Molière


 

Viveu entre 1622 e 1673. Foi dramaturgo, actor e poeta. É considerado um dos maiores escritores franceses e universais. A sua obra inclui comédias, farsas, tragicomédias, comédias-bailados e muito mais. As suas peças foram traduzidas em inúmeras línguas e são, ainda hoje, as mais exibidas no Teatro Francês, acima de qualquer outro dramaturgo. A sua influência é tal que a língua francesa é muitas vezes conhecida como «a língua de Molière».

Nascido no seio de uma família abastada e formado no Colégio de Clermont (hoje em dia conhecido como Liceu Louis-le-Grand), Molière cedo ganhou as ferramentas necessárias para forjar uma carreira de sucesso no Teatro. Passou treze anos como actor itinerante, contexto que lhe permitiu aperfeiçoar o seu talento para a comédia. Em paralelo, iniciou-se na escrita para teatro, mesclando elementos da commedia dell’arte com detalhes mais refinados da tradicional comédia francesa.

Através do patrocínio de aristocratas como Filipe I, duque de Orleães – irmão de Luís XIV – Molière beneficiou de uma oportunidade para mostrar o seu trabalho ao Rei, no palácio do Louvre. Exibiu uma peça de Pierre Corneille e uma farsa da sua autoria, «Le Docteur Amoureux», que lhe granjeou o uso de um espaço contíguo ao palácio, uma sala ampla que transformou no palco das suas peças. Mais tarde, acabou por lhe ser permitida a utilização do teatro no Palais-Royal. Molière obteve sucesso com o público parisiense em ambos os locais, com peças como «Les Précieuses Ridicules», «L’École des Maris» e «L’École des Femmes». Os favores reais vieram acompanhados de uma avença para a sua trupe, para além do título de «Trupe do Rei». Molière estabeleceu-se então como dramaturgo oficial da Corte.

Apesar da adulação real e popular, as sátiras do autor valeram-lhe o desfavor do Clero. O percepcionado ateísmo de Tartufo redundou num ataque formal da Igreja Católica, que o acusou de hipocrisia religiosa e levou a que o Parlamento banisse a peça. Quanto a «Dom Juan», foi retirada dos palcos e não voltou a ser levada à cena pelo autor. O trabalho intenso e multifacetado acabou por afectar-lhe a saúde e forçou-o a fazer uma pausa em 1667. Em 1673, durante uma apresentação da sua derradeira peça, «O Doente Imaginário», Molière (que padecia de tuberculose) foi dominado por um ataque de tosse seguido de hemorragia enquanto encarnava o hipocondríaco Argan. Conseguiu terminar a actuação mas voltou a colapsar e morreu poucas horas depois.

 

Molière nasceu em Paris, pouco antes de ser baptizado Jean Poquelin, a 15 de Janeiro de 1622. Conhecido como Jean-Baptiste, era o primogénito de Jean Poquelin e Marie Cressé, que se haviam casado em Abril de 1621. A mãe nascera no seio de uma abastada família burguesa. Ao vê-lo pela primeira vez, uma criada terá exclamado: «O nariz!», à conta do volumoso nariz da criança. A partir dessa altura, a família passou a alcunhá-lo «O Nariz». A mãe morreu quando o autor tinha onze anos e este nunca aparentou grande proximidade com o pai. Contudo, após o desaparecimento da progenitora, passou a viver com ele num bairro bem frequentado de Paris. Admite-se que a sua educação académica tenha principiado numa escola primária da cidade, logo seguida da entrada no prestigiante Colégio Jesuíta de Clermont, instituição na qual completou os estudos, rodeado por uma atmosfera intelectual e onde experimentou pela primeira vez o sabor de um palco.

No ano de 1631, o pai obteve da Corte de Luís XIII os cargos de «Valete dos aposentos do Rei e Cuidador das Carpetes e Tapeçarias». O filho herdou tais cargos uma década depois. As funções exigiam apenas um total de três meses de trabalho e um custo inicial de 1200 moedas. Em compensação, rendia 300 moedas anuais e abria portas para muitos outros contractos lucrativos. Molière fez ainda estudos na área do Direito, por volta de 1642, provavelmente em Orleães, embora não existam registos de que os tenha concluído. Até ao momento, cumprira os desejos do pai, que lhe tinham sido vantajosos: estabelecera relações com a elite no Colégio de Clermont e parecia encaminhado para uma carreira corporativa.

