T2


Prefácio

 

Então? Que andaste a fazer…? Nos últimos 20 anos?

É deste modo que Simon (alguns ainda o conhecem por Sick Boy) recebe Mark Renton, quando o mesmo se atreve a visitá-lo.

Clarifiquemos de imediato: nada melhorou. E deveria?

Esta sequela – não livre da sua dose de controvérsia – pretende demonstrar exactamente isso. O tempo pode trazer portos, compromissos, até ilusória reabilitação, mas destina-se sobretudo a confirmar perdas.

É bem provável – os anos enublam-me a memória – que eu tenha aceitado o mesmo horizonte que todos os outros apreciadores do original Trainspotting: Mark, de saco recheado ao ombro e sorriso confiante enquanto atravessava uma alegórica ponte rumo (sabemos agora) a Amesterdão, tinha «escolhido a Vida».

A partir dali, todas as utopias eram possíveis, como só um jovem de 26 anos (no caso dele) ou de 20 (no meu) se atrevia a crer.

E depois? Bem…

Depois, dirigi-me a um cinema de Dublin (o próprio acto de entrar numa sala em 2017 comprova a nostalgia) para, envolto num mar de emoções, confirmar até que ponto tudo mudou.

Não é a primeira saga que me prova isso – o mesmo aconteceu com a trilogia «Before (Sunrise, Sunset, Midnight)» – mas é certamente a mais relevante.

Envelhecer oferece apenas dois caminhos: Nostalgia ou Aceitação.

Espreitemos, então, a definitiva «escolha» dos nossos velhos amigos.


O Filme


Se a primeira frase de um enredo deve (idealmente) resumi-lo ou pelo menos oferecer-lhe um mote poderoso, então a «frase visual» que estreia este T2 atinge o alvo em cheio.

A corrida orgânica e desenfreada que abre uma janela para o filme de 1996 dá lugar a uma confinada (e de certo modo patética) imitação na passadeira de um ginásio.

Desta vez, porém, Mark Renton não está a ser perseguido pelas autoridades na companhia dos velhos amigos escoceses. Não escapa de outra coisa senão do seu próprio labirinto existencial – feito de aborrecimento, decadência e vazio.

Aquela passadeira não o transporta para lado nenhum senão para a morte – figurada ou real é uma questão de sorte, pelo menos enquanto não sabemos o resultado do ataque cardíaco que o atira sem piedade para a indiferença do soalho.

Enquanto isso, somos reapresentados ao elenco – a Mark Renton associam-se Simon Williamson, Daniel Murphy e Francis Begbie, antiga trupe juvenil da noite escocesa, sabemo-lo, mas também amigos de infância e colegas de escola primária, descobrimo-lo.

Não é qualquer sequela que consegue ampliar o espectro emocional da nave-mãe, muito menos com esta naturalidade: um mero jogo de futebol no recreio, que mimetiza a partida original no ringue do bairro – nas posições em campo e nos gestos.

Está longe de ser a única referência futebolística presente. Haverá quem se lembre de um certo encontro entre «Holanda e  Escócia em 1978» e de um histórico golo escocês. Se for o caso, é provável que sorriam com o destino escolhido por Renton (Holanda) e se preocupem com as imagens agora apresentadas do dito jogo: um holandês a fintar sem misericórdia um escocês.

Quem sabe tudo sobre as fintas da vida é decerto Begbie. A mais brutal foi aquela que o atirou para uma prisão de alta segurança em Edimburgo, consequência directa da traição de Mark. Vinte anos são vinte anos, até mesmo para um «duro» como Francis. Admitamos e concedamos-lhe esse crédito: «Franco» tentou jogar as regras do jogo. Tentou dialogar com o «sistema». Com a relutante ajuda de um advogado público, esperou até ao limite das forças e da paciência pela liberdade condicional que nunca chegou.

Nada a fazer. A existência, para alguns, é monocromática. Está portanto na altura de Begbie ser Begbie.

Daniel Murphy, quase sempre conhecido como «Spud», também não conseguiu fintar o destino, nem mesmo com a ajuda das quatro mil libras «oferecidas» por Renton, à época. Afinal, um drogado é um drogado e quatro mil libras compram muita droga. Injectados os fundos, a rua volta a ser o escritório diário.

