John Steinbeck

john-steinbeck---mini-biography


Viveu entre 1902 e 1968. Vencedor do Nobel da Literatura em 1962 enquanto autor de uma escrita «realista e imaginativa, uma simbiose completada por um sentido de humor agradável e uma apurada percepção social». Atingiu o estatuto de «gigante das Letras americanas» e muitas das suas obras são consideradas clássicos da Literatura Ocidental.

Foi o autor de 27 livros, entre os quais se contam 16 romances, seis obras de não-ficção e duas colectâneas de contos. Os trabalhos mais famosos são «O Milagre de São Francisco» (1935), «A Leste do Paraíso» (1952), «Ratos e Homens» (1937) e claro, As Vinhas da Ira (1939) eleita a sua obra-prima e parte integrante do cânone americano. Nos primeiros 75 anos após a publicação, vendeu 14 milhões de exemplares.

A maioria das obras do autor utilizam como cenário a região central ou costeira da Califórnia e versam com frequência sobre os temas do destino e da injustiça na vida de personagens comuns com existências difíceis.

 

John Steinbeck nasceu em 1902, na região de Salinas, Califórnia. Tem origens alemãs, inglesas e irlandesas. Johann Adolf Großsteinbeck, o avô paterno, encurtou o nome para Steinbeck quando emigrou para os Estados Unidos.

O pai, John Ernst Steinbeck, era tesoureiro local e a mãe, Olive Hamilton, professora primária, tendo passado ao filho a paixão pela leitura e escrita. Apesar da educação religiosa, Steinbeck acabou por se tornar agnóstico. A família vivia numa pequena cidade rural, quase um lugarejo, apesar de rodeada por terrenos muitos férteis. John passava os Verões a trabalhar nas quintas das proximidades e mais tarde acompanhava os trabalhadores migrantes nas plantações de açúcar. Estas experiências alertaram-no para os aspectos mais duros da vida migrante e para o lado mais negro da natureza humana, informação que se tornou muito relevante para textos como «Ratos e Homens». Explorava com frequência o território, atravessando florestas, campos e quintas. Numa fase em que trabalhou numa Companhia de Cana de Açúcar, exercia por vezes funções no laboratório, situação que lhe fornecia tempo para escrever. Revelava também aptidão para tarefas mecânicas e gosto em reparar os seus utensílios e objectos.

Steinbeck concluiu o Secundário em 1919 e prosseguiu os estudos com o curso de Literatura Inglesa, na Universidade de Stanford, desistindo em 1925 sem o completar. Partiu para Nova Iorque, onde sobreviveu à conta de pequenos trabalhos, à medida que tentava escrever. Sem conseguir publicar nada, regressou à Califórnia em 1928, onde arranjou emprego como guia turístico. Nesse período conheceu a primeira mulher, Carol Henning. Casaram-se em 1930, em Los Angeles. Embrenhou-se então num negócio de manufactura de manequins, com a ajuda de amigos, numa tentativa de enriquecer.

Seis meses depois, ficaram sem fundos devido ao pouco sucesso da empreitada, pelo que decidiram – John e a mulher – regressar à terra da família deste, perto de Pacific Grove. Ficaram alojados numa cabana sem pagar renda e foi-lhes facultada uma mesada, situação que permitiu uma completa dedicação à escrita por parte do autor. Durante a Grande Depressão, Steinbeck conseguiu adquirir um pequeno barco, tendo mais tarde alegado que conseguia viver da apanha de peixe e crustáceos, dieta que completava com vegetais provenientes do quintal e de mercados próximos. Em períodos em que isto não se concretizava, o casal vivia de subsídios e até de ocasionais furtos. Apesar das dificuldades, partilhavam sempre o que tinham com amigos.

No mesmo ano, Steinbeck conheceu o biólogo marinho Ed Ricketts, que haveria de se tornar num mentor e amigo próximo na década seguinte, durante a qual John aprendeu muitas coisas sobre Biologia e Filosofia. Ricketts, normalmente muito discreto mas simpático, dono de grande estabilidade emocional e conhecimentos enciclopédicos sobre diversos assuntos, tornou-se foco de um grande interesse por parte de Steinbeck. O amigo revelou-se um defensor do pensamento ecológico, no qual o Homem é apenas parte de uma grande cadeia existencial, eterno prisioneiro de uma teia vital demasiado complexa para ser entendida ou controlada. Ricketts trabalhava num laboratório junto à costa de Monterey.

Entre 1930 e 1936, este e Steinbeck tornaram-se bons amigos. A mulher do escritor começou a trabalhar no laboratório como secretária/bibliotecária. Steinbeck ajudava de vez em quando. Formaram uma boa ligação, sustentada no amor comum pela Música e Arte, e pelo interesse do escritor em Biologia e Ecologia.

O primeiro romance do autor, «A Taça de Ouro», publicado em 1929, é vagamente baseado na vida e morte do militar Henry Morgan. Foca-se no ataque e pilhagem que este levou a cabo na cidade do Panamá, alcunhada de «Taça de Ouro», e nas mulheres, belas como o sol, que em teoria lá se encontravam.

Entre 1930 e 1933, Steinbeck escreveu três livros mais curtos. «Pastagens do Céu», editado em 1932, é formado por 12 histórias interligadas acerca de um vale perto de Monterey, descoberto por um militar espanhol enquanto perseguia escravos índios. Em 1933, publica-se «O Potro Vermelho», uma história de 100 páginas e dividida em quatro capítulos que aborda as memórias de infância do autor. «A Um Deus Desconhecido» segue a vida de uma família da Califórnia, cujo protagonista exibe uma devoção pagã e primária pela terra que lhe dá sustento. Apesar de por esta altura ainda não ser um escritor reconhecido, nunca duvidou de que esse estatuto o aguardava no futuro.

Steinbeck obteve o primeiro sucesso com «O Milagre de São Francisco» (1935), um romance que lhe valeu o primeiro prémio literário. Aborda as aventuras de um grupo de jovens vagabundos que divagam por Monterey no período que se segue à I Guerra Mundial, pouco antes da entrada em vigor da Lei Seca. São retratados ironicamente enquanto cavaleiros mitológicos incumbidos de uma missão, rejeitando pelo caminho todos os normais padrões de vida que formam a sociedade Americana, optando por uma existência dissoluta, dedicada ao vinho, luxúria, camaradagem e pequeno crime. Muito mais tarde, aquando da atribuição do Nobel da Literatura de 1962 a Steinbeck, a Academia citou a história de:

Um grupo de aventureiros e as suas desventuras divertidas e ousadas, indivíduos associais que, nos seus sonhos mirabolantes, se assemelham quase a caricaturas dos Cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur. É voz comum que nos Estados Unidos este livro foi recebido enquanto apreciado antídoto para uma sociedade então mergulhada numa profunda depressão social.

O livro foi transformado num filme em 1942, contando entre as protagonistas com um amigo pessoal de Steinbeck. Parte dos lucros foram utilizados na construção de uma propriedade em Los Gatos.

O autor começou então a planear uma série de «Romances Californianos», dedicados à descrição das condições de vida do cidadão comum durante a Grande Depressão. Entre estes contam-se «Batalha Incerta», «Ratos e Homens» e Vinha da Ira.

Este último surgiu em 1939, tendo por base uma série de artigos de jornal que o autor tinha escrito acerca das migrações de agricultores. É unanimemente considerado o seu melhor trabalho, tendo recebido inúmeros prémios.

Contudo, não se livrou de alguma polémica. As suas visões acerca do New Deal, o retrato negativo sobre o capitalismo e a «excessiva» simpatia pelos problemas dos trabalhadores provocaram um conjunto de críticas, especialmente na Califórnia. Alegando que a obra era «obscena» e fazia um retrato abusivo e especulativo acerca das condições de trabalho na região, as autoridades acabaram mesmo por bani-la durante dois anos das escolas e bibliotecas públicas.

Sobre isso, Steinbeck argumentou que:

O enxovalho público aqui na região por parte dos grandes proprietários e banqueiros é bastante intenso. O último boato afirma que os californianos me odeiam e fazem planos para me assassinar, à conta das «mentiras» que escrevi sobre eles. Começa a preocupar-me o efeito de bola de neve que isto pode ter. Está realmente a ficar fora de controlo, existe uma espécie de histeria acerca do livro que acaba por não ser saudável.

Nas décadas de 30 e 40, Ed Ricketts revelou-se uma forte influência na escrita de Steinbeck. Faziam viagens frequentes ao longo da costa californiana, de modo a que o escritor desanuviasse do trabalho e alimentasse o seu passatempo relacionado com a Biologia.

Apesar de Carol acompanhar o marido nas viagens, o casamento começava a degradar-se, tendo mesmo terminado um ano depois, em 1941. Logo em 1942 – e após o divórcio – o autor casou-se com Gwyndolyn Conger. Tiveram dois filhos.

Ricketts chegou mesmo a servir de inspiração para diferentes personagens e as histórias continham frequentes preocupações ecológicas.

A amizade acabou por se desvanecer após o divórcio e partida de Steinbeck para outra zona do país. Há quem diga que a escrita do autor, com excepção de «A Leste do Paraíso», publicado em 1952, entrou em declínio após a morte do amigo, em 1948.

O romance «Noite Sem Lua» (1942), acerca do espírito de resistência socrático numa aldeia ocupada do Norte da Europa, foi quase de imediato transformado em filme. Presume-se que o país anónimo seja a Noruega e que os ocupantes sejam Nazis. Em 1945, Steinbeck será mesmo galardoado por ter contribuído para divulgar o movimento de Resistência norueguês.

Em 1943, tinha-se tornado correspondente de guerra para o «New York Herald Tribune» e colaborador de uma organização antecessora da CIA. Participou em diversas acções de campanha, tendo mesmo entrado em combate.

Regressou da guerra tolhido por diversos ferimentos, provocados por estilhaços, e alguns traumas psicológicos. A terapia, como sempre, residia na escrita. Em 1944, entre outros projectos e tomado pela nostalgia acerca da sua antiga vida em Monterey, escreveu «Bairro de Lata» (1945).

Dois anos depois escreveu «A Pérola», já a contar com a versão cinematográfica. Ainda nesse ano, faz a primeira de várias viagens à União Soviética, tendo passado por Moscovo, Kiev, Tiblisi e outros locais.

Foi também nesse ano que foi eleito para a Academia Americana de Artes e Letras.

Em 1952, é então publicado o seu romance mais longo, «A Leste do Paraíso». Segundo a sua terceira mulher, Elaine, o autor considerava ser esta a sua obra mais importante.

