Controlo


 

Prefácio

 

Ainda que Controlo seja o primeiro filme acerca de uma banda a ser mencionado neste espaço, não foi a primeira abordagem cinéfila ao mundo da música que se atravessou no meu caminho.

Foi, contudo, a única suficientemente marcante, talvez porque Anton Corbijn, um realizador estreante (mais conhecido no mundo da Fotografia), escapou do caminho usual neste tipo de projectos. O enredo não é apenas sobre a ascensão artística do grupo, nem apenas sobre a respectiva queda. Não trata em demasia do mundo de bastidores nem versa sobre os banais vícios e rotinas que tendem a desaguar em mortes prematuras.

Ficamos com a noção clara que Ian Curtis somente por acaso se transformou no líder de uma banda chamada Joy Division, pelo que sem dificuldade poderíamos acompanhar a mera história do cidadão Ian Curtis – e que tal bastaria para tornar o enredo interessante. Porquê?

Porque se trata de uma narrativa acerca da mente criativa, melancólica e atormentada, inadvertidamente aprisionada por diversas camisas-de-forças – familiar, social, artística – das quais não se consegue libertar, uma vez que todas são manobradas pelo maior dos fardos: o da doença.

A música – embora excelente – é apenas um adereço, um meio, uma consequência do turbilhão emocional que assombrou a vida do jovem Ian.

Quem primeiro me falou do filme destacou a «inacreditável» semelhança física entre o defunto vocalista e o actor que lhe dá vida na tela (Sam Riley). Estava certo.

Anos mais tarde, sugeri este filme a outra pessoa, por considerá-lo um espelho do seu estado mental. Estava certo.

Ainda hoje, considero ser esta a melhor abordagem cinematográfica acerca de uma banda. Estarei certo?


 

O Filme

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A primeira imagem do filme resume-o. Sem localização espácio-temporal definida, um solitário Ian Curtis reflete sobre o absurdo da Existência e do conceito de Tempo.

Não é decerto por acaso que o filme se chama Controlo, já que é precisamente a sua ausência – por parte de Curtis e de quem o rodeia – que redunda na previsível tragédia. Temos um enredo determinista, onde não está em causa evitar o destino mas assistirmos aos factos que o originaram.

Estaria o gene do fatalismo latente em algum ponto obscuro da mente de Ian, ou seria este apenas um jovem imberbe e reservado, melancólico e sonhador – um Romântico – como milhões de outros antes e depois dele? Talvez as duas opções sejam compatíveis.

Ian Curtis frequenta o Ensino Secundário num subúrbio de Manchester, Inglaterra – Macclesfield – no início da década de 70 do séc. XX. Cedo começa a viver num mundo próprio – um espaço etéreo, esparsamente povoado, sustentado pela Música (David Bowie, Iggy Pop, Lou Reed) e Poesia (Wordsworth).

Ainda que o quotidiano requisite com frequência a sua atenção – contexto familiar e escolar, vizinhos na rua – esta raramente é dispensada. Pode dizer-se que Ian começa a planear a fuga ao mundo conhecido (Macclesfield) assim que dele ganha consciência.

E talvez nem fosse preciso que esse território fizesse parte da sombria Inglaterra dos anos 70 – um país cinzento, conservador e recheado de convulsões sociais que redundaram no movimento punk e nos governos de Margaret Thatcher. Mas fazia.

images (1)Como tal, Curtis refugia-se com frequência no quarto, onde organiza pastas e ficheiros com sonhos e ensaios sobre Literatura (contos, romances) e Música (artigos e fotos de concertos ou artistas da época). Sempre que pode, compra um álbum e ouve-o com deleite, fumando sem parar e procurando recriar ao espelho as poses dos ídolos – por vezes maquilha-se e veste-se como quem assiste ou actua num concerto.

Certo dia, um amigo da escola traz companhia: Deborah.

Queres fumar?

Não fumo.

Se queres pertencer ao meu grupo tens de fumar.

Não quero pertencer ao teu grupo.

Como já vimos o enredo é determinista, logo, aquilo que Deborah quer ou simula não querer é supérfluo. O processo é irreversível.

Quem é o escritor?

Quem te parece?

Porém, ainda que o mundo de Ian tenha ficado um pouco menos vazio e um pouco mais doce, tal não significa que este queira permanecer nele por muito tempo – esta evidência será progressivamente mais dolorosa.