Em Junho de 1643, teria o autor 21 anos, este decide abandonar o seu meio e tentar uma carreira de dramaturgo. Pedindo dispensa ao pai, associou-se à actriz Madeleine Béjart, com quem se cruzara anteriormente, e fundou a companhia teatral «Illustre Théâtre» mediante um investimento de 630 moedas. Mais tarde, a eles se juntaram o irmão e irmã de Madeleine.

A companhia declarou falência logo em 1645. Molière tornara-se o líder, em parte devido ao seu talento para representar e à sua breve formação no Direito. Porém, o projecto contraiu enormes dívidas, quase todas provocadas pela renda do espaço (um pavilhão concebido para um jogo percursor do ténis), que lhes exigia um total de 2000 moedas. Aqui, não é claro se foi o pai do autor ou um amante de um membro da companhia que saldou a dívida. Certo é que depois de passar 24 horas na prisão, Molière regressou à actividade teatral. Foi precisamente nesta altura que começou a usar o pseudónimo pelo qual é conhecido, decerto inspirado no nome de uma pequena aldeia do sudoeste francês e com a intenção de poupar o pai ao embaraço de ter um actor na família (actores, embora já não fossem humilhados pelo Estado no reinado de Luís XIV, ainda não tinham o direito de ser enterrados em solo sagrado).

A partir daqui, Molière passou a percorrer a província na companhia de Madeleine. Manteve este estilo de vida durante doze anos, tendo nesta fase trabalhado como actor na Companhia de Charles Dufresne e depois criado uma Companhia própria, que granjeou sucesso suficiente para atrair o patrocínio de Filipe I, duque de Orleães. Poucas foram as peças deste período que sobreviveram. As mais relevantes são «L’Étourdi ou les Contretemps» e «Le Docteur Amoureux». É com este par de criações que Molière se afasta da forte influência da commedia dell’arte e revela o seu talento para a crítica de costumes. No decurso das suas viagens, conheceu um nobre de nome Armand, governador de Languedoc, que se transformou no seu patrono. Contudo, a amizade termina no momento em que o aristocrata, tendo contraído sífilis com uma cortesã, se torna religioso e toma partido pelos inimigos do dramaturgo.

Entretanto, em Lyon, Mademoiselle Du Parc, conhecida apenas como «Marquise», associa-se à companhia. Esta estava a ser cortejada, sem sucesso, por Pierre Corneille tendo mais tarde principiado uma relação com Jean Racine. Este ofereceu a Molière um trabalho de sua autoria, uma tragédia chamada «Théagène et Chariclée» (um dos seus primeiros trabalhos depois de abandonar os estudos teológicos), mas este não levou a peça à cena, embora tenha encorajado o outro a prosseguir a carreira artística. Comenta-se que algum tempo depois, Molière acabou por se zangar com Racine ao descobrir que este apresentara a mesma peça a outra Companhia.

O regresso de Molière a Paris deu-se de forma progressiva. Começou por frequentar os arredores, permitindo que a sua reputação crescesse junto de alguns cidadãos bem colocados. O autor foi então convidado a apresentar o seu trabalho na capital, em 1658, no Louvre (que à época funcionava como Teatro), numa actuação que contou com a presença do próprio Rei. Exibiu a tragédia «Nicodème», de Corneille e a sua farsa «Le Docteur Amoureux», com sucesso aceitável. A Companhia obteve então o título de «Trupe de Monsieur» (sendo este «Monsieur» referente ao irmão do Rei, Filipe I, duque de Orleães). Com a ajuda deste, Molière conseguiu autorização para partilhar o espaço do Petit-Bourbon com a famosa Companhia italiana de Tiberio Fiorillo, famoso pela sua personagem «Scaramouche» (ambas actuavam no mesmo palco, em noites alternadas). Molière estreou-se em finais de 1659, com a peça «Les Précieuses Ridicules».

Esta foi a primeira das numerosas tentativas do autor para satirizar certas afectações e maneirismos então muito comuns em França. É comumente aceite que a peça foi inspirada numa outra, surgida em 1656 – «Le Cercle des Femmes» de Samuel Chappuzeau. O principal objectivo passava por criticar a Academia Francesa, uma instituição criada por Richelieu, com a autorização real, com o objectivo de estabelecer as regras fundamentais do emergente Teatro Francês. Esta defendia – por exemplo – uma unidade de Tempo, Acção e Rima. Molière é muitas vezes associado à teoria de que a comédia serve para «criticar os costumes através do humor».