«Viagens com o Charley» é um diário acerca da viagem de caravana que levou a cabo em 1960. Nele, Steinbeck lamenta o fim da juventude e a perda de raízes, alternando elogios e críticas aos EUA. De acordo com um dos filhos, o autor encetou este projecto ao descobrir que a morte estava próxima, tendo então optado por atravessar o país uma última vez.

A sua derradeira obra, «O Inverno do Nosso Descontentamento» (1961), analisa o declínio moral nos EUA. O protagonista, Ethan, confessa o desagrado pela decadência moral generalizada, incluindo a sua. O livro apresenta um tom muito diferente de textos iniciais, onde era visível um cunho ecológico e amoral. A crítica não ficou convencida. Apesar de reconhecerem a importância do trabalho, revelaram algum desapontamento por não se tratar de algo na linha de Vinhas da Ira. Opinião diferente revelou o júri sueco:

Temos aqui algo semelhante a Vinhas da Ira. Mais uma vez, o autor revela ser um farol de independência e verdade, dono de uma opinião e instinto neutros sobre o que se considera como «americano», positivo ou negativo.

Aparentemente mal impressionado com as reacções da crítica, à obra e à atribuição do Nobel em 1962, Steinbeck não voltou a publicar nos seis anos que antecederam a sua morte.

O autor morreu em Nova Iorque, a 20 de Dezembro de 1968, de problemas cardíacos. Contava na altura 66 anos e era fumador inveterado.

No dia seguinte, um crítico literário escreveu:

O primeiro grande livro de John Steinbeck foi também o seu último grande livro. Mas, diabos me levem, que belíssimo livro esse: As Vinhas da Ira.


Nova Imagem de Mapa de BitsRomance de escola realista, publicado em 1939.

Situado no período da Grande Depressão, a história acompanha os Joads, uma família de agricultores pobres que se vêm expulsos da sua casa em Oklahoma à conta de problemas como a seca, carestia económica, mudanças no paradigma da agricultura e políticas bancárias. A braços com uma situação insustentável, presos numa zona árida e sem futuro, os Joads decidem migrar para a Califórnia. Juntam-se a milhares de outros Okies (alcunha depreciativa atribuída aos habitantes do estado de Oklahoma) na sua busca por trabalho, terra, dignidade e futuro.

A história começa pouco depois de Tom Joad sair em liberdade condicional da prisão de McAlester, após ter cumprido pena por homicídio. No caminho de regresso a casa, situada em Sallisaw, Tom encontra o antigo pregador Jim Casy, que o conhece desde os tempos de infância e que o acompanha. Ao chegarem à quinta do primeiro, encontram-na deserta. Desconcertados e confusos, ambos procuram um antigo vizinho, Muley Graves, que os informa que a família de Tom está alojada na casa do tio John Joad, situada ali perto. Graves conta ainda que os bancos andam a despejar as famílias de agricultores, mas que ele se recusa a abandonar a zona.

Na manhã seguinte, Tom e Casy vão a casa do tio John. O primeiro encontra a família já de saída, a carregar um velho veículo reconvertido em carrinha com os derradeiros pertences. As colheitas foram destruídas pelas tempestades de areia (Dust Bowl), pelo que se viram incapazes de pagar os empréstimos aos bancos, o que levou à perda da quinta. A única opção para os Joads parece ser a busca por trabalho na Califórnia, região publicitada enquanto paraíso laboral e agrícola.

A família vê a viagem como símbolo de Salvação. Apesar da sua partida do estado de Oklahoma ser considerada uma violação da liberdade condicional, Tom aceita correr o risco e convida Casy a juntar-se a todos.

Na viagem para Oeste pela Route 66, os Joad deparam-se com uma estrada apinhada de migrantes. Estes estabelecem com regularidade campos de alojamento provisório e partilham inúmeras histórias entre si. Alguns fazem de momento o caminho inverso e as informações que trazem diminuem o optimismo dos que partem. Ao longo do percurso, os percalços sucedem-se: o Avô é o primeiro a morrer, sendo enterrado num campo; a Avó acaba também por falecer já perto da Califórnia; Noah (o filho mais velho) e Connie Rivers (o marido da filha grávida, Rosa de Sharon) abandonam a família em alturas diferentes. Liderados pela Mãe, os restantes concluem que a única solução é seguir em frente, pois nada resta em Oklahoma.

Chegados à Califórnia, encontram enorme excesso de oferta. À conta disso, os salários são baixos e os trabalhadores são explorados como escravos. Os grandes proprietários agrícolas estabelecem os monopólios e as pequenas quintas sofrem com a queda dos preços. Um dos campos de refugiados, Weedpatch Camp, mais higiénico e bem equipado que a maioria, torna-se um refúgio temporário, ainda que careça de recursos para todos. Apesar de tudo, por ser uma estrutura federal, usufrui de segurança armada, que protege os migrantes da fúria discriminatória da Polícia californiana.

Tentando reagir à exploração, Casy torna-se sindicalista e tenta recrutar membros para a organização laboral. Os Joads, por sua vez, aceitam trabalho como substitutos dos grevistas, num pomar. Por coincidência, Casy envolve-se num conflito nesse local, que se torna cada vez mais violento. Quando Tom testemunha o espancamento fatal do amigo, ataca e mata o agressor, sendo depois obrigado a fugir. Os Joads abandonam então o pomar, rumo a uma plantação de algodão, temendo a todo o instante que Tom seja preso por homicídio.

Este decide, em nome da segurança da restante família, pôr-se em fuga. Promete à Mãe que estará sempre do lado dos oprimidos. O bebé de Rosa de Sharon nasce morto. A Mãe aguenta firme e arrasta a família através das dificuldades. Uma tempestade obriga-os a abandonar os alojamentos e a procurar terreno seco. No capítulo final, a família encontra abrigo num velho celeiro. Lá dentro, está um rapaz com o seu pai, que morre de fome. Rosa de Sharon comove-se com a situação e permite que este se alimente do seu leite.

 

Personagens

 

Tom Joad – Protagonista; Segundo filho, recebeu o mesmo nome do pai. Assume a certa altura a liderança da família, apesar de ainda ser jovem.

 

Mãe Joad: Matriarca. Prática e calorosa, procura servir de elo de união. Não se chega a conhecer o seu nome próprio, embora esteja implícito que o apelido de solteira possa ser Hazlett.

 

Pai Joad: Patriarca, também chamado Tom, 50 anos. Agricultor incansável e homem de família. Fica destroçado ao ver-se desprovido do seu modo de vida e dos meios para sustentar a casa, obrigando a Mãe a assumir a liderança.

 

Tio John Joad: Irmão mais velho do Pai Joad (este descreve-o como «um tipo com os seus 60 anos, embora noutras alturas lhe sejam atribuídos apenas 50). Carrega um sentimento de culpa pela morte da jovem mulher alguns anos antes, entregando-se agora a bebedeiras e encontros com prostitutas, mas de temperamento generoso.

 

Jim Casy: Antigo pregador que perdeu a crença. Carrega consigo uma aura de Cristo.

 

Al Joad: Terceiro filho, um «adolescente de 16 anos espertalhão», preocupado sobretudo com carros e raparigas. Respeita e admira Tom, mas acaba por seguir o seu próprio caminho.

 

Rosa de Sharon Joad Rivers: Filha adolescente (18 anos), infantil e sonhadora, que amadurece até se tornar numa mulher adulta. Grávida no início da viagem, acaba por dar à luz um nado-morto, certamente devido a subnutrição.

 

Connie Rivers: Marido de Rosa de Sharon. Rapaz ingénuo de 19 anos, revela-se incapaz de lidar com o casamento e iminente paternidade. Abandona a mulher pouco depois da chegada à Califórnia.

 

Noah Joad: Filho mais velho, é o primeiro a abandonar a família ao fazer planos para viver da pesca no rio Colorado. Sofreu uma lesão à nascença, sendo descrito como «estranho». É possível que possua alguma deficiência cognitiva.

 

Avô Joad: Avô de Tom, assume desde logo o forte desejo de ficar em Oklahoma. De nome completo William James Joad. Acaba por ser dopado pela família com «xarope tranquilizante» de modo a poderem partir, mas falece logo na primeira noite. Casy atribui o sucedido a um AVC, mas comenta que o idoso «quer apenas ficar na sua terra. Sentiu-se incapaz de abandoná-la».

 

Avó Joad: Esposa religiosa do Avô Joad, perde a vontade de viver após a morte deste. Acaba por falecer às portas do destino, durante a travessia do deserto.

 

Ruthie Joad: Filha mais nova, de apenas 12 anos. Descrita como imprudente e infantil. Durante uma discussão com outra criança, acaba por revelar o paradeiro de Tom.

 

Winfield Joad: Rapaz mais novo da família, com dez anos de idade. «Selvagem e bruto».

 

Jim Rawley: Gerente do campo de refugiados de Weedpatch, demonstra surpreendente cuidado com a família Joad.

 

Muley Graves: Vizinho dos Joads, é convidado a partir com eles para a Califórnia, mas recusa. A família oferece-lhe dois cães, ficando apenas com um terceiro que acaba por ser atropelado, a certa altura.

 

Ivy e Sairy Wilson: Migrantes originários do estado do Kansas, assistem à morte do Avô e associam-se à viagem durante algum tempo.

 

Sr. Wainwright: Pai de Aggie Wainwright e marido da Sra. Wainwright. Muito preocupado com a filha.

 

Sra. Wainwright: Mãe de Aggie Wainwright e mulher do Sr. Wainwright. Auxilia a Mãe no parto do bebé de Rosa de Sharon.

 

Aggie Wainwright: Filha do casal Wainwright, de apenas 16 anos. Pretende casar com Al.

 

Floyd Knowles: Homem presente num bairro de lata que incita Tom e Casy a juntarem-se aos sindicados. Contribui involuntariamente para a prisão de Casy.


 

Excerto 1

 

Casey voltou a falar com voz indolente e confusa:

 – E eu dizia: o que é este chamamento, este Espírito? E eu dizia: é o amor, amo tanto esta gente, a ponto, às vezes, de rebentar. Eu dizia: não amas Jesus? Então pensava, tornava a pensar e finalmente dizia: não, não conheço ninguém com o nome de Jesus. Conheço um chorrilho de histórias, mas eu só amo o povo. E algumas vezes, amo-o ao ponto de rebentar, e por isso tenho pregado alguma coisa que eu pensava que o faria feliz. E depois, creio que já falei demais. Talvez você se espante de eu empregar palavras más. São apenas palavras que o povo usa, e nada de mau quero dizer com elas. E, seja como for, tenho de lhe dizer mais uma coisa que pensei. Dita por um pregador é a coisa mais irreligiosa que pode haver. Já não posso ser pregador exactamente porque a pensei e acreditei.