É no entanto aceitável questionar se em algum momento daquelas duas décadas a mente de Spud concebeu algo para além da próxima dose.

Para além do vício (permanente) e dos amigos (ausentes) conhecíamos-lhe apenas outro interesse: Gail Houston.

(Para quem não se lembra, a sua namorada de juventude, capaz de o torturar com teorias da «Cosmopolitan» enquanto tolera uma tempestade de dejectos à mesa do pequeno-almoço).

Não me parece que exista espaço para dúvidas. Qualquer mulher que aguente o acidente em que se tornou a vida de Daniel é a mulher certa. Murphy sabe-o. Sabe-o tão bem que continua a tentar construir algo com ela – para além do filho que já partilham. Sabe-o tão bem que quando experimenta o derradeiro episódio desse acidente – um conjunto de azares tão gravoso que de um sopro perde trabalho, relacionamento e custódia do filho – só encontra alívio no único elemento constante: o vício.

Sick Boy preferiu outra abordagem – permanente e total reinvenção. Não se trata, notem, de uma verdadeira reconversão, apenas a repetida e múltipla ilusão da mesma.

Simon ainda não saiu de Edimburgo, ainda não construiu uma vida estável e legítima, ainda não se libertou do passado – pelo menos daquela parte que deseja a todo o custo vingar-se de Mark. Ocupou, contudo, os derradeiros vinte anos a enredar-se na mesma ratoeira que em tempos criticava tão eloquentemente, servindo-se do (suposto) exemplo dado por figuras públicas do seu agrado: George Best ou Sean Connery.

Enfim. Em resumo, envelhecemos, a diversão acaba e não há nada a fazer…é isso?

Sim.

É essa a tua brilhante teoria?

Sim. Ilustrada na perfeição.

«No que diz respeito a perfeição, não sei se podemos confiar em Sick Boy, mas podemos e devemos recordar esta teoria quando reencontrarmos os nossos companheiros 20 anos mais tarde, em T2». – Escreveu-se.

Pois é Simon. Concordamos contigo, repara, mas também desconfiamos que a idade não é a melhor amiga da coerência. O mundo está recheado de gente que ocupou a juventude a censurar o desespero dos que a perderam, apenas para os substituir nessa comédia triste.

Este Simon busca paraísos perdidos na cocaína, no falso loiro que continua a dominar-lhe o cabelo e nos esquemas agiotas que arquitecta com a ajuda de uma jovem búlgara (Veronika), que ele gosta de considerar sua namorada. A realidade, porém, avisa-o (em crescendo) que Veronika é apenas uma «parceira de negócios», o loiro do cada vez mais parco cabelo dura cada vez menos e o seu único negócio tangível e credível é um bar decrépito no meio de nenhures, triste herança paterna.

Caso duvidem, Mark sobreviveu ao enfarte. Terá considerado o episódio, como nós, uma morte simbólica do seu exílio em Amesterdão e encetou um regresso nostálgico a Edimburgo.

Caso duvidem, a cidade que ele encontra está (muito) longe de ser a que ele abandonou. O peso dos anos e da gentrificação é visível logo à saída do aeroporto.

«Bem-vindo a Edimburgo», atira-lhe uma jovem com esforçada pronúncia escocesa.

Desculpe, de onde é?

Eslovénia.

Exacto.

Outras coisas – menos risíveis – também mudaram. Por exemplo, quando Renton partiu tinha dois pais. Agora, tem um. Quem está definitivamente ausente é a mãe (espelho de todas as presenças femininas na sua vida).

O final acabou por ser muito pacífico. Manteve sempre a esperança que voltasses, deixou o teu quarto tal e qual.

Sim, esse quarto. O mesmo onde se «curou» do vício, imaginava as inexistentes vitórias do seu clube do coração (Aberdeen no livro, Hibernian no filme) e ouvia os preciosos discos de Iggy Pop, rodeado pelas incontáveis locomotivas existentes no juvenil papel de parede.

Ensaia uma primeira audição de «Lust for Life».



