Prefácio
Esta crónica inicia-se com uma aparente contradição: O Exorcista, apesar de formar com The Shining e A Semente do Diabo, um trio dourado do cinema de terror, não é (à semelhança dos outros dois) um filme de terror.
Ou seja, todos eles esconderam outras temáticas – talvez as verdadeiramente assustadoras – sob a máscara da superstição. A Humanidade fá-lo desde sempre: explica o Desconhecido através da Crença.
O Exorcista não utiliza o Mito para responder ao Mistério, mas para ocultar (e assim revelar) Tabus.
Enquanto o espectador se julga imergido num filme de «terror», não repara de imediato que está a observar uma narrativa sobre Culpa, Famílias Disfuncionais, Xenofobia ou mesmo Violação e/ou Pedofilia.
Da mesma forma que as histórias sobre Mortos-Vivos são de facto acerca de Estratificação Social, também este trio de clássicos de «terror» nos remete para o que se encontra atrás do pano: «The Shining» não é apenas acerca de um hotel assombrado, da mesma forma que «A Semente do Diabo» não é sobre o filho do Demónio.
O Exorcista, conclui-se, não é sobre uma menina possuída. Ainda que as numerosas audiências em 1973 (e desde essa altura) estivessem demasiado assustadas para percebê-lo.
É provável que os meus primeiros «contactos» com a obra tenham surgido através de referências absorvidas pela cultura popular – a famosa cena da cabeça rotativa – ainda antes de conhecer o filme em causa.
Quando este me foi sugerido, estávamos já em meados da década de 90. Tinha ido passar uns dias a casa de um primo e a conversa prolongara-se pela madrugada. A certa altura, a obra de William Friedkin espreita em pano de fundo, numa tardia sessão de cinema. Esse primo, 17 anos mais velho, confessa-me:
A primeira vez que vi isto, não dormi durante uma semana.
Como descobrirei alguns anos mais tarde, a insónia foi a menor das consequências para muitos incautos. À época da estreia, houve de tudo: histerismos, pessoas em fuga das salas, desmaios, vómitos, choque. Até enfartes. Até abortos espontâneos.
Não foi o caso connosco. Ele porque, tantos anos depois, já atirara tudo para o reino da fantasia, eu porque escolhi prosseguir a conversa (deixando a televisão muda na penumbra) e agendar o visionamento para outra altura.
Mesmo assim, reconheci de imediato a força de algumas imagens que insistiam em assombrar-nos o diálogo: uma idosa a ascender das profundezas do metropolitano, de novo a menina a rodar a cabeça 360º ou a vomitar um líquido verde.
Apesar do interesse subliminar, apenas em 2000 – a propósito da nova versão que incluía uma famosa cena, na altura censurada – decidi ir ao Cinema. A amiga que me acompanhou não exibiu sinais de colapso nervoso, mas exteriorizou a perturbação apertando-me o braço e escondendo o rosto no meu ombro.
Pareceu-me um bom selo de qualidade.
Desde então, O Exorcista tem exercido a sua magistratura de influência. É talvez o único que ainda não perdeu a capacidade de me espreitar a vigília (a par de «The Shining») e foi capaz de criar (à semelhança de «A Semente do Diabo») algo em vias de extinção: Atmosfera.
Como já tive ocasião de referir noutros contextos, o grande erro das histórias de «terror» reside em empurrar o Perigo para o Remoto.
Ou seja, o nosso quotidiano, o nosso bairro, a nossa casa, o nosso quarto permanecem seguros. Para corrermos perigo temos de visitar a casa assombrada, a cabana na floresta, atravessar a estrada deserta ou viajar para os confins do mundo «civilizado» («Drácula»). Até «The Shining» nos envia para o inóspito e distante Overlook Hotel.
A mensagem: se ficarmos no nosso cantinho, está tudo bem.
O Exorcista (e «A Semente do Diabo») estilhaçou essa lógica – o que explica em parte o sucesso: O Perigo está em Casa.
O Filme
Qualquer prestidigitador sabe que o sucesso de uma ilusão passa por mostrar ao público exactamente o contrário da verdade. Oferecer o esperado antes de surpreender com o inesperado.
Assim sendo, a narrativa começa com o mais simples dos quotidianos: um fim de tarde Outonal no tranquilo bairro de Georgetown, em Washington. Aqui, «estamos seguros».
De imediato nos deslocamos para o remoto, para o desconhecido, para o exótico. Ergo, para o Perigo: a antiga cidade de Hatra, no Iraque.
Aqui, um veterano padre católico, de seu nome Lankester Merrin, conduz uma escavação arqueológica. De súbito, é chamado por um subalterno para avaliar as mais recentes descobertas: nada de relevante. Depois, Lankester olha segunda vez para a cova recém-explorada, atraído por uma espécie de amuleto parcialmente oculto pela terra seca. Breve limpeza revela-lhe um «rosto» familiar.
Desde logo fica estabelecido:
Se interferirmos com o Desconhecido e/ou com o Passado, corremos riscos.
E não só – os espelhos invertidos são também visíveis na Atmosfera.