 – Que foi? – Perguntou Joad.

Casey olhou-o, acanhado.

 – Se não lhe soar bem, você não se ofende, não?

 – Eu nunca me ofendo, a não ser que me dêem um murro no nariz. Que pensou o senhor?

 – Pensei qual seria o caminho para o Espírito Santo e para Jesus. Pensei: porque é que nós devemos depender de Deus ou de Jesus? Talvez, pensei eu, seja melhor amar todos os homens e todas as mulheres. Talvez o Espírito Santo seja apenas o espírito humano. Talvez todos os homens tenham em conjunto uma única alma grande de que toda a gente faz parte (…).

 

Excerto 2

 

 – Mas, se um homem adquire uma propriedade que não vê, nem dispõe de tempo para lhe pôr os dedos, nem lá pode ir para a sentir debaixo dos pés, então a propriedade sobrepõe-se ao homem. A propriedade é mais forte do que ele. E ele, em vez de ser grande, torna-se pequeno. Só as suas possessões são grandes e ele é o servo da sua propriedade. Esta é que é a verdade.

 

Excerto 3

 

– Realmente fiquei quase fora de mim quando me intimaram a abandonar estes sítios. Primeiro, só me davam ganas de matar uma porção de gajos. Depois, toda a minha família debandou para o Oeste. E eu pus-me a vaguear por estas redondezas. A vaguear sem destino. Mas nunca ia para longe. Dormia onde calhava. Esta noite ia dormir aqui. Eis a razão por que vim. Dizia de mim para mim: «Ando a fazer guarda para que, quando todos voltarem, encontrem tudo em ordem». Mas eu sabia que isso não era verdade. Não há nada a que fazer guarda. E as pessoas nunca mais voltam. Continuo a vaguear por aqui como uma alma penada.

 

Excerto 4

 

Mas vocês já não podem recomeçar! Só uma criança pode encetar uma tarefa assim. O senhor e eu, bem, nós somos o passado. A irritação de um momento, as mil visões – eis o que nós somos. Esta terra, esta terra vermelha, eis o que nós somos. E os anos de chuva, os anos de seca, eis o que nós somos. Não podemos começar de novo. A amargura que vendemos com os nossos bens ao ferro-velho, ele comprou-a, sim, mas nós ficámos também com ela. Somos apenas a raiva que sentimos quando nos expulsaram das nossas terras, quando o tractor derrubou as nossas casas. E assim seremos até à morte. Para a Califórnia ou para outra região qualquer – cada um de nós é um tambor a dirigir uma carga de amarguras, caminhando com a nossa desgraça. E algum dia, os exércitos de amargura irão pelo mesmo caminho. E todos caminharão juntos e haverá, então, um terror de morte.

Os arrendatários arrastavam-se até às suas terras, através da poeira avermelhada.

Depois de vendido tudo o que podia ser liquidado: fogões e camas, cadeiras e mesas, pequenos armários de canto, canos e tanques, ainda havia pilhas de tralha, e as mulheres sentavam-se em torno dessas pilhas, remexendo-as e olhando-as pela frente e por detrás, fotografias, espelhos quadrados, e – olha, está ali um vaso!

Bem, vocês sabem o que podemos levar e o que não podemos levar. Nós vamos acampar sempre ao ar livre – algumas panelas para se cozinhar, colchões e outras comodidades, uma lanterna, baldes e uma peça de lona. É para fazer a tenda. Esta lata de querosene vai. Sabe o que é isto? É o fogão. E roupas…levem todas as roupas. E…a espingarda? Não nos vamos embora sem a espingarda. Quando tudo se for, calçado e roupas e comida – e até mesmo a esperança – teremos ainda a espingarda. Quando o avô veio para aqui – já lhes contei? – Só trazia sal, pimenta e uma espingarda. Mais nada. Isso vai. É só uma garrafa com água. É o que basta para satisfazer uma pessoa. Dá um jeito a esse camião, os miúdos vão no atrelado e a avó vai no colchão. Ferramentas: uma enxada, uma serra, uma chave de parafusos e alicates. E uma machadinha também. Temos esta machadinha há mais de quarenta anos. Vejam como está gasta. O resto? Deixem-no para aí ou queimem-no. Como será a Califórnia?

 

Excerto 5

 

As portas das casas vazias pendem abertas. Vão e vêm ao sabor do vento. Bandos de crianças saem das cidades para lhes quebrar as vidraças das janelas e procuram tesouros ocultos nas ruínas. E…olhem, cheira a ratos mortos aqui.

Logo na noite que se seguiu ao êxodo daquela gente, os gatos, que andavam a caçar nos campos, regressaram e ficaram a miar às portas. E, como ninguém atendesse, os gatos penetraram nas casas vazias e percorreram, miando, os quartos desabitados. Depois, voltaram para os campos e, desse então, transformaram-se em gatos selvagens e passaram a caçar quatis e ratazanas e a dormir de dia nas cavidades do solo. Quando a noite chegava, os morcegos, que se haviam ocultado nos vãos das paredes com medo da luz do dia, esvoaçavam livremente nos quartos vazios e depois tornavam a ocultar-se nos cantos escuros e ali ficavam durante todo o dia, com as asas fechadas, de cabeça para baixo, entre o vigamento, e o cheiro da sua urina enchia as casas vazias.

Os ratos entravam e acumulavam provisões aos cantos, nas caixas e ao fundo das gavetas, nas cozinhas. E as doninhas entravam e caçavam os ratos, e as corujas pardas esvoaçavam, guinchando, e tão depressa entravam como saíam.

Veio então um aguaceiro. O joio brotou nos degraus das portas, zona que outrora lhe fora proibida e a relva crescia por entre as varandas e as portas de entrada. As casas estavam abandonadas e as casas abandonadas ruem rapidamente. Começaram, pois, a abrir fendas nos revestimentos de madeira, a partir de buracos de pregos enferrujados. A poeira, acamando-se no chão, era perturbada apenas pelas pegadas dos ratos, das doninhas e dos gatos.

Certa noite, o vento arrancou uma ripa, lançando-a ao chão. Outro golpe de vento penetrou na abertura deixada pela ripa, e arrancou mais três, depois, mais doze. O sol do meio-dia brilhou e lançou uma mancha dourada no pavimento, através do enorme buraco no tecto. Os gatos selvagens regressavam à noite dos campos, mas já não miavam nos degraus. Moviam-se como sombras de nuvens, que passam em frente da Lua, e esgueiravam-se para dentro dos quartos. E, nas noites de ventania, as portas batiam com estrondo nos umbrais e as cortinas esvoaçavam, esfarrapadas, de encontro às vidraças partidas.

 

Excerto 6

 

 – É porque todos vão para lá. Veja eu, por exemplo. Dantes lutava com todas as minhas forças contra o demónio, porque pensava que o demónio era o inimigo. Mas agora é outra coisa, muito pior que o demónio, aquilo que está a dominar o país, uma coisa que não acabará enquanto não acabarmos com ela. O senhor já viu um monstro de Gila a aferrar-se a alguma coisa? Ferra os dentes com uma força extraordinária e podem cortá-lo em dois, que a cabeça ainda fica agarrada. Corta-se-lhe o pescoço, e a cabeça ainda fica presa. Tem de se enfiar a ponta de uma chave de parafusos na cabeça do bicho para que as presas se abram e soltem a carne e, entretanto, o veneno vai caindo gota a gota no buraco que ele tenha feito com os dentes.

 

Excerto 7

 

Os Estados ocidentais inquietavam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente. Texas e Oklahoma, Kansas e Arkansas, Novo México, Arizona, Califórnia. Uma família isolada mudava de terra. O pai pedira dinheiro emprestado ao banco e agora o banco queria as terras. A Companhia das Terras – é o banco quando ela possui terras – quer tractores em vez de pequenas famílias nas terras. Um tractor é mau? A força que grava os profundos sulcos na terra é uma força errada? Se esse tractor fosse nosso – não meu, nosso – prestaria. Se esse tractor produzisse os sulcos na nossa própria terra, certamente estaria certo. Não nas minhas terras, nas nossas. Então sim, gostaríamos do tractor, como gostávamos das terras quando ainda eram nossas. Mas esse tractor faz duas coisas diferentes: revolve as terras e expulsa-nos delas. Não há quase diferença entre esse tractor e um tanque de guerra. Ambos expulsam os homens que lhes barram o caminho, intimidando-os, ferindo-os. Há que reflectir sobre isto.

Um homem, uma família expulsos das suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se, rangendo pela estrada, rumo ao Oeste. Eu perdi as minhas terras. Um tractor, um só, roubou-mas. Estou sozinho e desnorteado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega, e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, oh tu, que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu receias. Aí é que está o gene do que te apavora. Porque aí transforma-se o “eu perdi as minhas terras”, rompe-se uma célula e dessa célula rota brota aquilo que tu tanto odeias: o “nós perdemos as nossas terras”. Aí é que reside o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos como um só. E desse primeiro “nós” nasce algo muito mais perigoso: “eu tenho algum pão” mais “eu não tenho nenhum”. E o resultado desta soma é: “Nós temos alguma coisa”. Então, a coisa toma um rumo, o movimento passa a ter um objectivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse tractor, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos fixos. Atrás, as crianças escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança. A noite desce. A criança constipa-se. Olhe, tome esse cobertor. É de lã. Pertenceu à minha mãe. Tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do “eu” para o “nós”.

Se tu, que tens tudo o que os outros precisam ter, puderes compreender isto, saberás também defender-te. Se tu souberes separar causas de efeitos, se souberes que Paine, Marx, Jefferson, Lenine, foram efeitos e não causas, sobreviverás. Mas isso não podes tu compreender, pois a qualidade da posse cristalizou-te para sempre na fórmula do “eu” e para sempre te há-de isolar do “nós”.

Os estados inquietam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente. A necessidade é um estimulante da concepção. A concepção, o estímulo para a acção. Meio milhão de homens caminha pelas estradas. Um milhão mais prepara-se para a caminhada. Dez milhões de outros sentem as primeiras impaciências.

E os tractores abrem sulcos e sulcos nas terras abandonadas.

 

Excerto 8

 

Talvez tivéssemos pecado sem saber.

E falavam em voz baixa dos seus antigos lares. Havia uma cisterna debaixo da roda do moinho. Púnhamos o leite lá dentro, que era para fazer nata, e também as melancias para gelar. Quando fazia um calor de rachar, lá na adega estava um fresco bom a valer. Ali, abríamos uma melancia e quase que não a podia comer, de tão fria que estava. A água corria da cisterna.