De momento, o oficial interesse amoroso de Deborah ainda é Nick Jackson – o amigo de Ian (que na realidade se chamava Tony Nuttall). O mesmo que acompanha Curtis numa benemérita actividade pós-escolar: visitar diversas idosas reformadas e carentes de companhia, cujos armários de casa de banho estão sempre recheados de medicamentos.

Há muitas formas de escapar à realidade, umas mais legais, baratas e seguras do que outras.

Uma atmosfera de destino fatal – acentuada pelas imagens a preto e branco – está contudo sempre latente, quando não evidente: alguns dos remédios que Ian experimenta para fugir ao aborrecimento – lendo de forma despreocupada e ingénua os fortíssimos efeitos secundários que arriscam – serão os mesmos que em breve se verá obrigado a tomar diariamente, numa falhada tentativa de combater a sua doença. E esses efeitos secundários que agora procura (como forma de evasão) serão os mesmos que fará tudo para evitar e que lhe amputarão a rotina primeiro e a vida por fim.

Por agora, esse escapismo temporário empresta ocasionais pinceladas de cor ao seu espírito, que se entretém a citar o poeta romântico Wordsworth para deleite encantado de Deborah. Nick também está presente. Ian afaga a imagem de uma borboleta, colada na janela do quarto da amiga, símbolo de tanta coisa inconfessável.

A escolha começa a ser óbvia.

Ian é um cavaleiro andante, maior que a realidade envolvente, um visionário que se apoia nos ombros de David Bowie, Kraftwerk, Sex Pistols, Jim Morrison, Iggy Pop, Roxy Music, Lou Reed, William Burroughs, Fiodor Dostoievski, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Franz Kafka, Hermann Hesse, T. S. Eliot e J. G. Ballard.

Nick é…apenas Nick.

images (2)Por esta altura, Deborah já quer fazer «parte do grupo», certamente candidatar-se ao papel da borboleta que esvoaça pelos campos em redor de Macclesfield, à espera de pousar na palma da mão de Curtis.

Os vapores da paixão podem fazer-nos dizer muitas tolices, em qualquer idade, mais ainda quando temos apenas dezasseis anos.

Devíamos casar.

Tens a certeza?

És minha. Irremediavelmente minha. E sabes disso.

É provável que Deborah tenha acolhido este advérbio com a mais doce e ingénua das felicidades, mas basta pensar no futuro não muito distante para que o coração gele.

control_bigA imagem que nos é oferecida do rosto de Curtis à saída da igreja começa desde logo a esclarecer-nos. A euforia retira-se, apressada, empurrada pela hesitação, dúvida, pitada de arrependimento. Mas agora é tarde. Irremediavelmente tarde.

Ian e Deborah casaram-se em 1975. Com 19 e 18 anos, respectivamente.

Apesar de mais nova, ela é mais prática e centrada. Vive no mundo terreno. Enquanto Ian se fecha no «quarto criativo», uma toca onde ignora o mundo, em teoria para se entregar às diferentes artes que o alimentam, Deborah passa os dias a cuidar dos afazeres domésticos – vemos um plano inicial do secador de roupa – e a tentar manter viva a ligação entre os dois.

Fiz-te um chá, queres vir?

(Silêncio).


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Em meados de 1976, deslocam-se a um concerto dos Sex Pistols. Nele estão também Bernard Sumner, Peter Hook e Terry Mason, um grupo de amigos interessado em música e em formar uma banda. Conhecem Ian de forma superficial.

A banda é uma porcaria.

Não é uma porcaria…

Ok, mas também não é boa, pois não?

Seria se tivéssemos um vocalista.

(…)

Aquele tipo, o Ian…tem ar porreiro, não acham?

Tem.

À saída, Curtis está absolutamente siderado com o concerto. Julga ter descoberto uma porta.

Ainda estão à procura de um vocalista?

Como já vimos, ao longo da década de 70 foram muitos os que tentaram escapar das prisões existenciais e sociais impostas pelos tempos. Curtis começa então a tecer os primeiros fios dessa dupla vida: uma mundana, outra artística.

Nascem os Warsaw – na linha da cultura punk ainda vigente – que começam a dar concertos em bares locais, onde se cruzam com artistas como John Cooper Clark.


