Prefácio
Nos idos de 2000, muito antes de Alejandro González Iñárritu se tornar conhecido à conta de filmes como «21 Gramas» ou «Babel» (e mais tarde «Birdman» ou «O Renascido»), ou quando Gael García Bernal era tão anónimo que nos créditos ainda respondia apenas por Gael García (será depois protagonista em «E a Tua Mamã Também» e «Diários de Motocicleta», para além de participar em «Ensaio sob a Cegueira», por exemplo), tomei conhecimento de um filme relativamente discreto, (apesar dos prémios que depois ganhou) de seu nome Amores Perros.
A provocação começava logo no título: sendo um enredo que inclui diversos amores e diversos cães (perros) e podendo por isso ser traduzido na sua forma mais literal – «Amores e Cães» – dá no entanto um passo em frente ao remeter-nos para a expressão castelhana «amor perro». Ou seja, «amor cão». Ou seja, um amor tóxico, difícil e/ou condenado.
Se ainda não se cansaram das referências cinéfilas, acrescenta-se que a narrativa – partida em três blocos com vasos comunicantes – fará com que alguns recordem «Pulp Fiction».
O que liga as diferentes histórias?
Um acidente de carro, num cruzamento onde todos se encontram a dado momento (entre outros detalhes que abordaremos adiante).
Os três quadros acompanham parte da vida de Octávio e Susana, Daniel e Valéria, «El Chivo» e Marú.
Em redor destes, outros, como Ramiro (irmão de Octávio e marido de Susana) ou Jorge (amigo de Octávio).
Neste filme em particular, seria estranho que os cães não fosse também protagonistas. Apresentamos Cofi/Negro (a cargo de Ramiro/Octávio) e Richie (a cargo de Valéria). A situação de «El Chivo» é um pouco diferente, como se perceberá.
Enredo e actores moldariam em diferentes alturas e por diferentes razões a minha vida pessoal e literária. Por falar em Literatura, quem quiser pode adquirir o livro aqui.
O Filme
A entrada no enredo é abrupta, como quem acorda a meio do filme. As imagens são entrecortadas e irreais, por vezes mudas, como num sonho. Uma perseguição, dois jovens num veículo – mais tarde se conclui que ao volante está Octávio e a seu lado Jorge, que procura salvar Cofi (um cão ferido).
Acossados pelos rivais, ensaiam uma manobra de risco e falham. Acidente brutal com outro veículo.
Esperem. Respirem. Recuemos um pouco.
Octávio e Susana
Bairro social na Cidade do México. A estafada habitação tolera os irmãos Ramiro (mais velho) e Octávio (mais novo). O primeiro engravidou a adolescente Susana, que depois do casamento e do parto se instalou com eles. A simular supervisão, a mãe dos irmãos e avó do bebé.
Há um cartaz do Papa numa das paredes, mas aquelas vidas precisam de muito mais do que Fé para sobreviver ao quotidiano.
Notem, Susana ainda está a terminar o Secundário, pelo que na época de exames nem sempre consegue atender às infinitas necessidades da criança. A sogra comenta com mal disfarçada amargura:
Criei os meus filhos, agora cria tu os teus.
Em teoria, a mãe de Susana pode equilibrar a balança, mas a teoria é quase sempre uma coisa ingénua.
Ramiro, pelo contrário, tem pouco de ingénuo. Aprendeu a ser um duro, ainda que o prazo de validade dessa dureza termine nas fronteiras do bairro (aqui enquanto construção mental, mais do que física). Trabalha num supermercado, onde por vezes aquece as frustrações no colo de uma colega de caixa. Nos tempos livres, com a atrapalhada ajuda de um conhecido, rouba farmácias, enquanto não ganha coragem para «o grande golpe», um idealizado assalto a um banco.
A observar tudo, Octávio. E quem diz observar diz reflectir, planear, conspirar. Ao irmão mais novo restam poucas dúvidas de que é o elemento mais inteligente da família. Para ele, a mãe é um fantasma, o irmão um empecilho violento e rude e a cunhada o objecto de desejo obsessivo.