Assim, Georgetown oferece-nos um acolhedor Outono/Inverno, pleno de gorros, cachecóis, casacos e luvas macias, folhas secas, salas com lareiras e carpetes, chávenas de chá e café quente, luzes mornas e almofadas.
Em oposição, Hatra (curiosamente parecida com Hate/Hatred – Ódio) agoniza debaixo de um calor «infernal», poeira, caos e ruído. Os rostos são duros, exóticos, perturbantes, a língua é primitiva, quase alienígena.
Merrin atravessa uma cidade feita de vielas desordenadas, atormentado pela cacofonia dos comerciantes, a tortura redundante dos ferreiros, o sol inclemente.
É um homem abatido, titubeante, um veterano de antigas batalhas. Estas, apesar de vencidas, deixaram cicatrizes: um problema cardíaco, combatido com medicação frequente.
No temporário silêncio do seu estúdio, o pároco consulta os registos para confirmar aquilo que o seu íntimo adivinhou: o rosto do artefacto descoberto na escavação corresponde ao maligno Pazuzu, famoso na antiga mitologia Assíria e Babilónica enquanto «rei dos demónios do vento».
Em simultâneo, o pêndulo do relógio de parede imobiliza-se.
Merrin pressente que um velho inimigo poderá regressar a qualquer momento, funcionando estes sinais como «premonições». Numa última caminhada, retorna à escavação, não sem antes evitar por muito pouco um atropelamento fatal, por parte de uma carroça desgovernada.
Através de um mimetismo a remeter para os duelos do velho Oeste Americano, os seus passos colocam-no diante da estátua de Pazuzu. São observados por um ocaso poeirento e perturbadoramente silencioso, apenas assombrado pela violenta altercação entre dois cães selvagens.
Tal introdução é Resumo e Símbolo do restante.
Georgetown. Conheçam a actriz Chris MacNeil (Ellen Burstyn), de momento a viver em Washington com a filha Regan (Linda Blair). O pai está ausente, talvez em definitivo. O lar confortável é também habitado por Karl e mulher (empregados). Ao serviço de Chris, ainda uma espécie de secretária/auxiliar educativa, de nome Sharon.
Certa noite, enquanto MacNeil estuda as cenas para o seu mais recente filme, o silêncio é perturbado por ruídos anónimos que chegam do sótão. Esta aproveita para confirmar o sono de Regan, notando a temperatura desagradável do quarto à conta de uma janela que ficou aberta.
Dia seguinte.
Karl, tens de colocar umas armadilhas no sótão, parece que temos ratos.
Ratos? Mas o sótão está limpo.
Bom, então são ratos asseados.
Não é possível, senhora.
Ainda ontem os ouvi.
Talvez fossem os canos.
Ou talvez fossem ratos.
Registar algumas coisas nesta interacção:
– Uma primeira divergência de opiniões entre Chris e um interlocutor, enquanto preâmbulo de outras (muito mais graves) que se seguirão, bem como a sua tentativa (aqui tranquila embora firme, no futuro desesperada) de convencer o «oponente» das suas «certezas»;
– A crença subconsciente de que «existem problemas ocultos», seja na casa ou na sua vida/mente;
– Ligeira (e nunca explicada) tendência para uma espécie de autonomia de Karl, que aparenta convicções fortes e a tentação de agir em segredo.
Conclui-se que MacNeil é (por agora) o centro em redor do qual tudo gira. Lidera a família e lidera – enquanto protagonista – a película medíocre que o seu amigo Burke Dennings realiza.
Será no entanto boa ideia começarmos desde logo a questionar este ordenamento.
Na vida privada, Chris parece estar a lidar com uma separação/divórcio que a transforma na única referência de Regan, carece do auxílio de Sharon na educação da filha e nem o subalterno Karl exibe grande vontade de cumprir as suas ordens.
Na vida profissional, a carreira parece já ter visto melhores dias (se os houve), estando de momento reduzida ao papel de protagonista num filme obscuro.
Este versa sobre «activismo estudantil», mas trata o tema com paternalismo e mesmo algum desdém, como se tudo não passasse de uma superficial fantasia de Walt Disney.
Não entendo esta parte.
Está tudo aí, o Governo quer destruir a Faculdade, os estudantes protestam…
Burke, eu sei ler, estou a perguntar-te o significado disto. Não faz sentido. Porque diabo iria o Governo destruir a Faculdade?
Não sei minha querida, achas que telefonemos ao argumentista? Ouvi dizer que está em Paris.
Em fuga?
Em festa.
Parece ridículo ouvir Chris a gritar ao megafone: «Se queremos mudança, temos de lutar por ela dentro do Sistema», mas esta frase por si só resume (não sem ironia cruel) a futura batalha que aguarda aquela mãe. Esta lutará primeiro dentro do Sistema, depois completamente fora dele.
As «premonições» na vida de MacNeil podem não ser tão rudes como as que visitaram o padre Merrin no Iraque, mas são gatos escondidos com cauda de fora. No caminho com travo a bucólico que esta percorre até casa, apenas os mais distraídos não tomarão nota das crianças trajadas para o Dia das Bruxas (o que situa a narrativa em Novembro), logo seguidas de um par de freiras, cujas vestes flutuam ao vento como fantasmas benignos. Aqui chegados, relembrar que Pazuzu é o «rei dos demónios do vento».