E cada um contava as tragédias que o haviam afligido. Eu tinha um irmão, louro como uma espiga de milho, e enorme. Sabia tocar harmónica que era uma beleza. Um dia andava a limpar os sulcos do arado. Bem, de repente, uma cascavel saltou mesmo junto dele, os cavalos assustaram-se e as grades do arado foram espetar-se-lhe na barriga dele e levaram a cara toda. Que horror, meu Deus!

Falavam sobre o futuro. Só queria saber como é a vida lá no Oeste. Bom, pelas estampas que vimos parece que aquilo por lá é bonito. Eu vi uma linda, que parecia do tempo quente e tinha umas nogueiras e uns pés de groselha…mesmo por detrás, tão perto como os pelos do rabo de uma mula uns dos outros! Havia umas montanhas enormes cobertas de neve. Era uma estampa bonita a valer.

O que é preciso é arranjar trabalho. Nunca teremos frio, nem mesmo no Inverno as crianças apanharão frio quando forem para a escola. Hei-de fazer de maneira que os meus filhos não percam uma aula. Eu leio mal, por isso nunca acho tanto prazer na leitura como os que sabem ler bem.

Às vezes, um homem puxava da guitarra, sentava-se num caixote, em frente da sua tenda e tocava. Todos se juntavam em volta dele, atraídos pela música. Muita gente sabe tocar guitarra, mas talvez esse homem seja um artista de verdade. E então, tudo se torna diferente. Os tons baixos ressoam, enquanto a melodia corre a passinhos miúdos pelas cordas. Dedos pesados e dedos que martelam o braço da guitarra. O homem tocava e os outros iam-se reunindo à volta dele, até que o círculo se fechava por completo.

E agora o grupo formava uma só coisa, uma unidade, de maneira que na escuridão, olhavam para dentro de si mesmos os olhos daquela gente toda, e o pensamento esvoaçava para outras épocas e a melancolia tornava-se reconfortante como o repouso ou o sono. As crianças sentiam sono com a música e iam para as suas tendas adormecer e as canções acompanhavam-nas nos seus sonhos.

E todos eles sentiam o desejo de saber tocar guitarra, coisa que lhes parecia maravilhosa. Iam então para a cama e o acampamento mergulhava no silêncio. E as corujas esvoaçavam por aqui e por ali. Ao longe, os coiotes uivavam e os zorrilhos andavam pelo acampamento à procura de restos de comida. Zorrilhos bamboleantes, desavergonhados, sem medo fosse do que fosse.

A noite passava, e aos primeiros raios da alvorada, as mulheres deixavam as tendas, acendiam o lume e punham a água a ferver para o café. E os homens acordavam também e conversavam em voz baixa, na penumbra do alvorecer.

Quando se cruza o rio, chega-se ao deserto, dizem eles. Toma cuidado, para não teres uma avaria no deserto. Leva bastante água, que é para estares garantido se acontecer alguma coisa.

Nós vamos atravessá-lo de noite.

Nós também, senão acabamos com a própria alma ressequida. As famílias comiam depressa, enxaguavam-se e limpavam-se os pratos com um pano. Depois, desarmaram-se as tendas. Todos tinham pressa. E, quando o sol surgia, o acampamento já se encontrava vazio. Somente restavam os seus vestígios. E o sítio ficava pronto para receber um novo mundo, numa nova noite.

Mas, ao longo da estrada, os veículos dos migrantes avançavam como percevejos e a estreita fita de cimento alongava-se por milhas e milhas à sua frente.

 

Excerto 9

 

A Califórnia já pertenceu ao México, e as suas terras aos mexicanos. Uma horda de americanos andrajosos e febris inundou a região. E tal era a sua fome de terra que as tomaram, roubaram as terras dos Suters e dos Guerreros, roubaram e destruíram as concessões e esses homens esfomeados e raivosos brigaram uns com os outros sobre a presa e guardaram de armas na mão, as terras de que se tinham apoderado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. Isso era a apropriação e a apropriação equivalia a um título de posse.

Os mexicanos eram moles por excesso de alimentação. Não puderam resistir porque nada se desejava no mundo como os americanos desejavam aquelas terras.

Depois, com o tempo, os ocupadores deixaram de ser ocupadores para passarem a ser proprietários. Os seus filhos cresceram, e por sua vez, tiveram filhos. E a fome acabou-se entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora e lacerante da propriedade, da água e de um céu azul sobre ela, da relva fresca exuberante, das raízes entumescidas. Tinham tudo isso e com tal abundância que deixaram até de ver essa riqueza. Já não se sentiam corroídos pela ânsia de obterem um acre de terra fértil ou um arado brilhante pare nela abrir sulcos, sementes ou um moinho agitando o ar com as pás. Já não acordavam nas madrugadas escuras, para ouvir o primeiro chilrear dos pássaros ainda ensonados, ou o ruído do vento matinal em torno de casa enquanto aguardavam os primeiros clarões, à luz dos quais deveriam ir para os seus amados campos. Tudo isso fora esquecido, e as colheitas eram avaliadas em dólares e as terras eram-no em capital mais juros e as colheitas compradas e vendidas mesmo antes de se fazer a plantação. Nessa altura, já o malogro das colheitas, as secas e as inundações haviam deixado de significar pequenas mortes dentro da vida, mas simplesmente perda de dinheiro. E todos os seus afetos eram medidos pelo dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía, à medida que lhes alimentava o poder. Até que finalmente eles deixaram de ser fazendeiros ou rendeiros, para se transformarem em homens de negócios dos produtos da terra, pequenos industriais, que tinham de vender antes de terem produzido qualquer coisa. E os fazendeiros, que não eram bons negociantes, perdiam as suas terras em favor dos que eram bons negociantes. Não importava que fossem trabalhadores e diligentes e que amassem a terra e tudo quanto nela crescia, desde que não fossem também bons negociantes. E com o tempo, os bons negociantes apropriaram-se de todas as terras e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo que diminuíam em quantidade.

Já então a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto o não soubessem. Importavam escravos, embora não lhes dessem tal nome: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Oram vejam como eles vivem. Ora vejam o que eles comem. E se eles se tornarem exigentes, expulsamo-los do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia tão poucos fazendeiros pobres na terra, que até fazia dó. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados, sentiam-se apavorados, alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo e outros rebelavam-se, mas eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade dos proprietários.

As colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de cereais e os legumes destinados a alimentar o mundo alastravam por todos os lados: alface, couve-flor, alcachofra, batatas, produtos que se colhem de rastos. Um homem pode permanecer de pé quando trabalha com a gadanha, com a charrua, ou com o arado, mas tem de rastejar como um percevejo por entre os renques de alface, tem de se curvar e de arrastar o saco enorme por entre os algodoeiros e tem de vergar os joelhos como um penitente ao tratar de um canteiro de couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários já não trabalhavam nas suas propriedades. Trabalhavam no papel, esqueciam as terras e a satisfação de as cultivar, lembravam-se apenas delas quando lhes apreciavam os lucros e as perdas. E algumas das propriedades cresciam, a ponto de um homem já nem poder imaginar o seu tamanho. Eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que lhes proporcionavam, químicos para analisar a qualidade das terras e as tornar mais produtivas, capatazes cuja missão consistia em fazer com que os homens que labutavam nas terras trabalhassem até ao último resquício da sua força física. Então, esses proprietários transformavam-se em autênticos armazenistas. Pagavam aos homens e vendiam-lhes géneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E, após algum tempo, deixaram totalmente de pagar aos homens e economizaram a escrituração e os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia assim trabalhar e comer. Quando terminava o trabalho, verificava simplesmente que ainda devia dinheiro ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas suas terras como havia muitos que jamais as tinham visto.

Chegaram então as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste – vinham do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México. Do Nevada e do Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira e pelos tractores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados. Vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil desaguavam das montanhas, famintos e inquietos – inquietos como formigas, famintos de trabalho, de poder carregar, puxar, arrancar, colher, cortar, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por uma côdea de pão. As crianças têm fome. Não temos casa para viver. Inquietos como formigas atrás de trabalho, de comida e sobretudo, de terra.

Não somos estrangeiros. Temos, atrás de nós, sete gerações de americanos, e antes disso, de irlandeses, escoceses, ingleses e alemães. Tivemos avós na Revolução e muitos outros parentes na Guerra Civil…de ambos os lados. Eram americanos.

Vinham famintos e ferozes. Tinham alimentado a esperança de encontrar um lar e só encontraram ódio. Os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram indolentes e que os outros eram fortes, que eles estavam saciados e que os outros passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido os seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem indolente quando esse alguém era forte e se encontrava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também porque eles não tinham dinheiro para gastar. Não há caminho mais curto para provocar o desprezo de um comerciante, orientado precisamente para estimar o contrário. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam-nos, porque um homem esfomeado tem de trabalhar e quando precisa de trabalhar e não encontra onde, automaticamente trabalha por um salário menor. E então, todos têm de trabalhar por salários menores.

E os espoliados, os emigrantes inundavam a Califórnia, eram duzentos e cinquenta mil ou trezentos mil. Atrás deles, novos tractores marchavam pelas terras e os que ainda tinham ficado eram também expulsos. E novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e de expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

Enquanto os californianos desejavam muitas coisas – acumular riquezas, triunfos sociais, diversões, luxo e uma boa segurança bancária – os novos bárbaros só desejavam duas coisas. Terra e comida, e para eles, as duas coisas fundiam-se numa só. Enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos e indefinidos, os desejos dos outros jaziam à beira dos caminhos. Eram visíveis e palpáveis. Bons campos em que se podia perfurar a terra e encontrar água, boas terras verdejantes, terras que se podiam esmigalhar entre as mãos para as experimentar, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até se lhe sentir o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que as suas costas curvadas e os seus braços afadigados o fariam frutificar, produzir a couve, o milho dourado, os rabanetes e as cenouras à luz do sol.

E o homem sem lar e esfomeado, que com a mulher ao lado e os filhos magros no assento traseiro, viajava pelas estradas, podia olhar para os campos em pousio, capazes de produzir alimentos, mas não lucros financeiros. Esse homem sabia que um campo em pousio era um pecado, um crime cometido contra os seus filhos magros. Um homem assim viaja pela estrada e sente a tentação de apoderar-se de terras assim e de as fazer produzir força para os filhos e um pouco de conforto para a mulher. A tentação domina-o sempre, está permanentemente diante dele. As terras atraíam-no e a boa água da companhia, correndo a jorros, ajudava a tentação a agrilhoá-lo. E no sul, via as laranjas douradas pendendo das árvores, as pequenas laranjas cor de ouro no verde-escuro das ramagens, guardadas com as armas de fogo dos que patrulhavam o sítio, de maneira a evitar que alguém apanhasse alguma para um filho magro, laranjas que estavam destinadas a apodrecer ali mesmo, se os preços fossem muito baixos.