Apesar de preferir a Tragédia, género que tentara desenvolver nos seus tempos do «Illustre Théâtre», Molière acabou por se tornar famoso à conta das suas Comédias, em geral apenas com um Acto e apresentadas após as Tragédias. Algumas delas tinham enredos incipientes, sendo levadas à cena com um estilo muito dependente da improvisação. Escreveu também duas comédias em verso, que se revelaram menos bem-sucedidas e são hoje em dia consideradas menores. Numa fase mais adiantada da carreira, dedicou-se ainda a escrever comédias musicais, nas quais o enredo é frequentemente interrompido por canções e coreografias.

«Les Précieuses Ridicules» valeu ao autor a atenção e a crítica de muitos, mas não se revelou um sucesso de massas. Decidiu então pedir a Fiorillo que lhe ensinasse as técnicas da commedia dell’arte. A peça seguinte, apresentada em 1660, «Sganarelle ou Le Cocu imaginaire» aparenta ser um tributo quer ao género da commedia dell’arte quer ao seu mestre. A temática em redor das relações conjugais confirma as opiniões pessimistas do dramaturgo acerca da inerente falsidade das relações humanas. Esta visão está também presente em muitos dos seus derradeiros trabalhos e acabou por ser uma fonte de inspiração para diversos autores, incluindo Luigi Pirandello. A peça apresenta uma espécie de plataforma giratória composta por dois casais, em que cada um dos parceiros acredita ter sido traído pelo outro, sendo a primeira da «Série do Ciúme», que inclui ainda «Dom Garcie de Navarre», «L’École des Maris» e «L’École des Femmes».

Em 1660, o Petit-Bourbon foi demolido de modo a permitir a expansão da ala oriental do Louvre, mas a Companhia de Molière foi autorizada a mudar-se para uma ala abandonada do Palais-Royal. Após um período de remodelações, fizeram a estreia nos princípios de 1661. Para agradar ao patrono, «Monsieur», tão embrenhado em tudo o que se relacionava com Arte e Entretenimento que acabou por ser afastado dos assuntos de Estado, Molière escreveu e representou «Dom Garcie de Navarre». Outras duas comédias de sucesso foram «L’École des Maris» e «Les Fâcheux», subtitulada «Comédie faite pour les divertissements du Roi» (comédia dedicada aos divertimentos do Rei), uma vez que foi apresentada durante um conjunto de festas que o Secretário de Estado das Finanças Nicolas Fouquet organizou em honra do soberano. Tais celebrações levaram o ministro das Finanças Jean-Baptiste Colbert a exigir a prisão de Fouquet por desperdício de dinheiros públicos e este acabou mesmo por ser condenado a prisão perpétua.

A 20 de Fevereiro de 1662, Molière casou-se com Armande Béjart, que para todos os efeitos era irmã de Madeleine. (É possível que na verdade fosse a filha ilegítima desta com o Duque de Modena). Nesse mesmo ano, estreia «L’École des Femmes», que com o tempo conquistou o estatuto de obra-prima. Trata-se de uma crítica mordaz à educação limitada recebida pelas raparigas de famílias abastadas, funcionando como um espelho do próprio casamento do autor. Ambos os temas atraíram fortes críticas. A peça deu origem a um folhetim intitulado «Querela acerca de ‘L’École des femmes’». O autor respondeu através de um trabalho menos conhecido: «La Critique de ‘L’École des Femmes’», peça onde imagina o público a observar o seu trabalho polémico. Este é alvo de chacota no decorrer de um jantar posterior. Tal artifício permite-lhe elencar todos os argumentos negativos e contradizê-los.

Noutra frente, aumentava o desconforto de alguns sectores com as opções políticas e conjugais do dramaturgo. Um grupo intitulado «Parti des Dévots» começou a obter protagonismo entre a alta sociedade francesa, indignado com o «excessivo realismo e irreverência» de Molière, fonte de algum embaraço. De caminho, acusavam-no de ter casado com a filha. O Príncipe de Conti, antigo amigo do autor, abandonou-o. Este tinha ainda outros inimigos, sobretudo entre religiosos e concorrentes. O Rei, contudo, manteve o apoio, concedendo-lhe uma pensão e aceitando ser o padrinho do primeiro filho de Molière. Outros, como o poeta Boileau também permaneceram fiéis.