Ouvi dizer que as farmácias são um grande negócio.
As provocações ao irmão são várias e crescentes. Quando Susana, apesar dos avisos, deixa Cofi fugir mais uma vez (um evento de múltiplos significados), Octávio salta ao caminho qual cavaleiro andante, defendendo-a da raiva impaciente de Ramiro.
Não te metas.
Não te metas o quê, quem deixou fugir o cão fui eu. Agora acabou-se a conversa.
E depois…
Sabes como fazem os pediatras com os meninos? Metem-lhes um dedo no rabinho, quando nascem. Se o miúdo der pontapés, vai ser futebolista. Se gritar, vai ser cantor.
Ah sim? E com as meninas, como fazem?
Bom, com as meninas podemos meter o dedo enquanto elas deixarem.
O facto de Susana estar disponível para se rir da piada idiota do cunhado funciona como catalisador do desejo dormente em Octávio, mas é também um óbvio prenúncio de desgraça.
E desgraça é coisa que se encontra com facilidade naquelas esquinas.
Nas mais escuras, circula um lucrativo negócio de lutas de cães. Maurício, «El Gordo», gere o processo com evidentes vantagens. A estrela e sócio não-assumido responde pelo nome de Jarocho, uma espécie de «maior da aldeia» que é dono dos melhores cães, logo da maioria das vitórias, logo dos maiores dividendos (que partilha com Maurício).
Certa tarde, ainda sem conter a adrenalina causada pelo mais recente massacre –
Não queres o cadáver do teu cão?
Podes assá-lo de churrasco.
– Jarocho ameaça soltar a sua máquina sanguinária sobre uma matilha inofensiva que rodeia um sem-abrigo (El Chivo).
Contudo, este não é alguém indefeso ou incauto. Responde à intenção de Jarocho sem palavras, mas com a mão numa catana.
O «maior da aldeia» raramente tem arsenal para dominar a vila/cidade, pelo que redirecciona a sua agressividade para um cão perdido, do outro lado da rua.
Esse cão é Cofi.
A observar tudo isto, Jorge, um amigo de Octávio e conhecido de Ramiro.
(Todos eles habitam o mesmo bairro, ou proximidades).
Cofi é talvez um dos personagens mais enigmáticos do enredo, o que não é dizer pouco tendo em conta que é um cão. Pertence a Ramiro, quem sabe a Octávio – ambos discutirão isso no futuro – quem sabe um pouco a Susana. E contudo, não obedece a ninguém. É doméstico, pois vive com a família, mas também vadio, porque sai e entra a seu bel-prazer. É pacífico – não ataca sem motivo – mas letal (Jarocho descobre isso rapidamente).
É assim uma espécie de anomalia, de ser contraditório e atormentado (semelhante ao Frankenstein a preto e branco que Octávio observa na pequena televisão do quarto).
Este é interrompido pela chegada de Jorge – que lhe relata o sucedido – e logo em seguida de Jarocho e su pandilha.
Cofi eliminou o «campeão» do rival (em legítima defesa).
Consequências?
Segundo Jarocho, Octávio terá de pagar – não é aconselhável cobrar essa dívida a Ramiro, o maxilar ainda lhe dói desde a última vez.
O calculista/idealista irmão mais novo pondera.
Não que se consiga pensar no silêncio da noite, já que esta é com frequência incomodada pelas rudes maratonas de sexo entre Ramiro e Susana.
Uma vez é azar, duas vezes é outra coisa. Susana está de novo grávida, de novo sem intenção.
Essa «outra coisa» não se sabe muito bem o que é, tendo em conta as marcas de sangue que Octávio lhe descobre na orelha. O cavaleiro andante sai de novo a terreiro, para grande desagrado da mãe:
Que seja a última vez que acolhes a mulher do teu irmão no quarto.
Estávamos a ver televisão.
Pouco importa. Já sabes que ele não gosta.
Mas não será a última vez, tão-pouco apenas no quarto dele e em nenhuma delas a televisão estará ligada.
Foge comigo.
