Alguns defendem ser Harold Pinter o mestre do subtexto.
Pretende com isto dizer-se que ninguém, como ele, domina a arte de ocultar nas entrelinhas o que à partida não se lê no texto escrito. Sobretudo ao nível dos diálogos. Não pude ainda confirmar a justeza da qualidade atribuída a Pinter, mas no final de um texto de Paul Auster, o diálogo entre duas personagens remeteu-me para este raciocínio.
Completamente inócua e denotativa se retirada do contexto da história, esta curta conversa entre pai (adoptivo) e filho arrisca resumir centenas de páginas:
Onde fica Boston?
A cerca de trezentos quilómetros daqui. – Responde o pai.
Isso fica tão longe como o espaço?
Se fosses sempre a subir, estarias perto.
Acho que devias ir à Lua. Um foguetão é melhor do que um comboio.
Farei isso na viagem de regresso. Às sextas-feiras há voos regulares de Boston para a Lua. Vou reservar um lugar mal chegue lá.
Sim. Depois podes contar-me como é.
Se achar alguma pedra na Lua, trago-ta.
E para o Paul?
Trago também uma para ele.
Não, obrigado.
Que queres dizer com isso?
Não quero uma pedra da Lua. O Paul podia metê-la à boca e engasgar-se.
E então de que gostarias?
Um elefante.
No espaço não há elefantes.
Eu sei. Mas tu não vais para o espaço.
É verdade.
E aposto que há elefantes em Boston.
Provavelmente tens razão. Queres um elefante cor-de-rosa ou branco?
Um elefante cinzento. Um dos grandes com muitas rugas.
Não há problema. São os mais fáceis de encontrar. Queres que o traga embrulhado numa caixa ou numa trela?
Devias vir montado nele. Sentado em cima, com uma coroa na tua cabeça. Como um imperador.
Imperador de quê?
O imperador das criancinhas.
Tenho direito a uma imperatriz?
Claro. A mamã é a imperatriz. Ela ia gostar. Devíamos acordá-la para lhe dizer.
É melhor não. Prefiro fazer-lhe uma surpresa quando regressar.
Boa ideia. Ela também só vai acreditar quando vir.
Exactamente. E não queremos que fique desapontada. No caso de eu não encontrar o elefante.
Oh, vais encontrar papá. Não te preocupes.
Como é que podes estar tão certo?
Porque és o imperador. Um imperador consegue tudo o que quer.
Contextualizando, este episódio passa-se na manhã da partida do protagonista, ao encontro (supostamente) do pai biológico da criança com quem fala. O primeiro casou com a mãe do rapaz e com ela teve outra criança (Paul). O pai biológico nunca mencionado é o amigo de infância do protagonista.
Observemos então o mesmo diálogo, mas acrescentando o subtexto, baseado nos acontecimentos que tiveram lugar ao longo da trama:
Onde fica Boston?
A cerca de trezentos quilómetros daqui. – Responde o pai.
Isso fica tão longe como o espaço? (Céu, paraíso, pós-morte).
Se fosses sempre a subir, estarias perto.
Acho que devias ir à Lua. Um foguetão é melhor do que um comboio. (Deveria aproveitar todo o potencial, coisa que nunca fez).
Farei isso na viagem de regresso. Às sextas-feiras há voos regulares de Boston para a Lua. Vou reservar um lugar mal chegue lá. (Boston – onde está o amigo/pai da criança/o génio que o protagonista nunca conseguiu emular; caminho para Lua – sucesso. Vai reservar um lugar i.e. vai obter o sucesso).
Sim. Depois podes contar-me como é.
Se achar alguma pedra na Lua, trago-ta.
E para o Paul? (Irmão mais novo).
Trago também uma para ele.
Não, obrigado.
Que queres dizer com isso?
Não quero uma pedra da Lua. O Paul podia metê-la à boca e engasgar-se. (Paralelismo entre o irmão mais velho/irmão mais novo, sendo o segundo protegido pelo primeiro, e pai biológico/protagonista, sendo o segundo protegido a vida toda pelo primeiro, como seu amigo de infância. Agora, Ben (a criança do diálogo) é como o seu próprio pai biológico e Paul, irmão mais novo é a representação do protagonista/pai adoptivo de Ben. Condição genética).
E então de que gostarias?
Um elefante. (Elefante sinónimo de grande problema – elefante em loja de porcelanas/elefante na sala. O grande problema é o fantasma do pai biológico que assombra e potencialmente destrói o casamento entre protagonista e mãe da criança, ex-mulher do amigo).
No espaço não há elefantes. (Atingido o sucesso/espaço, não há problemas/elefantes).
Eu sei. Mas tu não vais para o espaço. (Tu nunca serás como ele).
É verdade.
E aposto que há elefantes em Boston. (O amigo/pai está em Boston).
Provavelmente tens razão. Queres um elefante cor-de-rosa ou branco? (Continuar a ignorar a realidade).
Um elefante cinzento. Um dos grandes com muitas rugas. (Grandes e com muitas rugas, como um problema muito antigo).
Não há problema. São os mais fáceis de encontrar. Queres que o traga embrulhado numa caixa ou numa trela? (Escondemos o problema ou domesticamo-lo?).
Devias vir montado nele. Sentado em cima, com uma coroa na tua cabeça. Como um imperador. (Nunca conseguirás esconder o problema, será sempre evidente ainda que finjas dominá-lo, de forma pateta).
Imperador de quê?
O imperador das criancinhas. (Andarás sempre a brincar aos adultos bem-sucedidos).
Tenho direito a uma imperatriz?
Claro. A mamã é a imperatriz. Ela ia gostar. Devíamos acordá-la para lhe dizer. (Acordá-la, alertá-la de que conseguirás resolver o problema).
É melhor não. Prefiro fazer-lhe uma surpresa quando regressar. (A mãe não espera que o marido regresse, por isso «haverá uma surpresa se ele regressar»).
Boa ideia. Ela também só vai acreditar quando vir.
Exactamente. E não queremos que fique desapontada. No caso de eu não encontrar o elefante. (No caso de eu não resolver o problema).
Oh, vais encontrar papá. Não te preocupes.
Como é que podes estar tão certo?
Porque és o imperador. Um imperador consegue tudo o que quer. (Um imperador fictício finge sempre resolver os seus problemas).
Não revelarei o final da história. Terão de ler «O Quarto Fechado».