A amizade do dramaturgo com o compositor Jean-Baptiste Lully motivou-o a escrever as peças «Le Mariage Forcé» e «La Princesse d’Élide» (subtitulada «Comédie galante mêlée de musique et d’entrées de ballet»).

Em 1664, Tartufo foi à cena no Palácio de Versailles e provocou o maior escândalo da carreira do autor. As críticas do enredo à hipocrisia das classes dominantes foram encaradas como uma afronta e violentamente censuradas. Tal provocou ainda a cólera de grupos religiosos poderosos e a peça acabou por ser banida.

Molière teve contudo sempre o cuidado de não atacar a Monarquia e isso valeu-lhe uma posição de privilégio junto do Rei, bem como protecção para os ataques surgidos de diversos quadrantes. O monarca terá oficialmente sugerido que o autor suspendesse as apresentações de Tartufo e este apressou-se a escrever «Dom Juan ou le Festin de Pierre», em substituição. Revelou-se um trabalho denso, a partir de uma peça original de Tirso de Molina e declamado num estilo de prosa que ainda hoje se revela moderno. Descreve a história de um ateu que se transforma num religioso hipócrita, sendo por isso castigado por Deus. Acabou por não demorar muito a ser suspenso. O Rei, provando mais uma vez a sua tolerância, transformou-se no patrono oficial da Trupe de Molière.

De novo com música de Lully, Molière apresentou de seguida «L’Amour Médecin». O subtítulo deixava claro que a peça surgira «par ordre du Roi» (por ordem do Rei), logo, o trabalho foi recebido com muito mais tolerância que os anteriores.

Em 1666, seguiu-se «Le Misanthrope». Hoje em dia é considerada uma das peças mais refinadas, uma obra-prima de grande valor moral, mas à época foi pouco apreciada. Apesar de atrair o reconhecimento de algumas personalidades, revelou-se um desastre comercial, obrigando o dramaturgo a escrever «Le Médecin Malgré Lui», uma sátira acerca das ciências convencionais. Revelou-se enfim um sucesso, apesar de alguns reparos de figuras proeminentes, que criticavam o Teatro em geral e Molière em particular. De notar que em várias das suas peças, o autor transforma os médicos em indivíduos arrogantes, que optam por falar (mau) latim somente para impressionar o cidadão comum com a sua falsa erudição e no fundo sabem apenas receitar clisteres e sangramentos para todo o tipo de doenças (sem as curar).

Após mais um par de comédias, «Mélicerte» e «Pastorale comique», tentou levar de novo à cena um Tartufo remodelado, já em 1667, mas assim que o Rei se ausentou de Paris em viagem, a Igreja voltou a banir a peça. Foram precisos alguns anos para o monarca cimentar o respeito devido pela mesma, já depois deste se ter imposto perante o Clero.

Molière, agora doente, diminuiu o ritmo de trabalho. Surge «Le Sicilien ou L’Amour Peintre», seguido de «Amphitryon», em 1668. «George Dandin, ou Le Mari Confondu» teve pouco sucesso mas os holofotes regressaram com «L’Avare», hoje em dia bastante conhecida.

Associou-se uma última temporada a Lully para criar «Monsieur de Pourceaugnac», «Les Amants Magnifiques», «Le Bourgeois Gentilhomme» (outra obra-prima, que decerto visava Colbert, o ministro que condenara o seu antigo patrono, Fouquet) e ainda «Psyché», esta já escrita em colaboração com Pierre Corneille e Philippe Quinault.

Em 1672, morre Madeleine Béjart, facto que deixa Molière muito abatido e contribui para o agravamento da sua própria doença. Apesar disso, ainda escreve «Les Fourberies de Scapin», com sucesso, e «La Comtesse d’Escarbagnas», já de baixa qualidade.

«Les Femmes Savants», também de 1672, volta a ser considerada uma obra-prima e motiva-o para um último grande trabalho, ainda hoje muito apreciado.

Ao longo de 14 anos em Paris, Molière escreveu sozinho 31 de um total de 85 peças levadas à cena nos seus teatros.