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Durante o dia, contudo, Ian vê-se forçado a cumprir as normais obrigações de um (jovem) chefe de família, experimentando um punhado de empregos temporários até assentar num cargo estatal, como funcionário de um centro de emprego. É agora responsável por servir de elo de ligação entre empregadores e candidatos, normalmente pessoas de classe baixa e com diferentes problemas de saúde.

Em pouco tempo, a banda opta por outro baterista – Stephen Morris – e Terry Mason transita para as funções de agente.

Ultimam o primeiro EP – An Ideal for Living – ao mesmo tempo que abandonam o nome Warsaw pelo mais irónico Joy Division.

Que raio quer isso dizer?

Era o nome de uma ala reservada à escravatura sexual, existente num campo de concentração nazi.

Ian convence Deborah a empenhar grande parte das poupanças no financiamento do EP – aluguer do estúdio e produção – alegando que «a banda mais tarde paga-nos».

Sentindo o inconfessado desconforto da mulher, recorre à sua velha estratégia de compensação emocional.

Devíamos ter um filho.

Mais uma vez Deborah abraça a ideia com uma felicidade ingénua, mais uma vez Ian ter-se-á arrependido da sugestão pouco depois. Mais uma vez era tarde demais. Irremediavelmente tarde.

Longe iam os tempos em que Curtis experimentava perigosas combinações de medicamentos, mas por vezes, quando Maomé não vai à montanha…

Uma das entrevistadas no centro de emprego, Corrine Lewis, padece de uma forma grave de epilepsia. Está sempre equipada com uma protecção para a cabeça, caso desfaleça durante uma crise. Quando Ian lhe transmite a boa nova – um emprego – as emoções tomam conta dela e segue-se um ataque. Tomba, entre espasmos.

A sombra espreita. Curtis ainda não reparou nela.

Os colegas de banda tinham razão. Com um vocalista, a música é outra.

Quem ainda parece não ter percebido isso – pelo menos não da forma que o grupo deseja – é o famoso Tony Wilson, um guru do meio artístico e musical responsável por inúmeras carreiras de sucesso no seu tempo – editor discográfico da Factory, apresentador de rádio e televisão e gerente de um clube nocturno.

Notando a sua presença no bar onde se encontram, um Curtis alcoolizado escreve uma breve nota num papel e entrega-a de forma arrogante a Wilson – depois deste ter destacado a banda rival Buzzcocks no programa televisivo, considerando os Joy Division uma nota de rodapé.

Diz a lenda que a nota afirmava simplesmente:

Joy Division, meu sacana.

O outro parece apreciar a ousadia.

Entretanto, o grupo entra numa «batalha de bandas» e impressiona muita gente, onde se incluem o próprio Wilson e um agente chamado Rob Gretton.

Este, servindo-se de um discurso que mescla arrogância, agressividade e humor, convence de imediato o grupo da sua valia, remetendo Terry Mason para uma posição secundária na gerência do grupo.

Gretton revela-se em dois tempos a cereja que faltava naquele bolo, abrindo desde logo as portas do programa de Tony Wilson.


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Em meados de 1978, tocam «Transmission» na televisão nacional e obrigam Wilson a cumprir a espalhafatosa promessa de assinar um contrato com a banda utilizando o seu próprio sangue.

Sem surpresa, Curtis revela-se incapaz de gerir equilibradamente a mencionada «vida dupla». À medida que as obrigações e tentações da banda crescem, menor é a sua disponibilidade para Deborah. Durante o escasso tempo que permanece em casa, Ian encerra-se no «quarto criativo», nem sempre para criar.

O passo seguinte na exponenciada carreira musical é um concerto em Londres, poucos dias depois do Natal. Os nervos são evidentes, a viagem é cansativa e segundo consta, está muito pouca gente a assistir na plateia. Mesmo muito pouca.

Logo, o regresso está coberto de frustração, birras, discussões e desconforto. A viagem de carro é feita durante a noite, uma madrugada gélida que não encontra alívio no avariado sistema de aquecimento do veículo. Curtis treme, barafusta e por fim discute seriamente com os colegas de banda. No pico da agitação, é dominado por fortes convulsões e perde a consciência.

Os colegas imobilizam o automóvel, puxam-no para o exterior e procuram colocá-lo numa posição confortável, afugentando o pânico. Convocam socorro.

Eis o primeiro ataque.