Eis o aparente dilema de Susana:
– De um lado Ramiro, marido e pai dos dois filhos (um nascido, outro a caminho), principal sustento da casa, violento mas presente – embora infiel sem o conhecimento desta.
– Do outro Octávio, apaixonado e prestável, mas cunhado e sem recursos.
O que poderia o segundo fazer para se tornar um melhor partido que o primeiro? O que faria aquela adolescente confusa e assustada, ingénua mas com a «maturidade das ruas», ponderar uma radical mudança de vida?
Estás louco, pá. É a mulher do teu irmão.
Já gostava dela antes dele a conhecer.
Livra, mas há milhares de miúdas que podes «comer».
Não a quero «comer», idiota, quero viver com ela.
Ah sim? E como pensas sustentá-la?
Um olhar intenso e um beijo roubado fizeram maravilhas pela capacidade de raciocínio de Octávio. O objectivo é Susana. Para ter Susana, é preciso dinheiro. Para ter dinheiro é preciso uma fonte de lucro. Essa fonte de lucro (fácil, rápido e relativamente seguro) são as lutas de cães. O cão que pode ajudar Octávio (e muito) é Cofi.
As lutas de Cofi são de certa forma (durante algum tempo) as lutas de Octávio.
Assistimos então ao progressivo efeito-borboleta.
Maurício organiza as refregas. Jarocho serve em bandejas de frustração e ódio crescentes as vítimas com as quais Cofi palita os dentes. Os lucros tombam agora em novas mãos. «El Gordo» assiste, expectante, enquanto enfia notas no bolso. Octávio ri-se. Jarocho não.
O resultado é imediato e sustentado. Dois cães para um só osso.
Ramiro, depois de outro assalto, chega com um walkman, um peluche e excesso de álcool. Octávio, depois de outro sucesso de Cofi, chega com fraldas, comida e excesso de desejo.
Susana continua a negar partir com o cunhado, mas não nega entregar-se a ele.
Octávio provoca o irmão, fazendo-se atender por este no supermercado. O diálogo amigável termina com uma cabeçada do primeiro no nariz do segundo.
Acto contínuo, o segundo agride o primeiro no duche, abrindo-lhe a cabeça. Depois, percebendo com facilidade que a fonte de lucros é Cofi, ameaça matá-lo, caso não receba parte dos dividendos.
Para os mais distraídos, estamos num mundo-cão.
Ramiro luta por Susana mas enrosca-se na colega de caixa. Susana vive com Ramiro mas enrosca-se em Octávio, com prazer crescente. Maurício lucra com Octávio, mas deve alguma coisa a Jarocho. Octávio pode parar a tempo, enquanto o (muito) dinheiro que poupou ainda está no esconderijo e Susana ainda está pousada na sua mão, mas prefere (como o irmão) tentar «o grande golpe», não através de um assalto a um banco, mas de uma última grande luta. Susana ponderou fugir com Octávio, mas um marido é um marido e dois filhos são dois filhos, sobretudo porque da mãe só se esperam ressacas, da sogra só se espera desprezo e de Octávio parece afinal só se esperar uma mescla de delírios de grandeza, obsessão e a mesma violência. Não para com ela (pelo menos fisicamente), mas sobre Ramiro – Octávio paga a Maurício para que este organize o espancamento do irmão.
Por outro lado, Jarocho paga ao mesmo Maurício para que este organize a mencionada derradeira luta e o que mais vier.
Na véspera do combate canino, Octávio regressa a casa como quem retorna ao seu (pequeno) castelo de ilusões.
Sabes do teu irmão?
Sei lá por onde anda…
Quer dizer que não estás a par…chegou a casa todo amassado.
Quem sabe no que se meteu, mãe…
Pois digo-te que esteve aqui há bocado. Saiu com a Susana. Não têm prazo para voltar.
O quê?
O problema dos castelos de areia é que estão à mercê da primeira onda.
O problema dos esconderijos secretos é que nunca são suficientemente secretos.
O problema das mulheres que traem, é que podem trair mais do que uma vez.
O problema de Octávio é, no fundo, Octávio.