Guiava o velho carro até à cidade. Revolvia as fazendas em busca de trabalho. Onde vamos dormir hoje?

Bem, vão dormir mesmo em Hooverville, à beira do rio. Já lá está um bando de gente.

Guiava o carro até lá, não precisava de perguntar nada, porque nos arredores de todas as cidades havia um bairro daqueles.

A cidade e os maltrapilhos estendia-se perto da água, as casas eram tendas e choças cobertas de caniço, casas de papel, um montão informe de sucata. O homem chegava lá com a família e tornava-se um cidadão do bairro. Esses bairros todos com o mesmo nome. O homem armava a sua tenda, o mais perto possível da água, e quando não tinha lona para fazer uma tenda, ia ao monturo da cidade, apanhava folhas de papelão e construía uma casa de cartão ondulado. E, quando a chuva caía, a casa desmoronava-se e era impelida pela enxurrada. Estabelecia-se ali, e dali saía à cata de trabalho, e o pouco dinheiro que lhe restava gastava-o em gasolina, ao procurar trabalho. À noite, os homens reuniam-se e palestravam uns com os outros. Acocorados em roda, falavam da terra que acabavam de conhecer.

Há uma fazenda de trinta mil acres ali adiante, mais para o Oeste. Está abandonada. Meu Deus, o que eu faria com cinco acres daquilo! Dava para comermos o que quiséssemos, caramba!

Tu já reparaste numa coisa? Nessas fazendas não há verduras, nem galinhas nem porcos. Eles só querem uma coisa: plantar algodão, pêssegos ou alface. Às vezes só criam galinhas. E compram as coisas que poderiam ter de graça se as plantassem ali mesmo, atrás da habitação.

Santo Deus, o que eu não faria com um casal de porcos!

Bem, não vale a pena falar nisso, não é teu nem nunca será.

Mas o que vamos fazer, afinal? As crianças não podem ser criadas desta maneira.

E nos acampamentos, a novidade corria em sussurro. No sítio tal há trabalho. Então, de noite, carregavam os carros e as estradas enchiam-se. Eram uma corrida para o trabalho, que se assemelhava à febre com que se corre para os terrenos auríferos. As pessoas chegavam aos magotes. Eram cinco vezes mais do que as necessárias. Era a corrida do ouro, mas para o trabalho. Saíam de noite, frenéticos, em busca de trabalho. E, ao longo das estradas, estendia-se a tentação, as terras que garantiam a comida.

Já têm dono. Não são nossas.

Mas, quem sabe? Podíamos amanhar nem que fosse um pedacinho pequeno. Olhe, aquele pedaço ali! Está abandonado, só dá mato. E quanta batata se podia colher ali, meu Deus! Dava para toda a família encher a barriga!

Sim, mas isso não é nosso. Tem de ficar assim mesmo, cheio de mato.

De vez em quando, alguém tentava. Rastejava pela terra, arrancava o mato e tentava, como um ladrão, roubar à terra um pouco da sua riqueza. Hortas clandestinas, no meio do mato. Uma mão cheia de sementes de cenoura, uma porção de nabos e de cascas de batatas. Vinham furtivamente de noite, cavar terra roubada.

Deixa o mato crescer em volta, assim ninguém te verá. Também no meio convém deixar algumas ervas ruins, das altas. Hortejo secreto, à noite, e água transportada em latas enferrujadas.

E então, um dia, chega um ajudante de xerife.

Ei, que anda você aqui a fazer?

Não faço mal nenhum…

Tenho andado de olho em si. Você pensa que essa terra aí é sua, hein? Isso é uma infracção à lei.

Mas a terra está abandonada. Não faço mal nenhum. Não prejudico ninguém.

Oh seu ocupador de uma figa! Daqui a pouco armava-se em dono disto! Punha-se aí soberbo como o diabo. Armava-se em senhor disto. O melhor é pôr-se a mexer daqui para fora.

E os rebentos verdes das cenouras eram arrancados e os nabos pisados com desprezo. Então o mato tornava a crescer naquele sítio. Mas o polícia tinha razão. Bastava mais um pouco…e a terra pertenceria ao intruso. Cuidada e plantada a terra, comida a primeira cenoura…um homem estaria disposto a lutar pelo solo que lhe fornecia o alimento. Convém pô-lo fora logo de princípio. Senão acaba por pensar que aquilo é dele. Senão é capaz de lutar até à morte pelo pedacinho de horta oculto entre as ervas daninhas.

Tu viste a cara dele quando pisámos aqueles nabos? Tinha olhos de assassino. Se não corrermos com eles acabam por tomar conta de tudo. Sim senhor, tomam conta de tudo pela certa!

São estranhos, estrangeiros.

Sim, eles falam a mesma língua que nós mas não é a mesma coisa. Olha como eles vivem. Tu achas que éramos capazes de viver assim? Não, com um raio!

E à noite, acocoravam-se numa roda e conversavam. E um homem excitado dizia:

– Porque é que não nos reunimos, para aí uns vinte, e não tomamos um pedaço de terra? Armas temos nós. É levá-las e dizer: Tirem-nos daqui se são capazes. Porque é que não vamos a isso?

Eles matavam-nos como se fôssemos bichos.

Que é que tem? É melhor morrer que apodrecer aqui. Debaixo da terra, ou numa casa feita de bocados de saca? Tu queres que os teus filhos morram agora ou daqui a dois anos com o que eles chamam subnutrição? Tu sabes o que comemos durante a semana toda? Pão e urtigas. Tu sabes onde arranjámos a farinha para o pão? Apanhámos os restos de um transporte de farinha.

Assim se falava nos acampamentos, e os adjuntos, homens gordos, bem nutridos, com coldres de revólveres nas ancas roliças, giravam pelos acampamentos. É para não se esquecerem. Temos de os ter debaixo de olho senão…senão, Deus sabe o que são capazes de fazer! São mais perigosos que os negros do Sul. Se se juntarem, ninguém poderá com eles.

Notícia: Na terra vizinha, um adjunto do xerife procedeu à expulsão de um desses ocupadores. O homem resistiu, compelindo o polícia a usar da força. Um filho dele, com apenas onze anos, deu um tiro na autoridade, matando-a. A arma usada foi um rifle, calibre 22.

Cascavéis! Não convém dar-lhes facilidades. É atirar primeiro. Se uma criança é capaz de matar um polícia, que fará um adulto? A única coisa que se pode fazer é ser mais teso do que eles. Maltratar essa gente, meter-lhes medo.

E se eles não se deixarem assustar? Se eles fizerem frente e se defenderem a tiro? Esses homens usam armas desde crianças. Uma arma é, por assim dizer, um prolongamento das suas pessoas. Que fazer se eles não se assustarem? Se algum dia eles formarem verdadeiros regimentos e marcharem pela terra, como fizeram os lombardos na Itália, os alemães na Gália e os turcos em Bizâncio? Também eles tinham fome de terra, também eles formavam bandos mal armados e as legiões não os conseguiram deter. Nem a morte nem o terror os detinham. Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas no estômago, mas também no ventre torturado dos filhos? Não se pode assustar um homem nestas condições…ele já passou por todos os transes.

No bairro, os homens conversavam: O meu avô tomou a terra aos índios.

Não, isto não é justo. Só estamos aqui de conversa. Fazer o que tu dizes é o mesmo que roubar. Eu não sou nenhum ladrão.

Não? Quem foi que roubou uma garrafa de leite da porta de uma casa anteontem à noite? E quem foi que roubou aquele fio de cobre e o vendeu por um pedacinho de carne?

Bem, mas isso foi porque as crianças passavam fome.

Mas não deixou de ser um roubo.

Tu sabes como surgiu a fazenda Fairfield? Vou dizer-te. As terras pertenciam ao Governo e podiam ser cultivadas. Bem, um dia o velho Fairfield foi a S. Francisco e andou pelos cafés e bares e juntou trezentos bêbados que andavam por ali a vadiar. Pois os bêbados ocuparam as terras. O Fairfield dava-lhes só comida e uísque para eles tomarem conta das terras e, depois de eles as experimentarem, o velho ficou com tudo sozinho. O velho costumava dizer que cada acre de terra não lhe tinha custado mais do que uma garrafa de aguardente. Que é que tu achas? Isso não foi roubo, hein?

Não foi justo, isso não foi, mas ele não foi para a cadeia por causa do que fez.

Não, nunca foi. E também aquele gajo que pôs uma canoa no carro e fez o seu relatório como se tudo estivesse alagado pela água, porque ia de barco, esse gajo também não foi para a cadeia. E também aqueles gajos que compraram os deputados e os senadores também não foram para a cadeia.

Por todo o Estado, por todos os bairros provisórios, impera a tagarelice.

E depois, as batidas policiais – grupos de agentes uniformizados, invadindo os acampamentos. Saiam daqui! Ordem da Saúde Pública! O acampamento é um perigo para a saúde colectiva.

Mas para onde vamos?

Isso já não nos diz respeito. Recebemos ordem para fazermos evacuar o acampamento. Dentro de meia hora, vamos deitar fogo a tudo o que aqui estiver.

Há tifo ali em baixo. Vocês querem provocar uma epidemia? Temos ordem de os fazer sair daqui. Bem, vão saindo. Daqui a meia hora largamos fogo a tudo.

Em meia hora, a fumarada das casas de papelão subiu das casas feitas de erva seca, rumo ao céu, e a gente expulsa, nos respectivos calhambeques, inundava as estradas, à cata de novo poiso.

E no Kansas, no Arkansas e no Texas e no Novo México, os tractores expulsavam os arrendatários das terras.

Trezentos mil na Califórnia e outros mais a caminho. Na Califórnia, as estradas estão cheias de gente alucinada, que corre como formigas, à procura de algo para puxar, para arrancar, para erguer, para trabalhar, enfim. Para cada carga a levantar, cinco braços se estendiam, para receber cada mão-cheia de comida, cinco bocas famintas se escancaravam.

E os grandes proprietários, que têm de perder as suas terras na primeira transformação, os grandes proprietários que estudam a História, que têm olhos para ler a História, deviam conhecer este grande facto: a propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, há-de vir a ser espoliada. E também este outro facto paralelo: quando uma maioria passa frio e fome, tomará à força aquilo que necessita. E também o facto gritante, que ecoa por toda a História: a repressão só conduz ao fortalecimento e união de todos os oprimidos. Os poderosos proprietários ignoram os três gritos da História. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número de espoliados cresceu e todos os esforços dos grandes proprietários se orientaram no sentido da repressão. Gastava-se o dinheiro em armas e gases para protecção das grandes propriedades e enviavam-se espiões com a missão de descobrir conspiratas latentes, que convinha abafar à nascença. Ignorava-se a transformação económica, não se tomavam em consideração os planos para a transformação, apenas se tomavam em conta os meios de destruir as revoltas enquanto as causas das revoltas subsistiam.

