Belleville Rendez-Vous


Prefácio

Dava-se o caso de estarmos em 2004 – apesar do filme ser de 2003 e ter sido apresentado com sucesso no Festival de Cannes desse ano.

Dava-se o caso de eu estar a viver um dos anos mais interessantes de que tenho memória, nestes quarenta e um que agora levo.

Um ano louco, divertido, aventureiro, insólito, emocionante, melancólico, burlesco, mágico, entre outras coisas que não aceitam rótulos.

Dava-se o caso de eu integrar um estimulante encontro de culturas – a portuguesa e a francesa.

Belleville Rendez-Vous (ou Les Triplettes de Belleville) revelou-se uma inesperada síntese – e símbolo – de tudo isto.

Porque sim. É um filme «louco, divertido, aventureiro, insólito, emocionante, melancólico, burlesco, mágico, entre outras coisas que não aceitam rótulos».

E sim, nele existe um inesperado encontro de culturas – a portuguesa e a francesa (entre outras).

Para além disso, é um filme de animação – porém afastado de qualquer pré-conceito que disso se possa fazer (renega absolutamente os conceitos Disney, Pixar ou Manga, só para dar alguns exemplos).

Os diálogos resumem-se a três ou quatro frases quase imperceptíveis, excepção feita a uma conhecida e de todo inesperada canção, da qual nada mais direi.

Há quem lhe queira atribuir o surrealismo dos Monty Python ou a doce bizarria de Tim Burton, mas todas esses ensaios classificativos pecam por escassos e imprecisos.

Belleville é ele mesmo. Uma pérola discreta do Cinema.

Difícil de acreditar? Ora espreitem.


 

O Filme

Reparem, começamos de imediato por observar uma película no interior da primeira. Ou seja, recordamos os tempos áureos de um trio de cantoras – algo entre o Vaudeville, o Cabaret e a Broadway – conhecidas como «Triplettes de Belleville».

Nesses loucos anos 20, actuam ao lado de artistas como Josephine Baker, Fred Astaire ou Django Reinhardt.

As imagens oferecem – para além de um alucinado e bem-disposto surrealismo – um apropriado conjunto de alegorias:

 – O público masculino que assiste à actuação da sensual Josephine, transforma-se de súbito num bando de primatas, ansiosos por roubarem as bananas que lhe enformam o vestido;

 – Os sapatos do mítico Fred Astaire revoltam-se contra o «dono», acabando por consumi-lo e arrastá-lo para fora da ribalta.

Por entre o caos crescente, a emissão é de súbito interrompida – imprevisto familiar para qualquer um que tenha nascido e vivido antes do século XXI.

Terminou o filme? – Interroga uma voz aguda e terna. A voz da minúscula e relativamente idosa Madame Souza.

A familiaridade inerente à personagem – baixa, de cabelo enrolado num tradicional carrapito e óculos na ponta do nariz a salientarem um olhar arguto e inteligente – não é de modo algum um acaso. A Sra. Souza é a epítome da mulher portuguesa de antanho. A mais doce caricatura de uma avozinha, chegada de um tempo mágico e esquecido.

A seu cargo, um netinho, por ora sem nome. Estamos nos arredores de Paris, no final dos anos 40 do século XX.

Habitam numa casa modesta, quase precária, recheada de saudade e esperança – como quem diz, de Passado e Futuro.

Madame Souza recheou as paredes e móveis de alusões a Fátima, Fado e outros símbolos da pátria abandonada, o neto cobriu as paredes do quarto com fotos dos pais – que se presumem falecidos.

Na emissão da pequena TV, as Triplettes foram substituídas por um concerto de música clássica, que parece despertar algum interesse na melancólica criança. Pelo menos assim o assume Madame Souza, que logo afasta um lençol empoeirado para revelar um desafinado e abatido piano.

Os ténues esforços para arrancar dele uma sonoridade agradável esbarram na timidez e insegurança do neto, que enceta apressada fuga pelas escadas, rumo ao quarto.

É decerto esse o problema, pensa – pensamos nós – a empenhada senhora. A criança está rodeada de ocasos. Do que ela precisa é de amanheceres, de uma nova vida, de…um cachorrinho, por exemplo. Algo que possa ser cuidado e estimado.

Assim surge Bruno.

As imagens que nos chegam de uma tarde na vida do agregado familiar resumem aquela realidade na perfeição. A avó sentada à mesa, em tarefas rotineiras, a criança a brincar com uma pista (circular) de comboios. O cachorro a observar, nervoso e desorientado.

Uma existência modesta, «circular», sem horizonte.

A certa altura, Bruno esquece a cauda num dos carris e o imperturbável comboio passa-lhe por cima, semente de um trauma que nos irá acompanhar ao longo de todo o enredo.