O autor padecia há longo tempo de tuberculose pulmonar, provavelmente contraída na fase em que esteve preso por dívidas, ainda jovem. Esse contexto provocará um dos episódios mais famosos da sua vida (e também o último), que hoje entra quase no domínio da lenda: em resumo, o dramaturgo colapsou em palco, tomado por um ataque de tosse acompanhado de hemorragia quando representava a sua última peça, ironicamente intitulada «Le Malade Imaginaire». Molière insistiu em terminar a actuação, mas voltou a desfalecer após a peça à conta de um segundo ataque, ainda mais forte, tendo então sido levado para casa e falecido poucas horas depois, sem sequer receber a extrema-unção, já que dois padres se recusaram a comparecer e um terceiro chegou demasiado tarde.

A partir daqui, nasceu a lenda de que a cor verde traz má sorte aos actores, já que era essa a cor das roupas envergadas pelo dramaturgo aquando do ataque fatal.

Segundo a lei francesa da época, os actores não tinham o direito de ser enterrados em solo sagrado, mas a viúva de Molière, Armande, perguntou ao Rei se o esposo poderia receber as honras de um funeral normal, desde que nocturno. O monarca concordou e o corpo do autor foi enterrado numa secção do cemitério reservada às crianças que não eram baptizadas.

Em 1792, os restos mortais foram transladados para um museu e em 1817 transferidos para o Cemitério de Père Lachaise, em Paris, onde foram colocados junto de La Fontaine.


 

 

 

Uma das comédias mais famosas de Molière, levada à cena pela primeira vez em 1664. As personagens Tartufo, Elmire e Orgon são das mais conhecidas no mundo do Teatro.

Pouco depois da estreia, nas festas de Versailles, a peça foi suspensa por Luís XIV, provavelmente devido a pressões do arcebispo de Paris, Paul Philippe Hardouin de Beaumont de Péréfixe, à época confessor do monarca e antigo tutor. Apesar deste não concordar com a decisão, acabou por aceder, uma vez que – tal como é declarado nos registos oficiais das comemorações:

apesar de considerar o enredo extremamente divertido, o Rei identificou tantas semelhanças entre aquelas (personagens) cuja devoção sincera os coloca no caminho celestial e as outras cujas vaidosas e interesseiras acções beneméritas não as impede de cometer outras, censuráveis, que considera – em nome da sua extrema sensibilidade religiosa – não ser possível admitir tantas parecenças entre vício e virtude, ao ponto de serem confundíveis. Ainda que não existam dúvidas acerca das boas intenções do autor, é mesmo assim necessário proibir a exibição pública do seu trabalho, privando-se o monarca do prazer pessoal de modo a impedir que o enredo seja vilipendiado por outros, menos capazes de o interpretar com justiça.

À conta da peça de Molière, passou a ser comum (nas línguas inglesa e francesa) utilizar a palavra tartuffe para identificar um qualquer cidadão hipócrita que ostensiva e exageradamente simule virtude, sobretudo virtude religiosa.

A peça é toda ela escrita em verso alexandrino (12 sílabas), perfazendo um total de 1962 linhas.

 

 

Personagens

 

Orgon – Patriarca e marido de Elmire, desenvolve uma admiração incondicional por Tartufo.

Tartufo – Hóspede de Orgon, um falso devoto religioso que tenta seduzir Elmire.

Valère – Jovem romântico que faz tudo para conquistar o seu verdadeiro amor, a filha de Orgon, Mariane.

Madame Pernelle – Mãe de Orgon; avó de Damis e Mariane.

Elmire – Esposa de Orgon, madrasta de Damis e Mariane.

Dorine – Empregada da família que procura denunciar Tartufo e ajudar Valère.

Cléante – Irmão de Elmire, cunhado de Orgon.

Mariane – Filha de Orgon, noiva de Valère e irmã de Damis.

Damis – Filho de Orgon e irmão de Mariane.

Laurent – Criado de Tartufo (personagem silenciosa).

Argas – Amigo de Orgon que discorda das políticas de Luís XIV (mencionado mas ausente).

Flipote – Criado de Madame Pernelle (personagem silenciosa).

Monsieur Loyal – Um oficial de justiça.

Um funcionário do Rei.

 

 

Enredo

 

A família de Orgon está em alvoroço, porque este e a sua mãe estão sob a influência de Tartufo, um pretenso religioso (e um indigente antes de ser ajudado por Orgon). O impostor aparenta ser um homem de fé e estar abençoado pela autoridade divina, pelo que Orgon e a sua mãe não fazem agora nada sem antes o consultarem.