Mas não só. É também Jarocho e a (nova) falta de fundos. Jorge tenta ajudá-lo, em vários sentidos, enquanto nota a beleza de uma modelo que aparece num programa televisivo (Valéria).
No último encontro, um generoso rival aceita que a luta vá para a frente por metade do acordado. Octávio aprendeu alguma coisa nestes meses, mas ainda não sabe que quando a esmola é grande…
Cofi pode resistir a caninos, mas não a balas (ou será que pode?). Jarocho sabe disso.
Foi um acidente.
Seu sacana.
E o melhor é pores-te a andar, antes que aconteça outro.
Octávio tem ainda outro problema, quem sabe o verdadeiro. Não sabe quando parar. Não parou com Ramiro, não parou com Susana e não parou com Cofi.
Adivinharam.
Não vai parar com Jarocho.
Depois de colocar o cão no automóvel com a ajuda de Jorge, volta atrás, no caso de alguém se ter esquecido de fechar a tampa do caixão. Tenta ousadamente colocar Jarocho nesse caixão, abrindo-lhe o estômago com uma navalha.
Depois, é tempo de fugir. Afinal, as balas são mais fortes que as lâminas.
Quem tombará no túmulo feito de danos colaterais, é Jorge. Octávio não parou diante de nada, excepto de um veículo a alta velocidade num cruzamento. Sobrevive, a custo, ao contrário do amigo.
Por esta altura, talvez seja interessante perguntar quem é o ocupante desse veículo.
Daniel e Valéria
Jorge já não terá oportunidade de reparar nisso, mas aquela modelo tão do seu agrado marcou de facto presença num programa televisivo, daqueles que normalmente entorpecem as manhãs e tardes dos reformados. Nessa emissão apareceu também o oficial interesse amoroso de Valéria – um actor de telenovelas – e o «filho» de ambos, um pequeno cão chamado Richie (Riquinho, para quem quiser notar a ironia).
Como é usual, nada do que (quase) parece de facto é, já que o actor de telenovelas limita-se a sê-lo enquanto a câmara está ligada, em troca de uma capa de revista. Essa revista é gerida por Daniel, o verdadeiro amor de Valéria (mercado de favores oblige).
Se estão a perguntar o motivo deste jogo de sombras, notem que Daniel tem o infortúnio de ser casado com outra pessoa, com a qual tem duas filhas – da mesma forma que Susana era casada com «outra pessoa» que não Octávio, com a qual iria ter dois filhos.
Temos oportunidade de observar essas duas meninas a disputar um brinquedo (osso) com alguma ferocidade (como uma luta de cães) embora revestida pelo verniz civilizacional que nos é prometido pelas classes altas. Porque sim, esta é uma família de classe alta, que nunca grita e raramente se zanga. Sequer quando Daniel recebe telefonemas anónimos. Contudo, nem mesmo a gigante cruz católica por cima do leito matrimonial será capaz de evitar o pecado da gula e da infidelidade. À semelhança da imagem do Papa em casa de Ramiro.
Portanto o actor, combinado com Daniel, conduz Valéria até um novo apartamento, cuja luminosa janela permite observar um gigantesco outdoor com a sua fotografia – a modelo é a nova imagem de marca de um conhecido perfume.
Para além disso, Daniel aguarda-a, com o almoço quase pronto. Para além disso, aquele é o novo apartamento de Valéria, oferta generosa (e financeiramente sofrida) do amante. Para além disso, o amante anuncia que deixará de ser amante, para ser companheiro. Abandonará a família e partilhará casa com Valéria.
O que poderá estragar este idílio pequeno-burguês? Quem sabe um buraco no soalho, que quase engole a perna direita da modelo.
O que é isto?
Fizeram-me um desconto no preço, é um par de tábuas, depois arranjamos.
É evidente que, tal como Octávio, Daniel não aprendeu que quando a esmola é muita…
Porém, o que pode mesmo estragar o idílio da espanhola é a ausência de uma garrafa de vinho, essencial para brindarem àquela nova vida.
Vou comprar uma, enquanto terminas o almoço.