Os tractores que arrancam os lavradores ao seu trabalho e os tapetes rolantes que transportam as cargas, as máquinas que produzem – tudo isso foi aperfeiçoado e cada vez maior número de famílias vai rolando nas estradas, à procura das migalhas que caem das grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendem à beira das estradas. Os grandes proprietários formavam associações de protecção e reuniam-se para estudar o meio de intimidar, de matar com gases…E sentiam-se diante de um pavor permanente…se um dia esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia a terra será deles, e nem todo o gás, e nem todas as espingardas do mundo serão capazes de os deter. E os grandes proprietários que, através das suas empresas se tornavam simultaneamente mais e menos do que seres humanos, corriam para a sua destruição e usavam todas as armas que concorriam para a sua própria destruição. Todos os pequenos meios, todas as violências, todas as excursões policiais aos bairros, todos os agentes da polícia, armados em fanfarrões por entre os acampamentos de esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do dia da destruição, mas contribuíam também para a sua chegada infalível.

Os homens agachavam-se sobre os calcanhares, homens de faces angulosas, magros de fome e endurecidos pela resistência que a ela opunham, olhares sombrios e maxilares fortes. A terra fértil à volta deles, ali…

Você já ouviu falar daquela criança ali, na quarta tenda?

Não, cheguei agora mesmo.

Pois essa criança chorava e remexia-se toda a sonhar. Todos pensavam que tinha lombrigas. Então deram-lhe um purgante e ela morreu. Mas o que a criança tinha era aquilo que se chama pelagra. Apanha-se quando não se tem nada de jeito para comer.

Coitadinha!

Pois é, e os pais dela nem dinheiro têm para o enterro. Tem de ir para a vala comum.

Safa, que inferno!

E as mãos mergulhavam nos bolsos e puxavam pequenas moedas. Diante da tenda, a pilhazinha de dinheiro crescia. E a família lá a encontrou.

A nossa gente é boa gente, a nossa gente é gente de coração. Deus queira que algum dia a gente boa não seja toda ela gente pobre. Deus queira que algum dia uma criança tenha bastante que comer.

E as associações de proprietários sabiam que algum dia cessariam as preces.

E então, seria o fim.

 

Excerto 10

 

Os homens errantes, sempre em busca de alguma coisa, haviam-se tornado nómadas. As pessoas que até aí tinham vivido no seu pedaço de terra, que até então tinham vivido e morrido nos seus quarenta acres, que haviam comido deles ou neles passado fome, todas essas famílias tinham agora o Oeste inteiro, para nele vaguearem à vontade. E corriam pelo país fora, à procura de trabalho. As estradas estavam metamorfoseadas em caudais de homens, e nas valas à beira das estradas, formigavam multidões de homens. Atrás deles vinham outros a caminho. As grandes estradas formigavam de povo em marcha. No oeste central e no sudoeste vivia um povo simples e agrário, que não era influenciado pela indústria, um povo que nunca empregara máquinas nas suas propriedades, nem conhecia o poder ou o perigo das máquinas em mãos de particulares. Era um povo que ainda não sentira as contradições da indústria, um povo de sentidos ainda bastante penetrantes para perceber o ridículo da vida industrial.

E de repente, as máquinas expulsaram esse povo e esse povo enxameou as estradas. A movimentação alterou-lhe a natureza, as estradas, os acampamentos, o espectro da fome e finalmente esta última alteraram-lhe a natureza. As crianças sem comida alteraram-na, alteraram-na as viagens intermináveis. Era um povo migrante. Alterava-o a hostilidade do ambiente e essa hostilidade caldeava-o, era a hostilidade que costumava impelir pequenas cidades a formar grupos armados, como que para repelir um invasor, a formar bandos munidos de picaretas, grupos de empregados e de patrões armados de carabinas, protegendo-se contra a sua própria gente.

Reinou o pânico no Oeste, quando se multiplicaram os homens nas estradas. Os homens receavam pelas suas propriedades. Homens que nunca tinham tido fome viam os olhos dos esfaimados. Homens que nunca na sua vida tinham sentido verdadeira necessidade de qualquer coisa viam a chama da necessidade arder nos olhos dos homens das estradas. E os homens das cidades e dos campos suburbanos que rodeavam as cidades preparavam a defesa. Tinham estabelecido que eles é que eram os bons e que os outros – os invasores – eram maus, como fazem sempre os homens antes dos combates. E diziam: «São uns malditos de uns ocupadores, uns ignorantes imundos. São uns degenerados, uns maníacos sexuais. Uns ladrões, esses ocupadores danados, que roubam tudo o que encontram. Não têm a consciência do direito de propriedade». E esta última afirmação era realmente verdadeira, pois como pode um homem que nada possui compreender as preocupações dos que possuem alguma coisa? E os que se defendiam diziam: «São uns imundos que espalham epidemias. Não podemos consentir que os filhos deles frequentem a mesma escola que os nossos. Eles são estranhos. O que é que tu dirias se a tua irmã fosse passear com um deles?».

As pessoas das cidades esforçavam-se por adoptar ares de crueldade. Formavam grupos e companhias e armavam-se. Armavam-se com cassetetes, bombas de gás e carabinas. «A terra é nossa», diziam. É bom não perdermos de vista esses danados desses ocupadores. E as terras não pertenciam aos homens armados, mas estes pensavam que eram donos delas. E os empregados, que se exercitavam à noite, nada possuíam de seu e os donos de lojas insignificantes não possuíam outra coisa além de dívidas. Mas até um emprego é alguma coisa, até uma dívida é alguma coisa. O empregado pensava: «Ganho quinze dólares por semana, talvez um desses malditos se contentasse com doze». E o patrão pensava: «Não posso competir com um homem que não tem dívidas».

E os homens em êxodo espraiavam-se pelas estradas e havia fome e miséria nos seus olhos. Não empregavam argumentos nem possuíam um sistema certo de agir, tinham apenas o seu número e as suas necessidades. Quando aparecia trabalho para um homem, havia logo dez a disputá-lo, lutavam por ele, aceitando uma paga miserável. «Se aquele tipo trabalha por trinta cêntimos, eu trabalho por vinte e cinco».

«Se ele trabalha por vinte e cinco, eu trabalho por vinte».

«Não, eu…eu tenho fome. Trabalho nem que seja por quinze». Trabalho mesmo só pela comida. Os meus filhos! Só queria que o senhor os visse! Estão com o corpo cheio de furúnculos, estão que nem podem andar. Dei-lhes frutas podres, apanhadas do chão, incharam terrivelmente. Eu, eu trabalho até por um pedacinho de carne».

E isso causava satisfação, pois, embora os salários diminuíssem, os preços dos géneros mantinham-se altos. Os grandes proprietários estavam contentes e mandavam distribuir ainda mais impressos para atrair mais gente. Os salários baixavam e os preços mantinham-se altos. Não tarda muito que não haja de novo escravos no nosso país.

Foi então que os grandes proprietários e as companhias inventaram um novo método. Um grande proprietário comprava uma fábrica de frutos de conserva. E, quando as peras e os pêssegos amadureciam, ele descia o preço das frutas abaixo do custo de produção. Como fabricante de frutas de conserva, ele pagava a si mesmo um preço baixo pelas frutas e, mantendo alto o preço das frutas em conserva, auferia óptimos lucros. Os pequenos proprietários, que não possuíam fábricas de frutas de conserva, perdiam as suas propriedades, que eram absorvidas pelos grandes proprietários, pelos bancos e pelas companhias às quais pertenciam essas fábricas. Com o tempo, diminuía o número das propriedades. Os pequenos proprietários não tardavam a mudar-se para as cidades por um certo tempo, onde esgotavam o crédito, os amigos, as relações. Depois, acabavam por sair também para as estradas. E as estradas formigavam de homens ávidos de trabalho, prontos a assassinar por causa do trabalho.

As companhias e os bancos trabalhavam para a sua própria ruína, mas ignoravam-no. Os campos estavam prenhes de fruta, mas nas estradas marchavam homens que morriam de fome. Os celeiros estavam repletos, mas as crianças cresciam raquíticas e inchava-se o corpo com as pústulas da pelagra. As grandes companhias ignoravam quão estreita é a linha divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro, que podia ter sido empregue na melhoria de salários, gastava-se em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, em listas negras e exércitos bélicos. Nas estradas, os homens deslocavam-se como formigas, à procura de trabalho e de comida.

E a ira começou a fermentar.

 

Excerto 11

 

É bela, a Primavera na Califórnia. Nos vales, as flores das árvores frutíferas parecem águas perfumadas, brancas e cor de rosa, num mar pouco profundo. Então, as primeiras gavinhas das uvas, rebentando das vinhas nodosas, pendem, cobrindo os troncos. As colinas, cheias e verdes, arredondam-se, macias como seios. E na planície, as hortas estendem-se em filas de muitas léguas, filas de alface de um verde pálido, de pequenas couves-flores de forma alongada e de alcachofras tingidas de um cinzento verdoengo, quase irreal.

As folhas rebentam nas árvores, e as pétalas tombam das árvores frutíferas, atapetando a terra de branco e de cor de rosa. Os ovários das flores entumecem, aumentam e começam a colorir-se: cerejas e maçãs, pêssegos e peras, figos, cujo fruto encerra a flor. A Califórnia inteira apressa-se a produzir e a fruta torna-se pesada. Os ramos, pouco a pouco, dobram-se sob o próprio peso, de maneira que se torna necessário colocar escoras para que possam suportar o seu fardo.

Por detrás dessa fecundidade, há homens de inteligência, de conhecimentos e de habilidade, homens que fazem experiências com as sementes, que vão desenvolvendo a técnica que proporciona maiores colheitas das plantas, cujas raízes têm de resistir aos milhões de inimigos terrestres: ao bolor, aos insectos, à ferrugem e às doenças das plantas. Esses homens trabalham cuidadosa e infatigavelmente para aperfeiçoarem as sementes e as raízes. E ao lado deles encontram-se os químicos, borrifando as árvores no combate contra a peste, enxofrando as uvas, para aniquilar doenças e podridões, míldio e outras enfermidades. Doutores em medicina preventiva, homens da fronteira, espreitando as moscas da fruta, o escaravelho japonês, homens que obrigam as árvores doentes a quarentena ou que as destroem pelo fogo – homens de ciência. Os homens que enxertam as árvores jovens ou as vinhas novas são os mais hábeis de todos.