O diagnóstico parece rivalizar com o próprio Ian no potencial para a ironia negra. Curtis padece agora dos mesmos sintomas que procurava obter em adolescente, quando roubava medicamentos às idosas. Padece agora da mesma doença que afecta Corrine Lewis. Essa doença ainda tão desconhecida e envolta em preconceito, nos idos da década de 70: Epilepsia.

Pensava que essas coisas eram próprias dos atrasados mentais.

Olha que bem que estiveste agora. Que linda coisa para se dizer.

Os médicos lidam com o caso da mesma forma que os antigos feiticeiros lidavam com uma tempestade – improvisam e esperam pelo melhor. A cada pergunta do paciente, consultam atrapalhadamente glossários e dicionários, como se perante uma ciência desconhecida. Atiram medicamentos aleatórios para cima do problema, qual baldes de água para o coração de um incêndio.

A lista de efeitos secundários revela-se ela própria um manancial de novas doenças.

Por esta altura, Ian Curtis tem meros 22 anos.

O depressivo ramalhete fica composto com uma espécie de capricho sádico: através de um telefonema de rotina, o protagonista é informado que Corrine Lewis, agora parceira de doença, sofreu uma crise fatal.

O quê? Não sabia que se podia…

Sim, meu caro Ian. A epilepsia pode ser fatal.


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Tudo isto escurece a (pretensa) alegria em redor da gravidez de Deborah. O «quarto criativo» transforma-se mais e mais numa gruta, numa toca, num buraco profundo onde Curtis se esforça por esquecer a realidade. De nada servem os apelos acabrunhados da mulher, quase sempre abandonada do outro lado daquela barreira física e emocional.

«She’s Lost Control» é a consequência criativa dessa fase. Há quem diga que é dedicada a Corrine, outros sugerem que se refere a Deborah, mas penso que não é despiciendo aceitar que pode ser apenas (e sobretudo) sobre a vida de Curtis: she has mas também is lost control – a vida é controlo perdido.

A vida que ele apenas finge controlar – como quando não inclui a mulher grávida na lista de convidados para uma actuação, apenas para vê-la aparecer no local de qualquer modo, acabando por surpreendê-lo nos bastidores rodeado de outras mulheres.

Olá. Eu sou a mulher do Ian.

O que fazes aqui?

O que queres dizer?

Achas que é saudável no teu estado?

Em breve, esse «estado» modifica-se. A filha Natalie vem a caminho.

Poucos segundos depois de lhe ouvir o primeiro choro, Curtis foge para o exterior, de modo a fumar um cigarro desesperado. O esforço para controlar e esconder o pânico é sobre-humano.

A partir daqui, nada nem ninguém terá a capacidade de reverter a sua queda no precipício.

Nem mesmo Annik Honoré.

A vida dupla começa a tornar-se deveras insustentável. A rotina de um recém-nascido, o trabalho diurno e os concertos nocturnos – sem esquecer os sintomas associados à doença e os efeitos secundários brutais dos medicamentos – quebram a boa vontade do protagonista.

Por fim, incapaz de manter o emprego (à conta do cansaço extremo que o faz adormecer em funções) e aprisionado por uma agenda de concertos crescente, obriga passivamente Deborah a arranjar um trabalho a tempo parcial, que esta concilia com a educação solitária da filha e as lides domésticas.

Mais do que se entrincheirar numa divisão da casa, Ian escapa rumo ao vórtice chamado Joy Division.

Certa noite, após outro telefonema tenso e constrangedor com a mulher, prende o olhar numa jornalista belga (mais tarde se perceberá que essa actividade é apenas um passatempo, que esta alimenta nos intervalos da sua carreira na embaixada), de seu nome Annik Honoré.

Não restam grandes dúvidas. Nem acerca do amadorismo daquela entrevista, nem da imediata atracção entre ela e Curtis.

Enquanto os restantes dormitam pelos cantos, o par mantém um diálogo sussurrado, que de entrevista já não tem nada.

Quis fugir de Macclesfield toda a vida.

E a tua mulher?

Essa adora Macclesfield.


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O olhar entre ambos esclarece tudo o que as palavras não dizem, com o braço de Ian (e o enorme anel na mão esquerda) explicitamente colocado entre eles.