Regan teve um dia óptimo. Passeou com Sharon, viu um cavalo lindo, «mãe, podemos ter um cavalo?» e ainda não sabe o que prefere fazer no aniversário que se avizinha. Está prestes a celebrar 13 anos. De caminho, rouba uma bolacha e a mãe persegue-a numa luta amigável. «Passa isso para cá, menina». «Não».
Não se esqueçam. Todas as pneumonias graves começam com um espirro.
Na referida caminhada, Chris passou à porta de uma igreja e o vento trouxe-lhe um curto diálogo entre o padre Karras (origem grega) e outro acólito, acerca da progressiva ausência de Fé. Damien (algo parecido com Demon – Demónio) Karras (Jason Miller) é um jesuíta que exerce as funções de psiquiatra dentro da congregação. Lida com todo o tipo de questões mentais entre os seus pares, mas sobretudo com crises de fé. Ironicamente, ele próprio passa por uma crise de identidade (religiosa e não só).
A mãe de Karras não vive na elitista zona de Georgetown, mas num bairro degradado de Brooklyn. Este não caminha por ruas polvilhadas de folhas douradas, antes mergulha na insalubridade e escuridão do metro (paralelo com o percurso de Merrin) que o cospe para as vielas agressivas e abandonadas que enredam o apartamento sombrio e deprimido da idosa.
Karras (como Merrin, presume-se) tem um passado de combate. Nas paredes exibem-se velhas fotografias de um lutador de boxe. Podemos perguntar o que leva um antigo pugilista a transformar-se num padre, mas a narrativa prefere que especulemos sobre o assunto.
A mãe de Damien não é apenas idosa. É também solitária, carente e debilitada. Essa fragilidade física (problemas circulatórios nas pernas) parece estar a provocar uma lenta doença mental (amnésia e desorientação).
Merrin, Karras e MacNeil estão assombrados pelo Passado. Diante da Caixa de Pandora, resta abri-la.
«Regan teve um dia óptimo». Construiu um boneco de plasticina vagamente parecido com o Poupas, da Rua Sésamo, mas que ela prefere chamar de Capitão Howdy (Howdy é também um coloquialismo para Hello – Olá). Bem, uns acharão a figura parecida com o Poupas, outros com Pazuzu. Sim, esse Pazuzu.
E quando não está a moldar o amigo imaginário, Regan está a falar com ele. Como? Adivinharam: com uma Tábua Ouija.
O Capitão Howdy, contudo, parece algo tímido. Só se manifesta na ausência de adultos. Por agora.
A sós com Regan, pelo contrário, é cheio de informação «útil».
Vais casar com o Burke?
Não, a que propósito? É apenas um amigo.
Bem, mas gostas dele.
Claro que sim, mas também gosto de gelado e não vou casar-me com um.
Disseram-me o contrário.
Quem?
Bem…não me disseram…talvez tenha sido eu a pensar.
Notem, «espíritos» e «demónios» podem germinar a partir de muita coisa. Pensamentos, opiniões, medos, traumas. Crises psicológicas.
Tem de me atribuir outras funções, padre, não me considero apto a prosseguir.
Mas se é o melhor que nós temos.
Talvez, mas não falo apenas de questões menores, as dúvidas dos acólitos versam convicções profundas, relacionadas com a própria Fé e já não consigo lidar com isso. Demito-me.
Eis o diálogo que neste momento alimenta o encontro entre Karras e um superior hierárquico.
E Damien, como é óbvio, não é o único em crise. O lar dos MacNeil também já conheceu melhores dias. Chris arremessa o seu desespero para o outro extremo de uma chamada internacional, onde a recepcionista de um hotel na Europa (Itália) foi eleita pelo pai de Regan para anunciar a sua indisponibilidade, até mesmo no dia do aniversário da filha.
É portanto normal que a mãe grite a sua indignação e que Regan absorva toda aquela energia negativa, que depois expressará da forma que puder e souber. São também livres de especular sobre os motivos do divórcio e sobre a relação que existiria (ou não) entre o pai e a criança.
O filme de Burke – pasme-se – exige que uma determinada cena seja gravada ao amanhecer, pelo que o sono de Chris é brutalmente interrompido pelo toque do telefone. Ainda assim, antes um telefone impertinente do que uma cama instável.
O que estás aqui a fazer?
A minha cama estava a abanar, não conseguia dormir.
Os mais atentos notarão que o rosto de Regan – quer naquele momento quer na fotografia colocada ao lado da cama – está prisioneiro de qualquer coisa maligna: censura, ressentimento, medo, apelo.
Problemas no sono? Talvez seja tempo de, por fim, visitar o sótão.
Karl parece estar certo. Arrumação, limpeza, ratoeiras vazias. As razões para o breve susto não podiam ser mais prosaicas.
Está a ver, minha senhora? Não há ratos.
Muito bem, Karl. De facto não há.