Nesse curto caminho, Richie assinala a presença da matilha do conhecido sem-abrigo, ali por razões desconhecidas. E quando Valéria aborda o cruzamento, percebe que enfiar a perna direita no buraco do soalho foi o menor dos seus problemas.
É essa perna que ficará presa entre o metal retorcido, partida em vários sítios, lacerada e recuperável por milagre.
O cruzamento é – conclui-se – um portal cronológico onde os destinos confluem. Um eixo entre o passado de Octávio e o futuro de Valéria.
Esse futuro será rapidamente consumido por um duplo buraco negro. O real (do soalho) e o virtual (da relação com Daniel).
Como já vimos, os cães são os catalisadores do enredo. São eles que o agarram pelos colarinhos e o encaminham com maior ou menor violência para novas bifurcações.
Sem Cofi, é provável que Octávio ainda estivesse em busca da melhor anedota para entreter Susana.
Sem Richie, talvez o idílio de Valéria tivesse futuro.
O problema é que o médico a proibiu de colocar peso na perna, logo, esta não pode andar. Não que isso iniba Daniel de forçar gentilmente o mesmo gesto erótico que Octávio utilizou com Susana, provando a semelhança da obsessão de ambos.
Octávio não parou diante de Ramiro, da mãe, de Jorge, nem mesmo das relutâncias da própria cunhada.
Daniel não pára diante da mulher, das filhas, dos constrangimentos financeiros, nem mesmo da parcial invalidez da amante.
Ambos são prisioneiros de algo que é menos amor e mais capricho, obsessão, posse e orgulho.
Continuando. Valéria não pode andar, portanto, está confinada a uma cadeira de rodas. Como vimos, «sem Richie, talvez o idílio de Valéria tivesse futuro». Com Richie, no entanto, existe uma bola (o Acaso). Essa bola, atirada com displicência, descobre o caminho do buraco no soalho (o Erro) e lá desaparece. Richie persegue-a e desaparece com ela. Daniel enfrentará esse problema com superficial paciência e Valéria com crescente histerismo.
Podemos colocar uns chocolates.
Vai atrair ratos.
Podemos colocar veneno para os ratos.
Richie pode comer o veneno.
Podemos colocar um gato que persiga os ratos.
O gato pode fazer mal ao Richie.
Então que raio queres que faça?
Bem, caro Daniel, podias ter começado por comprar um apartamento sem buracos no chão. Ou, sei lá, uma ideia tola, podias não ter comprado apartamento algum, muito menos abandonado a tua família em nome de um capricho do ego.
Mas quer-nos parecer que, aí chegado, esse buraco tem tudo para aumentar.
Da mesma forma que Ramiro regressou para atormentar Octávio, a ex-mulher de Daniel regressará para atormentar Valéria. É agora a primeira que dispara telefonemas anónimos à segunda. E a espiral continua. A lucrativa campanha publicitária fica – literalmente – sem pernas para andar, the show must go on and all that jazz.
A Valéria resta uma busca neurótica por Richie, como quem busca a felicidade de súbito perdida.
Não desapareceu, está aqui connosco no apartamento, embora não o vejamos.
Daniel fala de Richie ou do amor entre ambos?
A partir de certa altura, é difícil distinguir. As tábuas do soalho voam na mesma proporção dos insultos e do desespero. Valéria caminha sobre a perna, logo as dores aumentam, logo o desespero aumenta, logo…
Essa dor (nas suas múltiplas vertentes) tolda o raciocínio. De repente «há milhares de ratos debaixo do chão» e o amante parece agora ser amante da ex-mulher.
Não é, mas talvez tenha estado mais longe de ser. Sobretudo, porque começou a dormir no sofá do estaleiro em que se transformou a nova casa.
(Não descurar a imagem de destruição que envenena os antigos ninhos de amor adúltero, quer no caso de Octávio – que destrói o quarto onde se reunia com Susana – quer no de Daniel, que dorme entre as tábuas soltas).
E tal como o primeiro, quando Daniel interioriza a realidade que o envolve, é tarde demais. Valéria não estava a fazer birra quando não abria a porta do quarto. Estava colapsada. Encaminhada para as Urgências, trata-se de «a perna ou a vida». Mas que vida depois de perder a perna?