Nova visão do secador de roupa, recheado de fraldas de pano. A confissão tímida de que o tratamento não resulta (ou não evita frequentes crises, pelo menos). Breves minutos de sexo que Ian sonha ser com Annik, mas descobre ser com Deborah, fazendo-o mergulhar num choro compulsivo que rejeita a mais leve tentativa de conforto por parte da mulher, desconcertada.

Em Janeiro de 1980, a banda inicia uma digressão pela Europa Continental. Curtis recorre a um estratagema infantil para não se despedir da mulher. A meio caminho, dão boleia a Annik, que se transforma numa espécie de amante platónica (a versão oficial diz que nunca existiram relações sexuais entre ambos, sendo impossível confirmá-lo).

Confias nele?

Totalmente. É tão protector. Fica logo zangado se me aproximo de outro homem.

(…)

O teu marido já é bastante famoso, certo?

Para mim não. Sou eu que lhe lavo as cuecas.

Deborah talvez acredite neste diálogo que mantém durante uma festa em casa de uma amiga, talvez não.

Seja como for, logo se desengana, enquanto sobem a rua principal da Macclesfield que ela «adora» e que ele «detesta», com os campos onde certo dia se apaixonaram em pano de fundo.

Alguma vez pensaste em dormir com outros homens?

Não é coisa que me ocorra.

Porque não faria mal…quer dizer…eu não me importava.

Já não me amas?

Receio bem que não.

Eis a raiz de «Love Will Tear Us Apart».

Enquanto ensaiam a nova música, Rob Gretton chega com boas notícias. Depois da digressão europeia, é a vez dos EUA, em Maio.

Todos celebram. Todos? Não. Um pequeno Ian resiste hoje e sempre ao invasor chamado Felicidade.

Deborah, com uma tenacidade incrível, procurou em cada recanto a prova que não queria encontrar. Confirmada a traição (emocional pelo menos), confronta o marido com uma coragem notável. Quanto mais corajosa esta se revela, mais cobarde o obriga a ser.

Nunca ninguém te vai amar como eu. Não mereço isto.

Desculpa, Debbie.


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O pequeno Ian não sabe ser outra coisa. Não conhece outra muleta emocional que não aquela. A de dizer/fazer o que acha que os outros querem.

Devo-te tudo. Amo-te.

O que quer isso dizer?

Um pequeno Ian isolado da mulher, da filha, da amante pretensamente platónica, das alegrias da banda, do mundo, da vida. Um pequeno Ian fechado a escrever a letra de «Isolation».

Está bom, Ian. Está genial, mesmo.

Quem disse que o desespero não é uma imparável força criativa?

O problema das forças imparáveis é que…bom…são imparáveis. Curtis actua, Curtis canta, Curtis dança, mais e mais, até não se perceber se actua ou se apenas reage, se canta ou se apenas lamenta, se dança ou se apenas funciona. Se apenas resiste. Até deixar de resistir, até se render, colapsar, tombar mergulhado numa convulsão epiléptica em pleno palco.

O problema é que ninguém percebe. Ninguém de facto percebe, portanto ninguém descobre a solução. Sem solução, todos fingem que nada se passa.

O público aplaude como se o tombo de Curtis fosse um capricho artístico, os colegas de banda embrulham o medo e a confusão em piadas de circunstância.

Quem ganhou o combate esta noite? O Ian ou o Ian?

Foste ao tapete com um golpe de direita, pá.

Annik talvez pudesse entender, ou pelo menos consolá-lo temporariamente, não fora estar sempre a ser interrompida pelos telefonemas de Deborah.

Uma tempestade perfeita. O Furacão Curtis.


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Na paz das madrugadas, o casal prostra-se nos braços do silêncio.

És tão deprimente, Ian…

Eu sei. Mas gosto muito de estar aqui contigo.

Eu também. Só que não sei bem o que estamos a fazer. Não nos conhecemos, no fundo.

O que queres saber?

Não sei. Qual é o teu filme preferido, por exemplo?

Olha, sempre gostei muito de «Música no Coração».

(Risos).

O queres saber mais?

Qual é a tua cor preferida? A minha é violeta.

Azul (blue também remete para tristeza). O azul do Man. City.

O que é o azul do Man. City?

Bem, Man(chester) City é um clube de futebol. E vestem-se de azul.

(Risos).

Tenho medo de me estar a apaixonar por ti.

Eu sei.

Curtis volta a casa. Curtis olha para a filha. Curtis olha para a mulher. Curtis olha para o secador de roupa.