Admitamos. Roedores deste género, a existirem, são imunes às minúsculas armadilhas do funcionário. E por esta altura, abandonaram o sótão há muito.
Será também difícil que os autores da profanação que teve lugar durante a noite, numa igreja próxima, sejam seres de quatro patas.
Somos então forçados a fazer exames. «Se queremos mudança, temos de lutar por ela dentro do Sistema». Numa consulta preliminar, é atribuído a Regan um conjunto de alterações hormonais comuns à mudança de idade (adolescência), que também pode explicar as progressivas mudanças de comportamento: agressividade, apatia, mentira frequente.
À partida, o retrato de uma adolescente, sobretudo se esta é filha de pais separados e pode ter experimentado algum tipo de trauma, posteriormente reprimido.
Rebeldia, histerismo (cuspir nos médicos) e obscenidade cura-se – segundo estes – com Ritalina.
Quando não funciona, fazem-se novos e dolorosos exames, decerto mais perturbadores que um amigo imaginário, em busca de uma doença física que não existe.
Cada vez mais óbvia é a doença da mãe de Karras. Um tio encontrou-a desfalecida no apartamento e a ausência de recursos financeiros na família «obrigou-o» a interná-la num hospício. Segundo consta, a enfermidade afectou em definitivo a lucidez da idosa, que passava os dias «a falar sozinha com o rádio».
Aqui vale a pena estabelecer um paralelismo entre Regan e a mãe de Karras, uma vez que essa intersecção terá influência decisiva no rumo da narrativa.
– Regan padece (talvez) de um problema psicológico, que é de certa forma ignorado a favor de uma doença física inexistente.
– A mãe de Karras padece de uma óbvia doença física, que é de certa forma ignorada a favor de um problema psicológico (quase) inexistente.
Em ambos os casos se dispensa à partida (sem retorno) a provável causa real de todas as agruras: o factor emocional.
Karras é forçado a visitar a mãe naquele depósito de desespero, originando uma das alegorias mais óbvias em todo o filme: almas perdidas e horrorizadas em busca de salvação, um antídoto que Damien (Deus – Demónio) é incapaz de fornecer.
Porque me fizeste isto, «Dimi»?
Mãe, teve de ser.
Porque me puseste aqui? Porque me abandonaste?
Mãe, não se preocupe, vou tirá-la daqui.
E depois, com o tio:
Não havia outra solução? Isto não é lugar para ela.
E quem paga as contas? Tu?
Karras descarrega as frustrações no ginásio, em luta com «demónios internos». Uma espécie de estágio disfuncional para o que se aproxima.
Entretanto, a casa dos MacNeil procura uma normalidade alimentada a Ritalina. Chris organiza uma pequena reunião de amigos, porque é isso que as actrizes em busca de novos rumos para a carreira fazem. Nela estão algumas pessoas relevantes – Burke Dennings, um astronauta conhecido, o padre Dyer (amigo de Karras), entre outros. Também Sharon e os funcionários (Karl).
Ocupemos uns minutos com Burke Dennings, o medíocre realizador. Burke Dennings o alcoólico. Burke Dennings o «amigo» de Chris, com quem ela não vai casar, apesar de Regan «estar confortável com a ideia».
Encontrei um pêlo púbico na minha bebida. Não faço ideia de quem é.
Ocupemos uns minutos com a estranha desavença entre Burke e o funcionário Karl.
Isso é um nome alemão?
De que está a falar? Eu nasci na Suíça.
E pouco depois:
Nazi miserável.
Cale-se. Olhe que eu dou cabo de si.
Outros tratam de separá-los. Logo em seguida, Chris e Sharon arrastam o realizador para a saída. Este abraça a anfitriã com tocante fragilidade e ameaça revelar algo que mantém oculto.
Tanto pior.
É tudo isto irrelevante, ou devemos investigar o subtexto? O que simboliza, de facto, Burke? Será o seu alcoolismo, promiscuidade e irascibilidade um espelho do pai de Regan? A sua descontextualizada zanga com Karl, apenas um produto da embriaguez e do ambiente conflituoso que assombra a residência (ver primeira disputa de Chris com Karl e pequena «luta» entre Chris e Regan) ou existe aqui uma agenda contra o Exterior, o Estrangeiro enquanto fonte de Perigo? (ver a oposição já referida entre Segurança-Georgetown e Perigo-Hatra). Que confissão se preparava para fazer Burke? Algo sobre si próprio? Algo sobre Karl?
Não descuremos o detalhe de estarmos perante um conjunto de vinhetas, de «visitas» à realidade destas personagens. Ao contrário de outras narrativas, esta chega-nos intercalada, mutilada na sua linha cronológica. O que acontece «fora de enquadramento» é tão ou mais relevante do que o visível.
Nomeadamente: quem, quando e com que objectivo, visita Regan no seu quarto, na ausência de Chris?
De novo o paralelismo (contrastante) com a mãe de Karras: esta é encontrada sozinha no apartamento, vários dias depois de falecer.
No término da noite, Regan desce as escadas para uma curta visita. Dois apontamentos:
– Anuncia ao astronauta que este «vai morrer lá em cima (no Espaço)».