De imediato se arrepende, retirando a agulha como se esta o picasse no braço. É isso mesmo, «Rents». Regressar ao passado é regressar a cemitérios.

Por falar neles, digamos que o esquema de extorsão de Simon e Veronika os pode colocar num a qualquer momento, embora também enterre reputações tidas como imaculadas – em resumo, a jovem búlgara satisfaz bizarrias sexuais de colarinhos brancos, desde que estas sejam filmadas pelas câmaras ocultas de Sick Boy. Este, num quarto anexo, vigia a possibilidade de qualquer coisa descarrilar. Se não for o caso, ficam na posse de uma excelente fonte de rendimentos (pelo menos enquanto uma das altas esferas não se decide a contactar a Polícia).

O esquema de Murphy tem mais parecenças com a Lei de Murphy. Tudo o que pode correr mal, correrá mal (encontramos simbolismo perfeito para a questão no número do seu apartamento degradado: 13). Esgotado, prepara uma carta de despedida para Gail.

Francis, pelo contrário, nunca lhe terá passado pela cabeça o suicídio. A única morte que ele deseja com todas as forças que lhe restam, é a de Mark Renton. Uma vez que dialogar com o «sistema» não funciona – Begbie, de qualquer modo, nunca foi de falinhas mansas – terá de enganar o «sistema», conceito muito mais familiar.

Um assustado e desajeitado companheiro de cela abre-lhe no fígado o passaporte para a fuga – como quem diz o hospital. No recobro, «Franco» simula fraqueza superior à que de facto o tolhe e convence o vigilante a descurar as apertadas regras de segurança.

Isto, caso restem dúvidas, é a pior notícia possível para os restantes membros da trupe (e todos os que se atravessarem no seu caminho).

Um dos conceitos que os criadores da saga sempre dominaram foi o da casualidade/causalidade, ou seja, a forma imparável como encontros e eventos casuais redundam em mudanças radicais na existência de todos (um espelho da vida).

Portanto, não é de admirar que Renton chegue ao apartamento de Spud no exacto momento em que este mergulha no precipício – situação que de certa forma encerra o ciclo iniciado no momento em que Daniel cumpriu a pena da qual Mark escapou e depois permitiu a fuga deste para Amesterdão, sendo por isso compensado com parte do saque. São dois amigos que se destroem e salvam em intervalos regulares.

Arruinaste-me a vida e agora arruinaste-me a morte!

Salvei-te a vida. E como é que te arruinei se te deixei quatro mil libras?

Por favor, Mark. Eu sou um drogado. O que te parece que um drogado faz com quatro mil libras?

Meu deus…

(…)

Vais ficar pela cidade?

Não, vim só por uns dias. Não voltes a tentar matar-te, ouviste?

Não. Pelo menos enquanto o meu amigo estiver por cá.

A visita seguinte de Mark não é tão calorosa.

Procurando responder à pergunta do prefácio, digamos que Mark construiu a perfeita vida burguesa na Holanda. Esposa holandesa? Confere. Filhos? Confere. Menino e menina? Confere. Trabalho corporativo bem pago? Confere.

A narrativa de Simon, nesse aspecto, é menos rosada. A mulher é feliz em Londres sem ele, muito obrigado e Sick Boy visita o filho regularmente, uma vez a cada dez anos. Bom, mas não percamos mais tempo com intróitos. Passemos à muito desejada violência física – tacos de bilhar nas costas e copos a voar é o mínimo que se pede, depois de tão longa espera.

Espectáculo que Francis Begbie não desdenharia observar – e sobretudo participar. Contudo, de momento está ocupado em invadir a própria casa por uma janela, assustando a mulher e acordando o filho. Seguem-se outros problemas. A virilidade parece dormente, como dormente (ou mesmo morto) está o desejo de Frank Jr. em seguir as pisadas criminosas do pai.

Hotelaria? Não brinques comigo. Amanhã saímos juntos num servicinho.

E quanto ao outro assunto…

Deixa lá Francis. O importante é que estás em casa.

Entretanto, Mark decide partilhar com Daniel nova teoria – talvez a sua tenha melhor futuro que as de Simon.