Que bom estares em casa. Vou fazer-te um chá.

Curtis bate com a porta. Natalie chora.

Curtis bebe. Curtis bebe muito. Curtis volta (de novo) a casa e entra no quarto, cambaleante.

Não te quero magoar, Debbie. Tomei os comprimidos.

Curtis colapsa. Curtis tentou matar-se. Curtis escreveu um bilhete de despedida.

Já não temos de discutir mais. Diz à Annik que gosto muito dela.

Teríamos de ser Deborah para saber o que esta sentiu ao ler tais palavras, mas podemos sempre especular. Podemos sempre especular acerca do que sentirá uma jovem esposa que casou com o amor da sua vida, que com ele teve uma filha, que por ele fez tudo o que podia e sabia. Que empenhou poupanças, arranjou trabalhos temporários, enfrentou uma doença desconhecida, aguentou as rédeas da casa durante as digressões, adormeceu no sofá com a filha ao colo à espera de um telefonema que quase nunca vinha.

Diz à Annik que gosto muito dela.

Porém, é inútil zangarmo-nos com Ian, porque este ainda é o «pequeno Ian». Podia ter namorado com Deborah um par de anos e seguido em frente, mas enganou-se e pediu-a em casamento. Podia ter pedido o divórcio mas enganou-se e propôs-lhe uma filha. Podia ter saído da banda em devido tempo mas enganou-se e decidiu aceitar a gravação de um segundo álbum, entre concertos e digressões. Podia ter feito tudo ao contrário e tudo certo, mas enganou-se e fez tudo errado. Pisou o terreno errado à hora errada e tombou num precipício cuja queda é impossível de reverter.

Não fazem ideia. Ninguém faz ideia. Quando estou lá em cima, no palco (da vida), ninguém percebe o esforço que faço. Não tenho controlo sobre nada.

Curtis pode ter sobrevivido à primeira tentativa de suicídio, mas nem tudo sobreviveu com ele. Por mais pequena que seja, uma parte de si mesmo entendeu que já não é uma questão de se. Apenas de quando.

Entre os amigos e colegas de banda, as graçolas deram lugar ao silêncio constrangido. Continuam sem ter a solução e a partir de agora perderam a única válvula de escape que lhes restava: o riso.

Estava bêbado.

Sopra Ian como quem se justifica a si mesmo. Mas isso não chega. Nada chega.

E o espectáculo? Pode parar?


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Atirados para mais um concerto nas periferias de Manchester, os Joy Division entregam a primeira parte a uma banda chamada Crispy Ambulance. Chegada a hora, Curtis não encontra reservas no fundo do tanque (emocional). Está incapaz de entrar em palco. Os colegas arranham os primeiros acordes perante uma plateia impaciente e polvilhada por alguns elementos com especial queda para a violência – por esta altura o grupo ainda atraía alguns elementos de extrema-direita, skinheads, à conta da irónica referência aos campos de concentração.

Rob, o eterno bombeiro de serviço, apela em desespero ao vocalista dos Crispy Ambulance para que este substitua Ian durante uns minutos, enquanto o mesmo ganha fôlego.

Leva o tempo que precisares. Quanto tempo precisas?

Então, esse espectáculo, pode ou não pode parar?

Curtis entra. A multidão delira. Curtis canta duas linhas. Sai. A multidão redobra o desapontamento.

O vocalista alternativo limita-se a exponenciar a raiva latente. Pelo que sim. O espectáculo pode parar, ou pelo menos reconverter-se. Começou por ser um concerto, agora é um motim. Pouco importa. Também vende jornais. Também funciona como golpe publicitário.

Um Curtis destroçado (tão ou mais destruído que o anfiteatro), confessa-se a Tony Wilson.

Todos me odeiam.

Não é verdade. Todos te adoram. És um bom pai.

Não sou nada. Sei perfeitamente que não sou.

Bom, tens a Annik.

Odeio-a.

E também a adoras.

Correcto, Tony. Foi sempre esse o verdadeiro problema de Ian. Estar preso às coisas que já não ama e impedido de usufruir da única coisa que ainda adora.

Deborah tinha lançado um ultimato. Se o marido abandonasse a amante, haveria espaço para o perdão. Se não o fizesse, restava o divórcio. A quem recorrer? A Rob Gretton, claro.

Não sei onde ele anda. Está aí contigo?