– Urina na carpete.
Talvez não devamos levar isto demasiado a sério. Afinal de contas, adolescentes problemáticos dizem e fazem coisas estranhas. Ainda mais quando estão «doentes». Ou isso, ou Regan anda de novo a falar com o Capitão Howdy.
A mancha está a sair? – Questiona Chris.
Sim, senhora. – Anuncia a mulher de Karl.
Mas não está, Chris. Podemos assegurar-te que não só não está a sair, como irá crescer de forma irreversível.
Se não acreditas, corre ao quarto de Regan (lavada e deitada), para confirmares o quanto aquela cama «abana». O vosso problema não é o que aconteceu até agora.
É o que se vai seguir.
O padre Dyer visita Karras, mergulhado na melancolia atormentada do seu quarto, na congregação.
Devia ter lá estado (referindo-se à mãe).
De passagem, diga-se que todos estes párocos estão longe de ser cândidos, reflexo provável da mácula que adivinham no seu estatuto de «guias morais»: fumam, bebem, exibem sexualidade duvidosa.
Onde arranjaste a garrafa?
Roubei-a. Hoje precisas mais dela do que o dono.
Damien mergulha por fim num sono agitado, povoado de pesadelos silenciosos (e por isso mais angustiantes). Neles, corrida interminável para chegar junto da mãe, sem sucesso. Esta ascende das profundezas do metropolitano, chamando por ele, para logo desaparecer sem remissão (com o tio em segundo plano).
Corte radical para nova bateria de exames a Regan, pesadelo lúcido. O número de médicos cresce de forma proporcional à ausência de respostas. A violência e resistência da adolescente aumentam, símbolo evidente da batalha entre Ciência e Oculto (no sentido de ausência de Cura).
Cada exame se assemelha mais e mais a uma intrusão, invasão ou…possessão.
Notem: todas as fronteiras são imaginárias, todos os opostos são semelhantes.
De cada vez que Regan visita os hospitais, regressa pior. Cada dia sem uma solução é um passo rumo ao desencanto, logo, a novas reacções adversas, logo, a novos exames e medicação, num ciclo infernal.
Quando uma filha desfalece sob o peso de uma doença misteriosa, potencialmente incurável/fatal, «todas as fronteiras são imaginárias». Problemas na instalação eléctrica podem ser mais do que isso. Fantasmas de rostos nas paredes podem ser mais do que isso.
Como vimos em Vanilla Sky, «o subconsciente é algo muito poderoso».
Esquecermo-nos de uma janela aberta pode ser um detalhe, ou uma tragédia. Depende das circunstâncias.
Sharon? Onde estavas? A Regan não pode ter a janela do quarto aberta com este frio, já basta a doença.
Eu sei, desculpe, mas precisava de ir à farmácia despachar os medicamentos, antes que fechasse. Não estava aqui mais ninguém, mas como o Burke veio fazer uma visita, arrisquei deixá-la com ele.
Oh Sharon…
Eu sei, peço desculpa. Foram só alguns minutos.
Toca a campainha.
Calculo que já tenha ouvido.
Ouvido o quê?
Quer dizer que não sabe, afinal…
Do que está a falar?
Do que aconteceu. Do Burke. Morreu. Caiu de uma janela.
Retira-se o arauto. Fecha-se a porta. Agitação vinda do primeiro andar. Regan (?) transformou-se numa «aranha», descendo as escadas em postura invertida. Diante do olhar estarrecido de Chris e Sharon, expele um vómito pleno de sangue.
Enquanto recuperamos o fôlego, podemos tentar analisar o sucedido.
Ponto Um:
Por que motivo terá o realizador decidido fazer uma visita ao lar dos MacNeil, logo num dia em que Chris estava ausente? Apoiar a amiga? Confessar enfim o que guardara na noite anterior? Aproveitar (como foi o caso) uma ocasião para ficar a sós com Regan? Se sim, com que intenção?
Ponto Dois:
Conhecendo Sharon o historial (de alcoolismo, no mínimo) de Burke, a que propósito foi esta capaz de deixá-lo sozinho com a paciente? Seria aquela a única oportunidade de obter os medicamentos? Estavam estes de tal modo esgotados que não era possível esperar pela manhã seguinte ou pela chegada de Chris?
Ponto Três:
Se Chris tem ao seu serviço um casal de funcionários, onde estão eles na ocasião? De folga? Não poderia Karl sair em vez de Sharon? Estaria este afinal em casa (mas recolhido em aposentos interiores) tendo decidido ajustar contas com Burke, na primeira ocasião?
Ponto Quatro:
O que aconteceu, de facto, a Burke Dennings? Caiu da janela (como se assume oficialmente)? Foi empurrado? Por quem? Por Karl? Por Regan? Que motivo teria esta para matá-lo?
Admitamos: nada disto importa quando vemos uma criança a vomitar sangue depois de ter sido, aparentemente, transformada numa tarântula.
Esse episódio é o ponto de viragem na narrativa. Se antes lidávamos com o verosímil, a partir de agora lidamos com o simbólico. Ou pelo menos, com uma mescla entre os dois mundos – uma vez que «todas as fronteiras são imaginárias».