O mistério não é grande: as experiências do passado influenciam as escolhas do futuro.

Bruno cultivará um eterno desamor aos comboios.

O neto, à conta de uma foto de 1937 que nos revela os pais felizes e presentes, numa bicicleta, descobrirá enfim a sua vocação.

Madame Souza, cuja razão de viver é o neto, acompanhá-lo-á enquanto puder.

Isto porque – concluímos – a verdadeira paixão da criança são as bicicletas.

Souza oferece ao neto um pequeno triciclo, que acorda nele uma alegria nunca antes vista (e provavelmente sentida). Agora, a existência tem um rumo.

Reencontramo-los – talvez uns dez anos depois – em pleno (e duro) treino.

Um neto – agora alcunhado de Champion – com os seus 18 ou 20 anos, dono de um corpo atlético e vigoroso, enfrenta as penosas ruas íngremes de uma Paris escura e diluviana. Montado numa bicicleta de competição, reboca a indestrutível avó Souza, que instalada no antigo triciclo, coordena o treino ao ritmo de um imparável apito, abrigada por um pequeno chapéu-de-chuva. Os perigos são múltiplos e constantes, mas ambos enfrentam as adversidades com a mesma bonomia de sempre.

O objectivo é um só. Se não o atingirem, morrerão a tentá-lo.

Em casa fica Bruno, entregue ao seu ódio de estimação por comboios e ao ocasional sonho surrealista.

A cidade cresceu a olhos vistos. O que dantes era um cenário praticamente campestre transformou-se numa urbe desordenada, que trouxe consigo as desvantagens desse «progresso». Encontramos agora uma ponte ferroviária a poucos metros da janela de Champion, guardada com ferocidade pelos latidos de Bruno, tão regulares quanto os horários dos comboios.

Regular – dir-se-ia antes rigoroso – é também o treino de Champion, ministrado pela avó. Chegados a casa após o anoitecer, seguem-se as massagens de «relaxamento» – que nos arrancam um sorriso não despido de consternação (essa é aliás a premissa de todo o enredo – uma jovialidade melancólica).

Depois, uma refeição «de atleta», na qual a mínima grama é essencial. Por fim, o mais que merecido descanso, que surge por volta das 21h. Entretanto, Madame Souza afina a maquinaria (a estabilidade das rodas da bicicleta).

Os mais atentos notarão que Bruno era magro e Champion – antes de sê-lo – era anafado. Os papéis inverteram-se, sobretudo porque 90% das refeições da antiga criança são agora consumidas pelo antigo cachorro. Este pode considerar tudo aquilo um sonho, mas a realidade também tem destas coisas: os sonhos, por vezes, realizam-se.



Champion, Souza e Bruno conseguiram. Estão na Volta à França. No mítico Tour.

É certo que os favoritos, chegadas as etapas mais duras (de montanha), depressa se afastam, abandonando os amadores na cauda do pelotão – ou mesmo atrás.

A intrépida avó garante a motivação permanente, viajando no carro-vassoura – destinado a recolher os desistentes. Aí vem ela, a marcar o ritmo com o seu famoso apito. Bruno dorme.

Aqui, percam algum tempo a notar os pormenores (e são muitos) associados ao Tour da época, verdadeiro retrato antropológico.

Entretanto, não esquecer, estamos (pelo menos) no sonho realizado de Champion, que apesar de ser real, contém nele – talvez – alguns elementos inesperados.

Por exemplo, um par de «armários» – digo – capangas que por alguma razão sabotam discretamente o percurso do carro-vassoura. Basta uma mão-cheia de pregos na estrada para imobilizar o veículo, a contas com um furo.

Existirá um mínimo de lógica nisto? – Pergunta-se.

Bem, sim, se a intenção for tomar o lugar do dito carro-vassoura, de modo a recolher os ciclistas desistentes – onde, após um esforço heróico, se encontra Champion (e outros dois infelizes).

Certo. E qual a intenção de recolher estes atletas? Ah, a pergunta de um milhão de euros (ou dólares).

O mistério será resolvido com alguma dificuldade por Madame Souza – porque se alguém pensa que um mero pneu furado vai bloquear a heroína da nossa história, está a ver o filme errado.

Digamos apenas que o veículo é posto a circular com uma belíssima – ainda que talvez algo forçada – ajuda de Bruno e que é por uma unha negra que ambos falham na tentativa de impedir os criminosos de zarpar num enorme barco, rumo ao Atlântico. Nas catacumbas do navio, estão prisioneiros – qual potros de competição – os três ciclistas raptados.