Ah, é verdade. Consumada a tragédia, Richie reaparece ainda a tempo de ver o vazio do outdoor fronteiro.
Estão certos. Há alguém nesta história que sabe o que é ser um fantasma.
«El Chivo» e Marú
«El Chivo» tem pairado sob e em redor do enredo. Podemos não saber o seu verdadeiro nome, mas intuir alguma coisa sobre a sua alcunha. «Chivo» remete para bode (do qual vemos algo na sua longa barba e cabelos brancos) e de imediato para bode expiatório (enquanto aparente vítima do mundo exterior, mas igualmente – logo o descobrimos – por estar há muitos anos a expiar pecados antigos). Num detalhe quase imperceptível, Octávio classifica de «chivo», ou seja «cool», porreiro, que Cofi tenha morto o primeiro cão de Jarocho. Não sabemos se o indigente é, faz ou fará algo «cool», mas sabemos que este e Cofi irão descobrir-se na altura certa.
«Chivo» espreitou diversas vezes entre os outros quadros. Revelou que é um assassino a soldo (com alvos politicamente seleccionados), que vive nos recessos da pobreza, escoltado pela fiel matilha de cães – que defende com bravura dos delírios de Jarocho – e que em tempos teve uma família, que abandonou (ouviste Daniel?).
Dessa família ouve falar apenas pelos jornais e através da ocasional vigilância. Dessa família desaparece agora um membro essencial: a sua ex-mulher. Nessa família permanece o seu grande amor: a filha Marú.
O padrão canino resiste. Se não fosse a presença da matilha de Chivo à porta do evento clandestino, Jarocho nunca teria atiçado o seu cão aos outros. Logo, o sem-abrigo não os defenderia, obrigando o criminoso a perseguir Cofi. Logo, este não teria morto o cão de Jarocho, transformando-se num candidato às lutas e acabando por ser baleado. A encerrar o ciclo, é Chivo que – presente na altura do desastre – salva Cofi da morte certa enquanto os paramédicos se preocupam com as vidas humanas.
Cofi, nas mãos de Chivo, ressuscitará para nova vida e a seu tempo devolverá o favor.
Por agora, a existência do indigente é a de sempre. Ocasionalmente, Leonardo, um polícia corrupto, faz de intermediário entre gente que não tem coragem para matar (clientes) e aquele que mata mediante um bom preço e sobretudo um bom motivo político.
Expliquemos.
«El Chivo» foi em tempos alguém muito parecido com Daniel. Um respeitável membro da classe média alta. Professor num colégio privado, achou que o seu lugar era do outro lado da barricada, enquanto justiceiro social.
Digamos que se julgou o «Che» Guevara dos pequeninos – notar a ironia de Gael Garcia Bernal (Octávio) encarnar no futuro essa personagem em «Diários de Motocicleta».
Perante isso, abandonou a sua vida burguesa, não em nome de um amor passional mas de uma utopia social. Abdicou, pelo contrário, dos amores pessoais (mulher e filha) a favor dessa quimera. Amor Cão como qualquer outro, o resultado foi amargo. Muitos anos e mortes depois, foi apanhado por Leonardo num cenário a la Al Capone (preso por um detalhe fruto do acaso – como uma bola que se escapa para um buraco).
Cumprida a pena, o corrupto polícia passou a ser o angariador das vítimas do antigo prisioneiro, num contexto recheado de zonas cinzentas.
Entretanto, Cofi sobrevive, primeiro impulso para que «Chivo» permita a entrada de algum ar fresco na sua rotina bafienta. Assiste de longe ao funeral da mulher e mesmo perante o amargo aviso da cunhada, insiste na ideia de se reaproximar (pouco a pouco) da filha.
Depois, há Luís e Gustavo. Dois meios-irmãos em conflito. Familiar?
O segundo, com a ajuda de Leonardo, contrata «Chivo» para matar o primeiro. Os motivos nunca ficam claros, embora se insinue que estão mais relacionados com um golpe financeiro que Gustavo planeia executar e menos com as infidelidades de Luís – sintam-se livres para traçar diversos vasos comunicantes com Octávio, Ramiro ou Daniel, no que diz respeito a adultério.