Não sei de nada, Deborah…pois não? Pois não?

Com quem estás a falar?

Curtis replica a atitude do concerto. Faz uma última tentativa para mascarar as evidências, mas esse é um peditório que começa a esgotar-se. Dá carta-branca a Rob.

Estou a falar com o Ian. Estamos aqui todos.

Todos? Ela está com ele?

Sim. Somos uma bela família feliz.

(…)

Ela quer o divórcio.

O que preferem? Uma mentira agradável ou uma verdade desagradável? Curtis começa a fazer escolhas.

Sem local para dormir, recorre à amizade de Bernard. Este tem demonstrado interesse superficial pela hipnoterapia e aproveita para explorar essa curiosidade com o beneplácito de Ian. Os resultados são incertos, mas fica sugerida a eterna dualidade do protagonista e como esta o aprisiona sem remissão.

Curtis entrega-se a uma grande reflexão existencial quando, a caminho de casa, prende o olhar nas linhas cruzadas dos postes de electricidade, fazendo delas alegoria para o absurdo das escolhas.

Decide passar algum tempo em casa dos pais, que permanecem compreensivos e hospitaleiros. Certa noite, ao ver o filme «Apocalipse Now», identifica-se com o desespero do protagonista.

Aquela pausa – a banda conta os dias para o início da digressão nos EUA – permite a Curtis colocar alguns pensamentos em ordem. Escreve a Annik e confessa o seu amor proibido, admitindo igualmente que não consegue controlar a doença, bem como o crescente receio de falecer à conta de um ataque. Telefona a Bernard, prometendo-lhe estar presente a horas na estação. Por fim, retira a aliança – uma cruz de cima dos ombros – e diz à mãe que vai ter uma derradeira conversa com Deborah.

Quando esta chega a casa, Ian sai da sombra, uma brilhante metáfora da existência entre ambos: ela na luz, ele na treva, sem nunca conseguir atravessar essa fronteira.

Começa por ser o «pequeno Ian», que por uma última vez quer acreditar em finais felizes.

Não me deixes, Debbie.

Tu vais deixá-la?

Tentei. Mas ela não se vai embora (do meu coração).

Então fizeste a tua escolha.

Com isto, Curtis atira a toalha, à semelhança do que já fizera nos restantes temas.

Então sai, vai-te embora. Volta amanhã, quando eu já não estiver cá.

Grita, em desespero. Ela obedece.

Estamos a 17 de Maio de 1980. Ninguém pode garantir o que de facto aconteceu naquela casa, durante a fatídica noite, apenas ensaiar uma imagem difusa a partir de peças soltas.

Ian Curtis terá bebido e fumado bastante (pelos vestígios encontrados).

Terá visto um filme na televisão – «Stroszek», uma tragicomédia alemã, de 1977.

Terá ouvido o álbum «The Idiot» de Iggy Pop.

Por fim, decerto mergulhado em grande angústia, escreveu uma última carta a Deborah – aqui regressamos à primeira imagem do filme.

Ao tentar colocar o envelope junto aos retratos expostos da mulher e da filha, é sugerido que Ian teve um enorme ataque, quase fatal. É impossível confirmá-lo, mas aceitamos a sugestão se virmos o mesmo como O Ataque. Não apenas um resumo dramático de todas as crises de epilepsia que atormentaram a breve vida do protagonista, mas um símbolo da sua batalha com o Mundo. Ian contra a Vida.

Essa vida, essa Macclesfield «da qual quis escapar desde sempre», essa floresta de enganos, arrependimentos e becos, concentra-se numa coisa e numa coisa apenas: o secador de roupa. Por duas vezes Ian o observou no passado e a terceira será definitiva. Também na morte, Curtis escolheu um toque de poesia – talvez melodramático – mas poético ainda assim.


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Numa tentativa de preservar esse legado, o realizador oferece-nos um epílogo profundamente melancólico, sóbrio e respeitoso.

Os gritos de Deborah, saídos do interior da casa. A sua aparição em lágrimas, com Natalie nos braços.

Os colegas de banda e amigos, num bar, apáticos perante as cervejas intocadas.

Tony Wilson a receber Annik Honoré.

Ian Curtis, 23 anos, transformado em fumo negro, ao som de «Atmosphere».


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Estamos a 18 de Maio de 1980. Talvez seja isto, a permanência.

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