aproveitar a mentira para encerrar o pesadelo.

Gostava que as coisas tivessem sido melhores para ti.

A breve luz no olhar de Bárbara revela que há vida no fundo daquele quarto escuro.

Em resumo: Frank vai ter com Lester na garagem. Olha bem Frank. Olha melhor.

Onde está a sua mulher?

Não sei. Provavelmente com o Rei do Imobiliário. Não me importa.

A sua mulher está com outro homem e você não se importa?

Não. O nosso casamento é uma fachada para mostrarmos uma normalidade que não temos. Somos tudo menos normais.

american-beauty-19Bem, Frank já desconfiava, presume-se. Mas será que nós desconfiávamos do que Frank realmente é? Lester parece que não. E isso é um problema.

Em resumo: Ricky tem de ir embora e Jane tem de ir com ele. Para isso, há que dispensar Ângela. Porque afinal, todos sabemos (até ela), Ângela é «feia, aborrecida e vulgar». Ricky, pelo contrário, tem milhares disponíveis na conta e amigos em Nova Iorque.

Outros traficantes?

Sim.

Bem, Ângela não consegue competir com isso. Nem com isso nem com o primeiro contacto sério que estabelece com Lester.

Acha-me vulgar? Não consigo pensar em nada pior do que ser vulgar.

Nunca o serias, mesmo que tentasses.

A questão é que Lester está a falar com a sua fantasia (adolescente) e na sua frente está Ângela Hayes, uma verdadeira adolescente do Secundário. E o protagonista devia saber que adolescentes inseguras mentem. Aos outros e a si mesmas. Sobre tudo. Mais ainda sobre sexualidade. Olha bem, Lester. Olha melhor.

Carolyn, já sabemos, «recusa-se a ser uma vítima». E Carolyn tem uma arma. E Carolyn transformou-se numa especialista na carreira de tiro. E Carolyn vai a caminho de casa, para resolver as coisas definitivamente.

Em resumo, entrámos de tal forma na «vidinha» destas pessoas, que quase nos esquecemos que Lester morre. Quase saltamos de espanto quando o seu sangue vermelho borrifa o branco do azulejo. Porque isso não é o mais importante. Nunca foi.

Tão-pouco o autor do crime, embora isso fique claro (aos nossos olhos omniscientes, talvez não para os agentes que tomem conta do caso). Terão talvez de olhar melhor.

O que importa aqui é admirar a beleza das estrelas. É ouvir o vento nas árvores de Outono. É entender a magia de um saco esvoaçante.

Um dia, há 20 anos, todos sonhámos ser Ricky. E todos nos transformámos em Lester.

Esta história é acima de tudo sobre Prisão vs. Redenção, Repressão vs. Sexualidade, Conformismo vs. Beleza. Sobre Tempo. Sobre Música.

Sobre a única vida possível.

É talvez coisa para ficarmos zangados. Mas não vale a pena.

Não enquanto existir (alguma) Beleza no Mundo.


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