És um viciado, Spud. É a tua natureza. Portanto aceita e vicia-te, mas vicia-te noutra coisa, canaliza isso para algo construtivo.

O quê, já agora? Correr até cair para o lado?

(Ambos terminam com esforço uma corrida em Calton Hill, um dos locais mais panorâmicos da cidade).

Porque não? Mas podes fazer outras coisas. Conheço gente que se meteu no boxe.

Boxe? Eu?

É só um exemplo, Spud.

Qual foi o teu?

Estar sempre em fuga.

O plano de Sick Boy, por sua vez, ainda é vingar-se de Mark, mesmo depois deste lhe ter oferecido as quatro mil libras em falta assim que acordou do confronto físico entre ambos – salvo, ao que parece, por Veronika.

Para isso, convence o outro a despedir-se deles num bar, onde recorda vagas histórias da infância e adolescência de ambos, óbvia armadilha sentimental.

Lembras-te daquela rapariga com quem nos estreámos no sexo? E aquele primeiro assalto? E aquela primeira dose de heroína?

Para cada exemplo, Simon guardou uma pitada de ressentimento, um obscuro episódio que ensaia provar que Mark sempre «ganhou», sempre chegou em primeiro lugar e sempre ludibriou o amigo. Isto pode ou não ser verdade e mesmo que seja, ocorreu há demasiado tempo para que Renton se recorde ou sobretudo valorize. Demasiado atrás ficaram as horas com a «Madre Superiora» também conhecida como Swanney – até mesmo «superiores» resistentes à heroína conhecem o juízo final.

As desajeitadas e metafóricas lágrimas de crocodilo vertidas por Simon não encontram complacência em Mark, veterano em logros. Assim que o amigo executa uma retirada estratégica (aproveitando para cheirar mais uma dose de cocaína nos lavabos), Renton aborda uma – até agora – silenciosa Veronika.

Quer dizer que tu és o plano B?

Sim.

Ele vai tentar convencer-me a entrar num negócio com ele, não é?

Sim.

Quando Sick Boy regressa, encontra o mesmo de há vinte anos. Um Renton indiferente e ausente.

Como é que o deixaste ir embora?

Ouve Simon…

Não o podias deixar ir, tenho de me vingar.

Veronika abandona-o ao rancor.

Estão a olhar para onde? O fulano roubou-me 16 mil libras!

Todavia e apesar das aparências, é provável que o «plano B» de Simon contenha qualquer coisa útil. Uma cenourinha chamada Veronika.

Voltaste?

Sim.

Não foi por acaso à conta da Veronika, pois não?

Não.

Ainda bem, porque ela é minha namorada.

Eu sei.

Óptimo.

Talvez a causa seja Veronika, talvez não. Talvez um bocadinho. Talvez outro bocadinho tenha sido, enfim, a não tão rosada existência de Mark em Amesterdão.

Vou divorciar-me, ia regressar só para trazer o resto das coisas, a casa é dela.

Estou a ver. E as crianças?

Não existem.

Como? O teu casalinho maravilha…

Não existe. E o emprego, bom, vamos ser absorvidos por um gigante e vão extinguir o meu cargo, está-se mesmo a ver.

Hum.

Para além disso, há pouco tempo tive uma espécie de enfarte súbito, mas o médico diz que vou ficar óptimo, que tenho mais 30 anos pela frente. Como é que se lida com isto? Se o fulano me dissesse mais três, tudo bem, inventava-se qualquer coisa, mas 30? Tenho 46 anos, o que vou eu fazer à vida?

Bem, Mark…podes sempre fingir que é possível viver no passado.

Nada que os restantes não estejam a fazer, note-se. Tomemos o exemplo de Francis Begbie, a caminho de um assalto a uma residência luxuosa enquanto arrasta o filho pelos cabelos – neste caso e só por acaso, em sentido figurado.

Existem várias razões para a noite correr mal:

 – Um, Begbie está vinte anos mais velho;

 – Dois, Frank Jr. não possui – felizmente para ele – os talentos do pai para o crime.