Contudo, os esquemas de Tartufo não convencem a restante família ou amigos: todos o detestam. Orgon piora a situação quando anuncia que pretende casar o visitante com a sua filha Mariane (já noiva de Valère). Esta fica muito perturbada e o resto da família apercebe-se então até que ponto o impostor conseguiu imiscuir-se nos destinos de todos.

Planeiam assim revelar a Orgon a natureza odiosa de Tartufo, servindo-se de um estratagema para fazer este último confessar a Elmire (esposa de Orgon) o seu desejo por ela. Isto porque, enquanto convidado e sobretudo homem religioso, o mesmo estaria naturalmente proibido de exibir tais sentimentos pela dona da casa, logo a família espera que tal confissão obrigue Orgon a expulsá-lo. Tartufo cede de facto à tentação de seduzir Elmire, mas o encontro entre ambos é interrompido quando o filho de Orgon, Damis, que estava de vigilância, se revela incapaz de conter a crescente indignação e salta do esconderijo para acusar o impostor.

Tartufo fica inicialmente chocado, mas depressa se recompõe. Quando Orgon entra na divisão e Damis revela de forma triunfante o sucedido, o acusado recorre à psicologia invertida e admite ser o pior dos pecadores:

 

Oui, mon frère, je suis un méchant, un coupable,

Un malheureux pécheur tout plein d’iniquité.

(Sim, meu irmão, sou vicioso e culpado,

Um miserável pecador cheio de iniquidade). (III.vi).

 

Orgon conclui erradamente que Damis é o mentiroso e expulsa-o de casa. Tartufo chega mesmo ao ponto de convencer o outro de que, para ensinar uma lição ao filho, o religioso deve acompanhar Elmire o mais possível. Por fim, enquanto prenda para o convidado e ainda maior castigo para Damis e restante família, Orgon cede todos os bens materiais ao pretenso clérigo.

Numa cena posterior, Elmire decide tomar as rédeas da situação e desafia o marido a testemunhar de forma oculta um encontro entre ela e Tartufo. Orgon, sempre manipulável, concorda em esconder-se debaixo de uma mesa, convencido que a esposa está errada. Desse local, ouve-a a resistir aos avanços despudorados do outro. Quando o impostor está mais do que incriminado e ameaça mesmo violar Elmire, Orgon sai do esconderijo e expulsa o rival de casa.

O falso profeta não pretende contudo desistir com facilidade. Opta enfim por revelar a sua verdadeira natureza. Descobre-se então que antes dos eventos exibidos na peça, Orgon admitira ao outro possuir uma caixa com correspondência incriminatória (da autoria de um amigo). Tartufo apoderou-se da caixa em tempo útil e anuncia agora que terá de ser o patriarca a abandonar a casa. O impostor retira-se temporariamente, para que a família decida o que fazer. Em breve, Monsieur Loyal entrega-lhes uma mensagem do Tribunal – terão de abandonar a casa, uma vez que esta pertence agora a Tartufo. Dorine troça do nome de Monsieur Loyal (Leal), perguntando-lhe a quem deve ele a sua lealdade. Até mesmo Madame Pernelle, que se recusara a admitir qualquer defeito em Tartufo, inclusive após o testemunho do próprio filho, começa a temer a duplicidade do religioso.

Assim que Monsieur Loyal sai, entra um apressado Valère para informar que Tartufo acusou Orgon de auxiliar e proteger um traidor, ao esconder a cartas incriminatórias do amigo, pelo que a sua prisão está para breve. Quando Orgon se prepara para fugir, Tartufo chega com um oficial de justiça, mas este, numa reviravolta surpreendente, prende o impostor. O mesmo explica que o iluminado Rei Luís XIV – que nunca é mencionado pelo nome – ficou a par das injustiças ocorridas naquela casa e, chocado com os actos de Tartufo para com Orgon, ordenou que o primeiro fosse preso. Conclui-se que este tem afinal um longo cadastro e muda constantemente de nome para evitar a prisão.

Como prémio pela eterna lealdade de Orgon, o monarca perdoa-lhe a indiscrição com as cartas e invalida os documentos que concediam a Tartufo a posse da casa e demais bens do patriarca. A restante família agradece a sua boa fortuna e o enredo termina de forma positiva, com Orgon a anunciar o casamento de Valère e Mariane.

A reviravolta final, na qual tudo se resolve devido à inesperada intervenção salvadora do até ali ausente monarca, é considerado um exemplo notável do clássico artifício da «intervenção divina».

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