 É que o seu ofício é o de um cirurgião, e tão fino e tão delicado como o deste, e esses homens têm de possuir as mãos e o coração de um cirurgião, para fenderem a casca, para colocarem os enxertos, para atarem as feridas, protegendo-as do ar. São homens notáveis.

Ao longo das filas, caminham os camponeses, arrancam as ervas da Primavera, deitando-as na terra, a fim de a tornar fértil. Abrem o chão, para que mantenha a água perto da superfície, estriam-no por meio de pequenos fossos de irrigação, destroem as ervas daninhas que poderiam beber a água destinada às árvores.

E, durante todo esse tempo, os frutos vão crescendo, e as flores rebentam nas vinhas, pendendo em compridas umbelas. Com o correr dos dias, o calor aumenta e as folhas tingem-se de verde-escuro. As ameixas alongam-se, como ovinhos verdes de pássaro, e os ramos curvam-se ao peso e dobram-se sobre os suportes que os escoram. As peras, pequenas e duras, adquirem forma e nos pêssegos desponta a primeira penugem. As flores da uva perdem as suas pétalas minúsculas, e as contas pequenas e duras transformam-se em botões verdes, e os botões começam a adquirir peso. Os homens que trabalham nos campos e os proprietários dos pequenos pomares vigiam e fazem cálculos. Este ano é fecundo e abundante. E os homens sentem orgulho, pois são capazes, devido à sua perícia, de tornar o ano fecundo e abundante. Eles têm transformado o mundo com a sua técnica extraordinária. O trigo curto e delgado tornou-se cheio e produtivo. De pequenas maçãs azedas fizeram maçãs grandes e doces, e aquela vinha velha, que crescia entre árvores, alimentando as aves com os seus frutos minúsculos, engendrou milhares de variedades: vermelhas e pretas, verdes e rosadas, purpúreas e amarelas. E cada variedade tem o seu gosto característico. Os homens que trabalham nos campos experimentais criaram frutas novas: nectarinas e quarenta espécies de ameixas e de nozes, com uma casca fina como o papel. E continuam a trabalhar, escolhendo, enxertando, mudando. Estão-se compelindo a si mesmos, compelindo a terra a produzir.

As primeiras cerejas amadurecem. Um cêntimo e meio a libra. Meu Deus! Mas podemos lá colhê-las por esse preço! Cerejas pretas e cerejas encarnadas, cheias e doces, e as aves comem a metade de cada cereja, e as vespas infiltram-se nos buracos feitos pelas aves. Os caroços caem no chão, secos, com pedaços pretos agarrados.

As ameixas purpúreas tornam-se doces e macias. Santo Deus! É impossível colhê-las e enxofrá-las. Não podemos pagar salários, seja que salários for. E as ameixas purpúreas alcatifam o chão. Primeiro, a pele enruga um pouco e os enxames de moscas apanham o seu festim. Sobre o vale paira um cheiro de podridão. A polpa torna-se escura e a colheita murcha no chão.

As peras fazem-se amarelas e macias. Cinco dólares a tonelada. Cinco dólares por caixas de quarenta a cinquenta libras. As árvores mondadas e cuidadas…homens especializados…e colher as frutas e pô-las em caixas, carregar os camiões, entregar as frutas na fábrica de conservas…quarenta caixas por cinco dólares. Mas não pode ser…não podemos! E as frutas amarelas caem no chão pesadamente, e nele rebentam. As vespas mergulham na polpa mole, e espalha-se um cheiro de fermentado e de podridão.

Depois, veem as uvas…Não se pode fazer bom vinho. O pessoal não pode comprar bom vinho. Arranquem os cachos das vinhas, uvas boas, uvas podres, uvas carcomidas. Espremam os talos, espremam o que está sujo e podre: tudo.

Mas nas cubas há míldio e ácido fórmico.

Ponham enxofre e ácido tânico.

A fermentação não exala o aroma rico do vinho, mas odores de decadência e de drogas.

Não faz mal. De qualquer maneira têm álcool. Podemo-nos embriagar mesmo assim.

Os pequenos fazendeiros observam como as dívidas sobem insensivelmente, como o crescer da maré. Cuidaram das árvores, sem vender a colheita, podaram e enxertaram e não puderam colher as frutas. Os homens de ciência trabalharam e meditaram e as frutas apodrecem no chão e a mistura deteriorada nas cubas de vinho empesta o ar. E provem o vinho…nada nele existe do aroma das uvas, há somente enxofre, ácido tânico e álcool.

Este pequeno pomar, para o ano que vem, pertencerá a uma grande companhia, pois o proprietário será sufocado pelas dívidas.

Este parreiral passará a se propriedade do banco. Apenas os grandes proprietários podem subsistir, visto que também possuem fábricas de conservas. Quatro peras descascadas e partidas pelo meio, cozidas e postas em latas, custam sempre quinze cêntimos. E as peras enlatadas não se estragam. Conservam-se anos.

A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e tornar fecundas e fortes as sementes, não encontram meios de deixarem a gente esfaimada comer os seus produtos. Homens que criaram novas frutas para o mundo, não sabem criar um sistema pelo qual as tais frutas possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um grande desgosto.

As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que sejam mantidos os preços elevados. É isto o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhas de distância para buscar as frutas, mas agora, não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cêntimos a dúzia, quando bastava pular do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras derramam querosene por cima das laranjas e enfurecem-se contra o crime, contra o crime daquela gente que veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com fome, de criaturas que precisam de frutas…e o querosene derramado sobre as faldas das montanhas douradas.

O cheiro da podridão enche o país.

Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer, o milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto tente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a putrescência penetrar na terra.

Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue simbolizar. Há um malogro que opõe barreiras a todos os nossos êxitos, à terra fértil, às filas rectas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem declarar nas certidões de óbito: «Morte por inanição», porque a comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.

 O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão untadas de querosene. E ficam imóveis, vendo as batatas passar, flutuando. Ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva. Contemplam as montanhas de laranjas, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflete-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima.

 

Excerto 12

 

Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Cartazes no caminho, impressos distribuídos, impressos cor de laranja…Procuram-se trabalhadores.

Ali, no cimo da estrada – diz o impresso.

As plantas verde-escuras tornaram-se fibrosas e as pesadas cápsulas sentem-se comprimidas nos respectivos invólucros. Algodão branco, que estala como o milho a assar!

Que bom tocarmos nos flocos de algodão com as mãos, delicadamente, com a ponta dos dedos!

Eu sei colher algodão como deve ser.

Aqui está o homem, é este mesmo.

Eu queria colher algodão.

Tem saco?

Saco, não, não tenho.

Cada saco custa um dólar. Descontar-se-á nas primeiras cinquenta libras que você colher. Oitenta cêntimos por cem libras à primeira passagem pelo campo e noventa à segunda. Pode arranjar um saco aí. Um dólar. Se não tem um dólar, nós descontamo-lo nas primeiras cento e cinquenta que você fizer. É o costume, bem sabe.

Claro que é o costume. Um bom saco para algodão dura a época inteira. E, quando estiver estragado, gasto, pode virar-se e utilizar-se do lado da boca. Faz-se uma costura na parte aberta e abre-se a parte fechada. E quando as duas extremidades estiverem gastas, ainda dá um bom tecido. Serve para fazer um belo par de calças para o Verão. Ou então camisas de dormir. E, com os diabos, um saco de algodão é coisa muito boa.

Segure-o à cinta. Estique-o bem e arraste-o entre as duas pernas. Ao princípio, puxa-se com facilidade. E as pontas dos dedos colhem a penugem e as mãos empurram-na para dentro do saco, que está entre as pernas. As crianças andam atrás. Não há sacos para crianças…elas que se sirvam de um saco velho de serapilheira, ou que ponham a coisa no saco dos pais. Agora já está um tanto pesado. Incline-se para diante e puxe-o para a frente. Eu tenho boa mão para o algodão. É pegar e colher. Pode-se falar e até cantar, durante o trabalho, até o saco se tornar pesado. Os dedos trabalham com habilidade. Os dedos sabem. Os olhos veem o trabalho e ao mesmo tempo não o veem.

E eles conversam, na marcha através das filas de algodoeiros.

Lá na minha terra, havia uma mulher, não quero dizer o nome dela…bom, um dia, sem mais nem mais, teve um filho preto. Ninguém, antes disso, dera pela coisa. Nunca apanharam o negro. E ela nunca mais teve coragem de aparecer. Mas, o que é que eu estava a dizer? Ah sim, ela era um alho para colher algodão.

Agora o saco está pesado. Arraste-o para diante com toda a força. Faça força com as ancas e puxe-o para a frente como um cavalo. E as crianças colhem também para o saco do velhote. O algodão aqui é bom. É fino nos terrenos baixos, fino e fibroso. Nunca vi um algodão como este da Califórnia. De fibra comprida, o melhor algodão que tenho visto na minha vida. Mas esgota a terra muito depressa. Quando um tipo pretende comprar terra para algodão digo-lhe sempre: «Não a compres, arrenda-a! E quando ela estiver esgotada pelo algodão, vai para outro sítio».

Filas de trabalhadores, movimentando-se através dos campos, de dedos hábeis. Dedos investigadores vão e vêm, e dão com os flocos. Quase nem é preciso olhar.

Aposto que era capaz de colher algodão mesmo cego! Nas pontas dos dedos tenho um palpite para apanhar os flocos. Onde eu colho, nada fica para respigar.

O saco, agora, está cheio. Leve-o até à balança. Discuta. O homem da balança diz que você pôs pedras lá dentro, para aumentar o peso. E ele? A balança dele está viciada. Às vezes ele tem razão, você meteu pedras no saco. Outras vezes, é você que tem razão, a balança está viciada. E, por vezes, acertam ambos: há falcatrua com pedras e falcatrua na balança. De qualquer maneira, argumente sempre, lute de qualquer forma. Isso fá-lo teso. E a ele também. Olha que coisa! Lá por causa de uma pedrita…se calhar até é uma só. Um quarto de libra? Discuta sempre.

Volte com o saco vazio. Você tem de fazer a sua escrituração. Tome nota do peso. Tem de ser. Se eles perceberem que você toma nota do peso, não o roubam. Mas Deus o livre de não verificar o peso!

Este trabalho é bom. As crianças correm em volta. Já ouviu falar na máquina de colher algodão?

Já sim.

Acha que por aqui arranjarão uma dessas máquinas?

Bem, é muito possível que se acabe o trabalho à mão.