Até aqui, contávamos inclusive com as teses médicas para justificar os episódios mais ou menos perturbadores que afectavam a vida de Regan, sendo boa parte delas lógicas e admissíveis. Agora, se aceitarmos de forma literal cada um dos fenómenos, não existe explicação científica disponível, pelo que somos obrigados a observar o Fantástico. E nele, descobrimos de imediato as respostas para o acto desesperado de Regan:
– Esta deixou de ser uma criança para se transformar numa adolescente (mutação física kafkiana);
– O seu corpo foi (a dada altura ou mesmo em diferentes ocasiões) violentado – com a chegada do ciclo menstrual na melhor das hipóteses ou através de uma forma tentada, talvez consumada, de violação (Pai, Burke ou Karl), o que explica o vómito ensanguentado.
Segundo o Dr. Klein – um dos muitos clínicos perplexos – «a psiquiatria por vezes ajuda». Por esta altura, o painel de «especialistas» desistiu de torturar Regan, encaminhando-a com maior ou menor relutância para «fora do Sistema».
Incrível, mais de 80 médicos e nenhum consegue dar-me uma solução.
Alguma vez considerou a hipótese de um ‘exorcismo’?
Deixe-me ver se entendi: os senhores estão a sugerir que eu leve a minha filha a um bruxo?
Tem resultado em alguns casos. Claro que não se trata de um procedimento real, mas o facto de o paciente acreditar que está possuído pode levá-lo à cura, se for sujeito a um ‘tratamento’ para o problema imaginário.
Entendam de uma vez, caríssimos doutores. O problema de Regan não é imaginário, é apenas invisível para o vosso equipamento de diagnóstico.
Esta não precisa de cura fisiológica ou psiquiátrica. Apenas emocional.
Carece de alguém neutro, calmo e bondoso. Alguém como o tenente William Kinderman (Kind man – homem afável e generoso).
Este, contudo, está ainda longe de juntar as peças. De momento, aborda o padre Karras no final de um treino (corrida circular), apenas para se apresentar e arriscar uma correlação entre a profanação da igreja e a morte de Burke.
Está a pensar num fanático religioso?
Nunca se sabe. Ouviu falar no que aconteceu ao Sr. Dennings?
Sim, infelizmente. Caiu de uma janela e rolou por umas escadas.
Vou dizer-lhe algo que não veio nos jornais: Burke Dennings foi encontrado no fundo dessas escadas, com a cabeça completamente virada ao contrário.
Por causa da queda?
É possível, mas…
Improvável.
Bastante.
(Não deixem de notar que este diálogo se desenrola com um jogo de ténis em pano de fundo, do mesmo modo que em muitos exames de Regan existem crianças em «lutas amigáveis» nas salas de espera. Sempre a ideia de duelo).
Se ainda é cedo para Kinderman juntar peças, nós pelo contrário podemos fazê-lo.
Recordem os – ligeiros mas variados – sinais dúbios vindos de Karl e da mulher. Acrescentem-lhe este.
Foste tu que puseste o crucifixo debaixo da almofada da Regan?
A menina está melhor?
Foste tu ou não?
Não, minha senhora. (Ligeira pausa) Não fui eu.
Kinderman chega para uma visita, não sem antes analisar as escadas ominosas e junto delas encontrar uma escultura em barro. Um pequeno rosto que nos faz pensar no Poupas. Ou no Capitão Howdy. Quem sabe mesmo em Pazuzu.
Chris, ainda de crucifixo na mão, desde ao rés-do-chão. Ao acorrer à campainha, coloca-o numa mesinha de apoio.
O tenente faz uma visita de cortesia. Parece não assimilar a dificuldade da Sra. MacNeil em permanecer cortês e racional, mas apenas porque a sua experiência o ensinou a valorizar o aparentemente assessório.
É sempre inteligente confiarmos em alguém que nos avisa para o perigo das correntes de ar. Porque esse alguém, poderá também notar que a nossa filha tem um novo passatempo: escultura.
«Chris, ainda de crucifixo na mão, desce ao rés-do-chão. Ao acorrer à campainha, coloca-o numa mesinha de apoio». Certo?
O crucifixo que não pertence a Karl. Certo?
Visitemos Regan.
Ninguém deu ouvidos a Kinderman, porque a janela aberta permite a entrada de uma corrente de ar, logo transformada em ventania (Rei dos demónios do vento), forte o suficiente para colocar objectos a voar em círculos.
Daqui, para uma Regan irada (podem adolescentes raivosos atirar objectos pelo ar, arrastar móveis, bater portas e mesmo esbofetear o progenitor? Claro que sim.), que de crucifixo na mão, bem…digamos que o utiliza para um doloroso acto sexual.
Chris, durante a conversa com Kinderman, pressentiu (ou confirmou) que o acidente de Burke não foi um acidente. É com essa ideia na mente que acorre ao quarto da filha. É em estado de choque perante o que presencia que a ouve perguntar, com a voz de Burke:
Sabes o que ela fez? A rameira da tua filha?