Por esta altura, talvez uma avozinha vulgar erguesse a bandeira branca. Talvez esta entrasse em desespero, procurasse a ajuda das autoridades, definhasse em casa enquanto aguardava novidades que nunca chegariam.

Não Madame Souza. Não a nossa avozinha portuguesa.

Afinal, quem melhor do que os portugueses domina as artes da navegação? Decerto ninguém (segundo o mito). Temos de alugar uma «gaivota» de praia «durante 20 minutos» para atravessar «mares nunca navegados» rumo ao continente americano, de modo a salvar o nosso querido neto? Seja.

Venham de lá essas tormentas. Venha de lá esse horizonte.

(Tenho dificuldade em pensar numa metáfora mais doce – e acertada – para as agruras dos desfavorecidos face à rudeza e crueldade do mundo envolvente).

A perseguição leva-os – miraculosamente – a Nova Iorque (ou qualquer outra metrópole similar), que neste caso é conhecida como…adivinharam, Belleville.

Apesar dos esforços extraordinários, Souza e Bruno perdem o rasto de Champion, uma vez que o faro do cão é prejudicado pela imensa poluição urbana.

Esfomeados, entram numa hamburgueria.

Hamburgers. – Anuncia a empregada.

Por azar, a única moeda que Madame Souza tinha na carteira foi gasta no aluguer, «durante vinte minutos», do transporte que utilizou para atravessar o Atlântico, pelo que…

No money, no hamburgers.

Entretanto, é revelado o motivo para o rapto de Champion (e restantes): uma bizarra máfia francesa (muito dada a vinhos) organiza eventos ilegais nas entranhas da sua sede – uma instituição vinícola.

Um técnico com ar de rato (ah ironias) montou uma complexa máquina simuladora de corridas – os ciclistas pedalam sem fim, motivados por uma imagem projectada. As engrenagens acabam por decidir o vencedor, mas no decurso circula uma lucrativa rede de apostas entre os diversos grupos de criminosos.

Tais informações ainda escapam à nossa heroína. Encontramo-la – pela primeira vez – vagamente derrotada, procurando aquecer-se debaixo de uma ponte. Ao reparar numa velha roda de bicicleta, ali abandonada, dela arranca um breve ritmo melódico, pleno de nostalgia.

Falar de nostalgia é falar…exacto…das Triplettes. Habitam nas proximidades e foram por mero acaso atraídas pelo ritmo dançante improvisado por Souza. Logo trauteiam a conhecida música que em tempos as tornou famosas – embora tal fama não tenha sido suficiente para lhes proporcionar uma reforma digna.

Quarenta anos depois, estão reduzidas a um apartamento minúsculo, situado num bairro (muito) mal frequentado.

Porém, generosas e hospitaleiras, convidam Souza para se juntar a elas, pelo menos enquanto esta não resolve o seu problema.

Como é mesmo o ditado? «Se a vida te dá limões…».

No caso concreto das Triplettes, os limões foram – apropriadamente – substituídos por sapos. Se há coisa que não falta naquela baía são colónias de tais bicharocos, que por esta altura devem considerar a idosa artista o demónio encarnado.

Expliquemos:

Todas as noites – ou perto disso – uma das Triplettes desloca-se às margens, munida de uma granada de mão (não importa de momento como as obtém) e bombardeia as águas próximas. A explosão provoca uma chuva de sapos – sim, «Magnólia» – e a caçadora aprisiona-os numa rede de pesca.

Madame Souza ainda não sabe, mas está prestes a descobrir os extraordinários dotes de culinária das suas anfitriãs: Sopa de sapo, espetada de sapo e pipocas de sapo. A dieta pode não ser variada, mas sempre é melhor que a fome.

Em jeito de agradecimento, Souza desloca-se ao piano existente na casa e dele arranca…

Nem mais: «Uma Casa Portuguesa».

Se este não é o momento mais aconchegante do filme, não sei qual será.

Quem está sem dúvida esfomeado é o nosso Bruno. Todavia, a iguaria que lhe servem está longe de igualar os cozinhados da dona. A primeira está tão fresquinha, tão fresquinha, que é bem capaz de saltar do prato para o atacar, num cenário digno dos piores pesadelos canídeos.

(Uma excelente sequência a ilustrar conceitos como o Estoicismo e o Determinismo, ou, simplificando, como todos os nossos esforços são inúteis face ao destino final).

Entretanto, enfim, já sabemos como são as portuguesas da velha guarda. Não deixam favor por pagar. De preferência, pagam-no com uma boa limpeza.