Quem é a sombra de quem? Cofi é a sombra do assassino a soldo ou vice-versa? Afinal, ambos mataram os seus semelhantes «por dinheiro».
Certa manhã, «Chivo» vigia Luís quando é abordado por Leonardo.
Então? O serviço?
Está mais difícil que o habitual. Dá-me um dia ou dois.
Muito bem. Vou ali ao banco.
Se fizermos a leitura apressada de Leonardo, podemos pensar que a «dificuldade» de «Chivo» é prática, mas existe a forte possibilidade de esta ser moral. Pela primeira vez em muitos anos – e iniciado o processo de reaproximação à filha – o indigente hesita em voltar a derramar sangue.
Onde é que ia Leonardo? Ah, exacto, ao banco.
Talvez aquele banco-quimera sonhado por Ramiro.
Conclusão:
– Susana tem fraco poder persuasor. Não demoveu Octávio de tentar «uma última grande luta», muito menos Ramiro de dar «um último grande golpe». Ambos falham;
– Todos são mais fracos que as respectivas tentações/obsessões/paixões/prisões.
– Ao contrário de Cofi, Ramiro não sobrevive às balas.
E terá Octávio sobrevivido? Bem, não o mesmo Octávio. Pelo menos por fora. Dependente de muletas à conta de lesões numa perna (olá Valéria), de cabeça rapada e marcada por cicatrizes, poder-se-ia pensar num «novo» Octávio, que imitasse o «novo» Cofi. Pura ilusão.
No funeral do irmão, este regressa à obsessão de sempre.
Foge comigo.
O bebé vai chamar-se Ramiro.
Pouco importa. Estarei no terminal rodoviário à tua espera. Percebes, por fim?
Sem dúvida, Octávio, percebemos. Podemos é não gostar do que percebemos. E temos um palpite que ficarás sozinho na tua prisão existencial. Ao contrário de Richie, nunca sairás do buraco onde caíste, perseguindo uma doença chamada Susana.
Por outro lado, se «Chivo» hesita em matar o seu alvo, Cofi não se faz rogado. Afinal, quem desfaz os soldados caninos de Jarocho não precisa de gastar muita energia com a pacífica matilha do novo dono.
Quando este chega a casa, depara-se com o massacre.
O desespero inicial fá-lo ponderar a execução do assassino, até perceber num segundo de clarividência: «Quem é a sombra de quem?».
Cofi, à sua maneira, está a pagar a dívida que tem para com «Chivo».
«Somos dois fantasmas em busca de redenção. Não derramemos mais sangue».
A partir daqui, o indigente abraça um período de reflexão profunda.
«Se Deus quer que eu veja desfocado, pois verei desfocado», tinha ele dito com sarcasmo a Leonardo. E contudo, naquela noite, volta a procurar os óculos remendados.
Aqui, diversos paralelismos (ainda que espelhos em oposição, alguns deles) com as restantes personagens:
– Lembram-se da figura do Papa na casa de Octávio?
– Lembram-se da cruz gigante na casa de Daniel?
«El Chivo» tem uma imagem religiosa por cima da cama. Com uma diferença. A parede que a sustenta está rachada.
Mensagem?
«Somos o nosso próprio Deus/Profeta/Professor. A redenção é algo pessoal».
Por falar em Daniel, não esquecer outro vaso comunicante. Este abandonou (temporariamente ou não, nunca saberemos) a sua família – mulher e duas filhas. «Chivo» abandonou (permanentemente ou não, nunca saberemos) a sua família – mulher e filha.
Associado a isto, Valéria recusa-se a comunicar ao pai (em Espanha) o acidente, insinuando um conflito entre ambos. E se nos perguntássemos sobre a reacção de Marú às tentativas de reaproximação do seu desaparecido (e considerado falecido) pai?
Embora de outro ângulo, a «obsessão» do indigente com a filha não difere em absoluto das outras obsessões já referidas. Poderá esta encontrar o caminho que as outras não descobriram?