Por esta altura, lembremos o raciocínio lógico aplicado no episódio da «aranha». Utilizemo-lo para fazer as perguntas certas, que nos permitirão juntar mais peças.
– De que modo regressou o crucifixo às mãos de Regan?
– O que simboliza tal objecto, numa casa onde apenas Karl é crente? (Olhar à forma).
– De que forma podemos associar a metáfora do vómito ensanguentado a esta masturbação/violação ensanguentada?
Guardemos para daqui a pouco o fenómeno auditivo relacionado com Burke.
De momento, Chris abandonou o território médico, seja este fisiológico ou psiquiátrico. Até mesmo o nicho que lida com hipnose. A batalha desta mãe passará a ser travada, em exclusivo, «fora do Sistema».
O que me diria, se lhe pedisse para fazer um exorcismo à minha filha?
Em primeiro lugar, para se deslocar ao século XVI.
Ao contrário do que se possa pensar, um exorcismo considerado «válido» é algo (quase) inexistente. Karras, por exemplo, em toda a carreira nunca ouviu falar de nenhum.
Digamos que o procedimento saiu de moda quando a Medicina descobriu doenças como a esquizofrenia, a bipolaridade e a depressão.
Portanto o que resta? O que resta quando Ciência, Medicina e até mesmo a Igreja falham? Onde colocar a Esperança?
Talvez na simples empatia.
Karras aceita visitar a decadente Regan. O antigo quarto é agora uma mescla de sanatório, prisão e zona interdita. Qual vírus, o problema começou a invadir a casa do mesmo modo que o faria com um corpo (ou com uma mente).
Perguntas:
– Se Regan padecesse de uma doença não-identificada, poderia estar inchada, com uma cor de pele amarela/esverdeada e ofegante? Podia.
– Se – à semelhança do que fez com o crucifixo – em diversos acessos de raiva, se mutilasse, poderia ter feridas espalhadas pelo corpo e rosto? Podia.
Ou, pode estar possuída por um demónio lendário chamado Pazuzu.
Acompanhemos Karras, o padre com uma grave crise de fé, cuja morte recente da mãe em circunstâncias perturbantes o deixou preso a uma culpa profunda.
Queres falar com a tua mãe? Estou aqui com ela.
De novo com Chris, observando de relance antigos desenhos da filha, onde se retratam duelos interiores e traumas reprimidos.
Atirei-lhe umas gotas deste líquido e ela reagiu como se tivesse sido queimada, tal como acontece com a água benta.
Qual é a diferença?
A água benta é benzida.
E então?
Isto é simples água da torneira. É preciso que saiba que a sua filha não alega estar possuída por um demónio. Alega ser nada menos do que o Diabo. Isso para qualquer psiquiatra equivale a alguém dizer que é o Napoleão Bonaparte.
Pensei que a Igreja era perita nestas coisas.
Não existem peritos! Para todos os efeitos, a senhora é capaz de perceber tanto de exorcismos como eu.
(…)
Já contou o que se está a passar ao pai dela?
Não.
Acho que deveria.
Mas Chris não irá informar o ex-marido. Irá, pelo contrário, insistir na realização de um exorcismo, efectuado por um padre que duvida da existência de Deus (logo, do Diabo, logo, de qualquer demónio, logo, da possessão em si mesma).
Sem surpresa, o sucesso é nulo. «Pazuzu» brinca com as palavras, Karras procura apanhá-lo(la) em falso. Como resposta, é encharcado de vómito verde – fenómeno que dificilmente prova seja o que for.
Novo diálogo com a mãe:
Se me mostrassem uma criança gémea, com o mesmo corpo e a mesma voz, eu saberia de imediato que não era a minha filha. Garanta-me com total certeza que aquela pessoa lá em cima é a Regan. Garanta-me com total certeza que um exorcismo não é solução. Vá lá! Pode garantir?
Não. Karras não pode assegurar nada, pode apenas estudar as gravações que fez da panóplia de vozes e murmúrios que ecoam naquele quarto. Uma vez que uma das «provas» da existência de um demónio consiste em ouvir a «vítima» falar fluentemente uma língua que desconhece, as coisas complicam-se cada vez mais para a família MacNeil, pois o que se escuta é…inglês invertido. Uma «habilidade» que qualquer nativo da língua pode desenvolver, caso pretenda. A frase decifrada é:
I am no one (não sou ninguém).
Portanto, seja quem for que está no quarto apresentou-se no primeiro dia como «Diabo» apenas para no segundo afirmar «não ser ninguém».
O que nos empurra mais na direcção da doença mental (ou emocional) e menos na da possessão.
Telefonema. Sharon, a mesma que deixou Regan à guarda de Burke (escolha suficiente para nos fazer duvidar do seu sentido de responsabilidade), convoca Karras para uma visita.
Não quero que a Chris veja isto.
Será que Sharon esconde outras coisas da Sra. MacNeil? (Perguntamos nós).
Invadindo furtivamente o quarto de Regan, revela-se um macabro pedido de socorro, chegado do âmago da infeliz adolescente. Talvez.
