Prefácio
Penso ter sido aqui que abordei pela primeira vez a questão.
De como certos filmes são reflexos oportunos (e quase perfeitos) de situações pessoais.
Quando História de um Fotógrafo me saiu ao caminho, corria o ano de 2008, estava já bastante consciente do que não queria, embora ainda em busca de um trilho que me permitisse escapar dessa prisão.
Estava também entretido com um breve caso amoroso, por ironia, com uma fotógrafa.
A sedução terá sido reforçada quando se anuncia que a película é vagamente inspirada num conto de Júlio Cortázar (As Babas do Diabo), um dos meus escritores favoritos.
As deambulações do protagonista eram as minhas. Parques desertos assombrados pela música do vento nas copas, desencanto com uma cidade em tempos efervescente (tenho de me ir embora, isto já não me diz nada), outras melancolias inconfessáveis.
E claro, o final deveras elucidativo.
O filme é de Michelangelo Antonioni. Em português, a técnica fotográfica de ampliação de imagem conhecida como Blow Up foi traduzida para História de um Fotógrafo. A obra data de 1966 e coleccionou alguns prémios da crítica, entre os quais o de Melhor Filme em Cannes.
Apesar de se fazer respeitar logo no primeiro visionamento, é o tempo que o faz amadurecer, ganhar raízes, abrir portas e fortalecer convicções. Fica em nós, como os tentáculos de uma árvore secular.
É, sobretudo, uma história sobre inúmeras histórias hipotéticas.
Nota: Ao contrário do que tem sido norma, esta crónica é bastante curta, não por necessidade, mas porque me parece que essa contenção é a melhor forma de homenagear o espírito dominante.
O Filme
Na linha da frente temos um fotógrafo de moda consagrado, (David Hemmings), que vê a sua rotina animada por uma fortuita sessão fotográfica num parque periférico. O que ali tem lugar ameaça modificar-lhe o quotidiano, ou quem sabe mais do que isso.
Estabelecida esta ténue linha narrativa, tão frágil como um fio de seda ao vento, fica-nos disponível o espaço suficiente para quase tudo. Estamos na mente de um fotógrafo que pode ou não ser casado, pode ou não ter filhos, pode ou não ter tido um relacionamento com a vizinha do lado (que até pode ser a sua mulher ou ex-mulher).
Circula por uma Londres cinzenta onde decorrem ou não manifestações cívicas.
Pode ou não ter sido abordado por duas libertinas aspirantes a modelo e pode ou não ter tido algo com elas.
Pode ou não ter-se deslocado a uma loja de antiguidades e falado com o dono, que talvez não fosse o dono mas o avô, ou empregado ou outra coisa, da jovem dona, que pode não ser a dona mas a neta, empregada ou qualquer outra coisa do ancião. Ela confessa o desejo de viajar até ao Nepal, ou quem sabe Marrocos.
Deambulando por um parque próximo, onde reina o silêncio do vento nas árvores centenárias, pode ter visto um casal que decidiu fotografar, sendo depois abordado pela mulher (Vanessa Redgrave), que lhe exige as fotografias de volta. Enfim, quem diz a mulher, diz a namorada ou a amante do anónimo indivíduo, que logo a seguir desaparece, tal como ela.
De volta à cidade, encontrando-se com o agente, o fotógrafo pode ou não ter visto alguém a verificar-lhe a matrícula e tentado persegui-lo, embora com pouca convicção.
Chegado a casa, tem ou será que não tem a mulher do parque à espera dele, recusando-se esta a explicar-lhe como descobriu a morada (se for a amante de uma pessoa influente e se a matrícula do carro do fotógrafo foi de facto identificada, pode admitir-se que uma coisa levou à outra).
Nesse encontro, terão falado de jazz e ele pode ter recebido um telefonema da mulher, ou de outra pessoa, mas não é certo.
Revelando as fotos, através de sucessivas técnicas de ampliação, talvez se tenha descoberto alguma espécie de conspiração ou assassinato, mas talvez tudo seja como o amigo/marido/amante da vizinha (amiga, mulher, namorada, ou ex qualquer coisa) lhe confessou, descrevendo um dos seus quadros impressionistas: «No início nada me faz sentido, é apenas um borrão (como o é uma fotografia pixelizada ao extremo), mas depois encontro algo a que me agarrar, como é o caso desta perna».
Também o fotógrafo pode ter encontrado naquela sombra algo a que se agarrar, um corpo, um braço armado, ou nada.
Em crescendo, acaba inadvertidamente por observar a vizinha (Sarah Miles) na cama com o companheiro – ou não – e esta logo a seguir segue-o até casa, ou assim ele o desejaria.
Falam sem nada dizer e ele parte para a cidade, pois as suas revelações e ampliações foram roubadas, assumindo-se que alguma vez lá estiveram.
A meio caminho, encontra a mulher do parque – parece – e segue-a para um concerto dos Yardbirds, em que talvez ninguém se mexa.
Digamos que estão estáticos quando deveriam mexer-se e entram em histeria quando nada o faz prever, o que é uma maneira de ver as coisas.
Segue para uma festa onde se encontra o agente, pronto a convencê-lo de que viu um corpo no parque, ainda que estranhamente não o tenha fotografado de imediato ou chamado a polícia.
Sem sucesso, adormece, acordando sozinho numa casa vazia, onde talvez tenha ocorrido qualquer coisa.
Desalentado, volta ao parque, sem encontrar no local designado o corpo que talvez tenha lá estado, nunca fiando. Ou será que o fotógrafo se observa a si mesmo a observar o local vazio? Ou ainda, se imagina a ser observado por si próprio nesse local?
Um grupo de mimos a jogar um ténis imaginário, mas seguido atentamente pelo fotógrafo. A jogada redunda numa bola longa, que sai do court e este corre para a devolver. Ao fazê-lo, o nada ganha som e o personagem interroga-se sobre dimensões perceptivas.
Blow Up pode não ser, em concreto, um filme sobre muita coisa, mas é uma obra-prima sobre o que não é/poderia ter sido/talvez seja.