O problema – descobre Souza – é que as Triplettes não permitem qualquer tipo de arrumação:

 – Se esta quer guardar os restos de…bem..sapos…no frigorífico, este tem de permanecer imaculadamente vazio;

 – Se esta se lembra de sacudir o pó da sala, o aspirador não é para aqui chamado;

 – Se, conformada, estica a mão para o jornal, de modo a colocar as notícias em dia, é com gentileza impedida de o fazer.

Passa-se algo de estranho com estas Triplettes, mas tendo em conta o filme em que estamos inseridos, ser estranho é ser comum.

Os meses decorrem, arrastando-nos até ao Natal. A situação estagnou. Champion recebe doses regulares de «doping», – à base de vinho tinto, digamos – procede-se às últimas afinações na maquinaria e Souza ainda não se habituou aos novos gelados de…sapo.

Habituou-se, contudo, a ser o quarto membro das Triplettes de Belleville, que ainda mantêm, afinal, contactos suficientes no mundo artístico para poder actuar no clube onde se reúnem com frequência os mafiosos mais prestigiados da cidade.

Eis o motivo pelo qual frigorífico, jornal e aspirador são tão preciosos: fazem parte da improvisação musical, num cenário de fazer inveja aos STOMP. Souza trauteia, discreta mas eficazmente, na sua rodinha de bicicleta.

O nosso vilão – sempre emparelhado entre «armários» – é cliente habitual e muito apreciador das Triplettes. Por outro lado, Bruno é pouco apreciador de vilões, sobretudo aqueles que seguram um jornal com informações essenciais.

O fiel canídeo depressa o arranca das mãos do inimigo, fazendo com que este proteste com a força das armas. De imediato entra o servil (nunca se viu maior que este) empregado, que implora por clemência. A manobra de diversão resulta. Bruno exibe as provas jornalísticas a Souza. A vingança será, decerto, terrível.

O elo a ter em conta é o nosso técnico roedor. Souza, qual agente secreto – daqueles que se faz de cego para melhor observar – fareja-lhe o rasto e as origens, nem que para isso tenha de traumatizar para a vida um pobre escuteiro. Enfim, danos colaterais.

O que importa é que, por fim, existe um plano de acção – salvar Champion.

A máfia vinícola parece ter organizado um evento especial de Natal, por assim dizer. Nele, os três ciclistas fazem o que podem, não só para serem os vencedores da simulada prova, mas sobretudo para não cederem à fatal fadiga – porque, no exemplo concreto, esta é de facto fatal.

Não se pode dizer que a técnica de disfarce da trupe de heróis – Triplettes, Souza e Bruno – esteja muito apurada, mas essa falha é compensada pela dureza das frigideiras, potenciada pelo golpe de braço do famoso trio. Tal vai sendo demonstrado de forma elucidativa aos guardas de serviço e ao nosso roedor – por momentos ausente com um problema técnico.

Em plena acção, o mais frio dos capangas – não sei porquê penso sempre Gestapo – descobre a engenhosa artimanha de Souza (que se disfarçou de roedor para sabotar a máquina dos ciclistas). Nada que a cabeça de uma das Triplettes não resolva.

Há só um detalhe – estão numa sala cheia de mafiosos armados.

Analisemos:

De um lado, dezenas de implacáveis criminosos, armados até aos dentes e versados nas artes do tiroteio;

Do outro, um anémico ciclista, uma idosa avozinha portuguesa, um envelhecido trio de artistas musicais e um cão obeso.

Quem poderá sair vencedor? Parece-me evidente.

A sabotagem permite que a máquina ganhe vida e invada as ruas de Belleville. Os mafiosos que sobreviveram às granadas – perguntem aos sapos como é – lançam-se numa irada perseguição.

As balas silvam e os milagres sucedem-se. Um a um, lenta mas consistentemente, todos os rivais vão sendo eliminados pela imaginação e espírito colaborativo dos nossos heróis mais do que improváveis.

Uma fantástica sucessão de acidentes e acasos deixa-os à beira da liberdade – bastando para isso que atravessem uma ponte (como é óbvio).

Num último gesto, o líder da máfia aponta para Souza, mas esta lança-lhe – qualquer criança o confirmará – o mais letal dos contragolpes: uma rasteira.

Enfim vencedora, a nossa amigável trupe pode então seguir rumo – não ao ocaso, mas ao amanhecer.

Terminou o filme? – Escutamos de novo. – Terminou? Terminou o filme?

A voz de Madame Souza. Desta vez, existe uma resposta.

Sim, avozinha. Terminou.

Quem fala é um idoso Champion. O lugar de Souza encontra-se, é claro, vazio.

E esta fantástica história pode não ter ocorrido exactamente assim, mas é assim que Champion a recorda.

E isso é, na verdade, tudo o que importa.


(Desafio os pacientes a procurar – depois dos créditos – o dono da «gaivota»).

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