Fidedigno o suficiente para convencer Karras, pelo menos. Este consulta as chefias eclesiásticas, que de forma ainda relutante aceitam que o padre inicie o processo de «exorcismo». Afinal, como dizia o Dr. Klein «se todos acreditarem na falsa doença, acreditarão também na falsa cura».
Seria no entanto melhor contar com o auxílio de alguém mais experiente.
Muito bem. Quem?
Um veterano chamado Lankester Merrin.
Não está no Iraque?
Voltou, está no Interior a escrever as memórias. Já passou por isto antes, um episódio qualquer em África que durou meses. Quase lhe custou a vida.
Merrin regressou às origens. Não é o que fazemos todos? Não nos aguarda o exílio no fim do caminho, onde nos confrontaremos com os erros passados? Os «pecados»?
Se não vos ocorre nada que simbolize a Culpa no percurso de Merrin, «um episódio qualquer em África» cumpre decerto o papel alegórico para as acções da Igreja no Terceiro Mundo, ao longo da História.
Ou podemos estar errados. Toda e qualquer tese apresentada no texto pode ser perfeita ou ridícula. Afinal, segundo Lankester:
O demónio é mentiroso, mas mistura verdade com mentira, para nos confundir.
Uma coisa parece certa, ainda segundo Merrin: O ataque é emocional.
Repetimos: O ataque é emocional.
Lembram-se do fenómeno auditivo ocorrido com Chris, acerca de Burke? Lembram-se da lição de «Vanilla Sky»? Lembram-se de como tudo, a partir do episódio da «aranha» é uma hipérbole da mente?
Continuemos.
A dupla de padres enfrenta pela primeira vez o problema em conjunto. Regan/Pazuzu redobra os artifícios, repetindo alguns (vómito verde) e tirando novos da manga (levitação).
Contudo, por esta altura, assumimos que cada um vê aquilo que quer (precisa) ver.
Repare-se:
– Merrin ocupa o tempo a ler as Escrituras;
– Karras, o mais impressionável (e depreende-se, culpado), é o alvo de grande parte das bizarrias – «mataste a tua mãe».
O longo e doloroso processo exige uma pausa.
Penso que o objectivo é originar desespero. Mostrar-nos selvagens e abjectos.
Missão cumprida.
Não só selvagens e abjectos, mas egoístas, solitários, perdidos, fracos.
Merrin sente o coração a fraquejar, recolhendo-se breves minutos nos lavabos. Revelando-se uma vez mais um «humano a cometer erros humanos», Karras decide entrar no quarto sozinho.
E o que vê ele? Espasmos? Aberrações? Obscenidades? Torrentes de vómito? Camas flutuantes? Levitações? Não.
A imagem angelical (mas perdida) da mãe morta.
Ficou claro?
Não és a minha mãe!
Não, Karras. É só uma menina carente.
Adivinhando a derrota espiritual do colega, Merrin fica por sua vez sozinho no quarto. Disponível para a sua derradeira batalha.
No rés-do-chão, Damien é abordado por Chris, tão frágil como uma criança.
Acabou?
(Acena negativamente).
Ela vai morrer?
Esta frase obriga-nos (e sobretudo Karras) a reordenar a perspectiva. A recolocá-la no sítio certo. Não é (não pode ser) acerca de mais nada. É apenas e só acerca da vida de Regan.
Não! – Afirma ele, como se subitamente consciente disso.
Ao chegar lá cima, confirma a evidência: a batalha ocorreu. Merrin saiu derrotado (embora livre?).
Karras tem apenas uma alternativa: imitá-lo.
Escolhe-me! Leva-me!
Antes de se atirar pela janela, num suicídio (talvez há muito) planeado, Karras resiste ao impulso de magoar Regan, procurando redimir (eventuais) acções prévias. A sua morte imita a de Burke (um dos possíveis agressores).
«Exorcizado o mal», a adolescente pode «regressar» à normalidade.
O padre Dyer absolve o amigo moribundo de todos os «pecados».
Não existem finais felizes. De facto. Existem acções, reacções e consequências. Memórias e cicatrizes. Alívio temporário, antes do derradeiro.
Chris, Regan, Karl e a mulher partem. Sharon fica. Foi o «mal» derrotado? Não, porque de nós origina e em nós permanece (Karl continua presente).
A janela do antigo quarto da adolescente está agora coberta por uma frágil tábua de madeira. Mas como vimos, «as fronteiras não existem».
Kinderman, ao contrário de Dyer, chega atrasado para as despedidas. Assim é, quase sempre. As respostas (se as há) chegam tarde demais.
Acabou de perdê-los.
Ah, que pena. A miúda está bem?
Sim, pareceu-me recuperada.
Ainda bem. (Ligeira e reveladora pausa). Ainda bem.
Kinderman, como nós, talvez saiba a verdade.
Mas terá de esperar.
Apêndice:
– «Sobre Culpa»: Tema Central.
– «Sobre Famílias Disfuncionais»: MacNeil, Karras.
– «Sobre Xenofobia»: EUA vs. Iraque/África; Burke vs. Karl
– «Sobre Violação e/ou Pedofilia»: Pai, Burke, Karl, Igreja.