A noite chega. Todos estão cansados. Mas isto de colher algodão é bom. Ganhámos três dólares, eu, a mulher e as crianças.

Os carros chegam aos campos do algodão. Armam-se os acampamentos do algodão. Os altos camiões cobertos e os reboques estão cheios de penugem branca. O algodão agarra-se aos arames das cercas e bolinhas de algodão rolam pelos caminhos quando o vento sopra. O algodão, limpo e alvo, vai à máquina de descaroçar. E os fardos, grandes grumosos, vão a caminho da prensa. E o algodão pega-se à roupa e à barba. Assoe o nariz, tem algodão no nariz.

Agora, arraste-se para a frente, encha o saco antes que surja a noite. Dedos hábeis pesquisam as cápsulas. As ancas esforçam-se no arrastar dos sacos. As crianças, agora que vem a noite, sentem-se cansadas. No solo cultivado, tropeçam de encontro aos próprios pés. E o Sol vai descaindo no horizonte.

Quem me dera que a coisa durasse mais algum tempo! Deus sabe que não se consegue juntar grande coisa, mas, ainda assim, quem me dera que isto durasse mais algum tempo!

Na estrada, atraídos pelos impressos, aglomeram-se os calhambeques.

Tem saco para o algodão?

Não.

Então tem de pagar um dólar.

Se fossemos apenas cinquenta, podíamos instalar-nos por algum tempo, mas somos quinhentos…assim a coisa não pode durar muito. Conheço um tipo que nunca conseguiu pagar o saco que lhe deram. Cada vez que se empregava, recebia um saco novo, mas todos os campos ficavam prontos antes que ele completasse o dinheiro necessário.

Pelo amor de Deus, faça por economizar algum dinheiro. O Inverno vem aí, não tarda nada. E no Inverno, não há trabalho nenhum na Califórnia. Encha o saco antes da noite. Vi um tipo meter duas pedras no saco dele.

Porque não, que diabo? É para compensar a balança viciada.

Está aqui o meu livro: trezentas e doze libras.

Está bem.

Jesus, ele nem discute! A balança dele deve estar viciada. Bem, de qualquer maneira, o dia foi bom.

Dizem que vêm aí uns mil homens para esta fazenda. Amanhã vamos brigar por causa de uma fileira. Vão começar a roubar o algodão uns aos outros.

Procuram-se trabalhadores para a colheita de algodão. Quanto mais homens trabalharem, tanto mais depressa a colheita vai para a máquina.

E agora, voltamos para o acampamento.

Santo Deus! Há carne para o jantar! Temos dinheiro para comprar carne! Pega na mão do menino, que está a cair de cansaço. Dá um pulo ao talho e compra umas quatro libras de carne. A velha vai fazer-nos umas boas empadas, se não estiver muito cansada.

 

Excerto 13

 

Sobre as altas montanhas da costa e sobre os vales, as nuvens cinzentas avançavam, vindas do oceano. O vento soprava violenta e silenciosamente, vindo das altas camadas atmosféricas, fustigando os arbustos e uivando nas florestas. As nuvens chegavam, esfarrapadas, em forma de novelos, faixas ou rochedos cor de cinza. Amontoavam-se umas sobre as outras, fixando-se sobre o oeste, a pouca altura…Em dado momento, o vento parou, e as nuvens profundas e sólidas ficaram. A chuva começou com aguaceiros tempestuosos, teve intervalos de bátegas e gradualmente foi-se transformando numa cortina monótona de pequenas gotas, que caíam regularmente, uma chuva que tornava tudo cinzento. E a luz do dia tomava um aspecto crepuscular. A princípio, a terra seca absorvia a água, tornando-se negra. Durante dois dias a terra bebeu a chuva, bebeu até estar satisfeita. Depois formaram-se lamaçais, e as depressões cobriram-se de pequenos lagos. Os lagos lodosos cresciam, e a chuva constante chicoteava a água reluzente. Por fim, também as montanhas se saciaram, e nas encostas corriam regatos, caindo em cachoeiras e deslizando ruidosamente pelos vales, através dos desfiladeiros. A chuva continuava sem cessar. Os riachos e os pequenos rios galgavam as margens dos leitos e roíam os salgueiros e as raízes das árvores. Faziam os salgueiros debruçarem-se profundamente sobre a corrente, arrancavam as raízes dos pés de algodão e derrubavam as árvores. A água lodosa remoinhava entre as margens e galgava-as, trepando por elas, até transbordar por fim, enchendo os campos, os pomares e os algodoais onde se erguiam ainda as hastes enegrecidas. Os campos baixos metamorfoseavam-se em lagos amplos e cinzentos, cuja superfície a chuva açoitava. Então, a água inundou as estradas e os carros avançavam devagar, cortando a água e nela deixando esteiras lodosas e borbulhantes. A terra murmurava sob o chicote da chuva e os riachos bramiam com as suas cachoeiras agitadas.

Quando começaram as primeiras chuvas, os migrantes comprimiram-se nas tendas, dizendo: «Isto passa depressa» e perguntando: «Quanto irá isto durar?».

E quando os lamaçais se formaram, os homens saíram à chuva, armados de pás e construíram pequenos diques em volta das tendas. As vergastadas da chuva açoitavam a lona até a repassarem e formarem pequenos regatos no chão. Então, os pequenos diques vinham abaixo e a chuva entrava, as enxurradas molhavam os colchões e os cobertores. As famílias tinham de se conservar com as roupas molhadas. Punham caixotes no chão e colocavam tábuas em cima deles. E, dia e noite, mantinham-se sentadas nas tábuas.

Ao lado das tendas estacionavam os calhambeques, e a água corroía os fios da ignição e os radiadores. As pequenas tendas cinzentas elevavam-se no meio de lagos. E, finalmente, todos tiveram de sair de onde estavam.

Mas os veículos não pegavam porque havia curto-circuitos nos fios, e se porventura os motores quisessem andar, um lodo profundo envolvia-lhes as rodas. As pessoas chapinhavam, levando nos braços os cobertores molhados. Andavam, e a água espadanava sob os seus passos. Transportavam as crianças nos braços e o mesmo faziam aos velhos carregados de anos. Se, em qualquer ponto elevado, se erguia um barracão, era um instante enquanto se enchia de gente desesperada, a tremer de frio.

Algumas famílias dirigiam-se às comissões de socorro, e voltavam tristemente para junto dos seus.

Há um regulamento, sabem…temos de morar aqui um ano, pelo menos, se quisermos receber o auxílio. Mas disseram que o governo vai auxiliar. Não se sabe quando, mas vai…

E gradualmente, surgia um terror mais profundo.

Não vai haver trabalho nenhum durante três meses.

As pessoas aglomeravam-se nos barracões. O terror caía sobre elas, os rostos tornavam-se cinzentos de pavor. As crianças choravam com fome, e não havia que comer.

Então vieram as doenças, a pneumonia, o sarampo, que atacava os olhos e os mastoides.

E a chuva caía sem cessar e a água espraiava-se pelas estradas, pois os esgotos não conseguiam absorvê-la toda.

Então, grupos de homens molhados saíam das tendas e dos barracões, homens cujas roupas eram farrapos encharcados e cujos sapatos se haviam transformado numa papa lodosa. Caminhavam na água, que saltava sob os seus passos e iam às cidades, às vendas das redondezas, às comissões de socorro, a implorar comida, a mendigar, humilhando-se a solicitar auxílio, mentindo e tentando roubar. E, entre os mendigos e os humilhados, uma raiva desesperada começou a tomar forma. Nas pequenas cidades, a compaixão pelos homens encharcados transformou-se em indignação, e a indignação, despertada pela gente faminta, transformou-se em medo. Então, os xerifes reuniam turmas de polícias, emitiam pedidos urgentes de rifles, de gases lacrimogéneos e de munições. E os homens famintos enchiam as ruazitas para onde davam as traseiras dos estabelecimentos, mendigando pão, mendigando verduras podres e roubando o que podiam.

Homens desvairados batiam à porta dos médicos, mas os médicos estavam demasiado ocupados para os atender. Os homens, abatidos, deixavam nas vendas das aldeias recados para o médico-legista, para que ele mandasse a carreta. O médico-legista, esse, não estava demasiado ocupado para os atender. A carreta atravessava o lodo e retirava os cadáveres.

E a chuva martelava constantemente, e os rios galgavam os leitos, inundando a região.

Comprimidos nos barracões, deitados no feno húmido, o medo e a fome provocavam-lhes a ira. Os rapazes saíam, não para mendigar, mas para roubar, e os homens saíam raivosos com a ideia de roubar.

Os xerifes reuniam novos polícias e pediam mais espingardas, e as gentes abastadas, dentro de casas sólidas, sentiam compaixão, a princípio, depois desgosto e finalmente ódio por aquele povo em êxodo…

No feno molhado, dentro de barracões desmantelados nasciam bebés, bebés de mães que ofegavam com pneumonias. E os velhos contorciam-se aos cantos e assim morriam, sem que o médico-legista conseguisse endireitar-lhes depois os corpos. À noite, os homens furiosos visitavam audaciosamente os galinheiros e arrebatavam os frangos cacarejantes. Quando alguém disparava, não apressavam o passo, afastavam-se sem pressas. Continuavam chapinhando no lodo e se eram feridos, deixavam-se cair, exaustos, no lodaçal.

A chuva parou. Mas a água demorava-se nos campos, reflectindo o céu cinzento, e a terra toda cochichava com a água que se ia escoando. E os homens deixaram as granjas, saíram das tendas. Acocoravam-se, ficando a olhar a paisagem inundada, sem uma palavra. Mas, às vezes falavam, em voz muito baixa.

Não há trabalho até à Primavera. Não há trabalho.

E sem trabalho, não há dinheiro, nem comida.

Um tipo tem uma parelha de cavalos, com eles lavra, cultiva a terra e faz a ceifa. Nunca lhe passaria pela cabeça deixá-los morrer à fome durante o tempo em que nada têm que fazer.

É que eles são cavalos e nós somos homens.

As mulheres observavam os homens, perscrutavam-nos, para ver se agora, finalmente, eles desanimariam. As mulheres mantinham-se caladas, observando, e onde se formava um grupo de homens, o medo desaparecia das suas faces, e a raiva tomava o lugar do medo. E as mulheres suspiravam de alívio, pois sabiam que assim tudo caminharia bem. Eles não estavam alquebrados, e não se renderiam, enquanto o medo ainda fosse capaz de se transformar em ira.

Minúsculos rebentos de erva brotavam à superfície da terra, e as colinas cobriram-se, em poucos dias, de um tapete verde pálido.

Ia começar um novo ano.


Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.