«Chivo» está disso convencido. Motivado pela lição oferecida por Cofi, opta por não assassinar Luís, levando-o em vez disso para o seu covil.
Se como afirma o ex-guerrilheiro, «todos os cães se parecem com os seus donos», então o processo regenerativo já começou. O diálogo entre ambos merece destaque:
Queres beber alguma coisa? Tenho rum, água ou leite.
Que vais fazer comigo?
Isso quer dizer o quê? Rum, água ou leite?
A pergunta quer dizer o que quer dizer.
Estou a oferecer-te algo para beber, palerma. Se fosses um bocadinho perspicaz, uma coisinha que fosse, já terias percebido que de momento, pelo menos, não te vou matar. Entendes? Então: rum, água ou leite?
Água.
(…)
Saúde.
Como faço para beber? (Está amarrado).
Posso fazer de empregado, sacana, não de enfermeiro.
Quem te pagou para me matares?
Não adivinhas?
Não.
E se te dissesse que é a tipa que «comes» quase todos os dias?
Marta? Não pode ser.
Não? Pois, tens razão, ela não. Foi a tua esposa.
O quê? Ela sabe da existência da Marta?
Não sei. Sabe?
(…)
Não, homem, também não foi ela.
Foi o marido da Marta?
Ah, a tipa é casada? Que maravilha. Como vês, amigo, há uma mão-cheia de pessoas que te querem morto.
(…)
Enfim, acreditas que não sei como se chama o meu cão? (Aponta para ele). Encontrei-o na rua. Que sugeres?
Vinhaças.
Muito original, palhacito. Muito original. Olha, que tal Gustavo?
Gustavo?
Conheces algum Gustavo?
O meu irmão.
Gustavo Garfias?
Sim.
Ai, ai, Abel (referindo-se à lenda de Abel e Caim). Que fizeste tu para merecer um irmão assim? A mim disse-me que era teu sócio.
É meu irmão e meu sócio. Pagou-te?
Sim, senhor.
Porquê?
Não sei, diz-me tu.
E quanto te pagou?
Cinco mil pesos (quantia irrisória, na verdade foram 100 mil).
Cinco? A porcaria de cinco mil pesos?
Bom, acabou por acrescentar uns bilhetes para os Rolling Stones.
Que cobarde miserável, não lhe fiz nada.
Ele diz que o estás a enganar.
Mentira! É mentira!
Acalma-te rapaz, estou a contar-te o que ele disse. Vá, não grites, senão vou ter que te calar com um par de balas. Então, que nome lhe damos? (Aponta o cão outra vez).
Estou-me a borrifar para o teu cão.
Se fosse a ti não falava mal do pobre bicho. Ficas a saber que se ainda não te matei é graças a ele.
«Chivo» telefona a Gustavo. Luís não apareceu para trabalhar, logo o serviço está feito. Favor deslocar-se ao meu humilde domicílio para a segunda parcela do pagamento (mais 50 mil).
E depois?
Depois os «cães» que se entendam.
Quem surge no dia seguinte, pode ainda não ser alguém, mas seguramente já não é «Chivo». Ao contrário de Octávio e Valéria – cuja aparência física se degradou até ao ponto de atirá-los para a sombra – o indigente começa a sair dessa sombra através da recuperação física.
Se não se entenderem através do diálogo, têm aqui uma coisa que pode resolver as vossas diferenças. – Atira ele para o par de prisioneiros, agora sem mordaças mas ainda amarrados. O antigo revólver fica no centro da sala, a aguardar o vencedor.
Tal como Octávio, «Chivo» acumulou milhares em notas.
Tal como Daniel, investe esse dinheiro na futura relação com o seu amor (neste caso paternal).
Porém, ao contrário dos outros, «Chivo» tem uma dupla vantagem:
– Não perde o dinheiro sem honra nem glória;
– Entende que antes de qualquer aproximação ao seu amor, há que fazer uma longa e penosa travessia do deserto. Há que «merecer» esse amor.
Como se chama o teu cão?
Negro.
Dessa escuridão, talvez nasça a luz.
«Porque também somos o que perdemos».