Apesar de tudo, saem ilesos e com algum lucro da operação, uma vez que «Franco» reactivou o contacto com Mikey Forrester. Exacto, esse Mikey Forrester, o traficante escorregadio que nos idos de 1996 sobrevivia de pequenos esquemas, como vender supositórios de heroína a Renton ou encontrar marinheiros russos ansiosos por se livrarem de pacotes suspeitos (episódio que redunda no lucrativo negócio londrino que encerra o primeiro filme).

De certo modo, Forrester (representado por Irvine Welsh, autor dos livros) é um dos poucos que já se libertou do passado – abandonando o consumo de drogas em colchões infectos e quartos degradados para se dedicar ao contrabando de material de luxo (proveniente de roubos que ele não efectua).

A julgar pela qualidade dos fatos que agora enverga, a coisa não estará a correr mal.

Por outro lado, os golpes mirabolantes planeados por Simon e Renton, coadjuvados por Veronika, têm enorme potencial para o desastre.

Tudo começa quando uma das vítimas da extorsão de Sick Boy ganha enfim coragem para relatar tudo à Polícia. A partir daqui, este precisa de um advogado e para isso há que ter um bom pé-de-meia. Uma vez que os trocos angariados acabaram no nariz (depois de transformados em cocaína) e não nas meias de Simon, é tempo da parelha fazer o que melhor sabe: enganar tolos.

Neste contexto, um óptimo grupo alvo é (por exemplo) uma congregação de protestantes nacionalistas fanáticos – sabem, daqueles que vivem em 1619, vestem roupas coloridas com muitos símbolos patriotas e adoram música country. Isto claro, quando se reúnem de forma vagamente secreta em locais ermos, para beber sem freio e do freio retirarem a ignorância. Retiram também os casacos, onde se encontram carteiras onde se encontram cartões de crédito. Se dois rapazes meio loucos se incorporarem na penumbra, está ali uma oportunidade.

Se não voltarmos daqui a uma hora, liga para a Polícia.

E digo-lhes o quê?

Que estamos mortos.

Mortos ainda não estão mas, de bolsos já recheados, é provável que fiquem se não provarem ao segurança – e aos restantes – que fazem efectiva parte do grupo. Nestas coisas que metem vida e morte, uma canção ajuda sempre.

Eu não sei tocar piano.

Toca aqueles acordes que fazias no teatrinho da Escola Primária.

Certo. Agora, resta a Mark pensar numa letra. Vejamos, qualquer diatribe contra os Católicos vinha a calhar. Portanto…

Etc., etc., todos os Católicos morreram, pardais ao ninho, todos os Católicos morreram, por aí fora coisa e tal, todos os Católicos morreram.

Missão cumprida.

Falar em sucesso é, para eles, falar em George Best, sem notarem (sobretudo Simon) que de acordo com a sua longínqua e periclitante teoria, para Best como para eles, os tempos de «glória» já se foram.

Quem diz George Best, diz Sean Connery ou a era pré-digital, certos cortes de cabelo, certo tipo de roupas, certo tipo de música, certo tipo de drogas ou em geral uma sociedade imbuída numa certa filosofia e um específico tipo de sonhos que só resiste na memória de quarentões desesperados – coisa que ambos juraram, vinte anos antes, nunca se tornar.

Simon e Mark ainda não perceberam. Talvez em búlgaro seja mais fácil:

Vocês dois não sabem nada e nada entendem. No meu país o passado é coisa destinada a ser esquecida. É só disso que falam e é só nele que vivem. Gostam tanto dele e um do outro que deviam despir-se e fazer qualquer coisa juntos.

Deixa lá, Veronika. Tudo a seu tempo.

Por agora, Renton contenta-se em observar aquela gravação onde tu comprometes um professor universitário (conhecendo Danny Boyle, não é decerto à toa que as imagens são musicadas por «Deep Blue Day» de Brian Eno, a mesma escolha associada ao famoso mergulho na sanita, parte integrante do primeiro filme).

Se o vício destes dois parece estar a ser canalizado para a nostalgia, o de Spud – mais ou menos a conselho de Renton – ensaia redenção no boxe. Mau grado todo o optimismo que Daniel coloca nos gestos, a realidade encarrega-se muito rapidamente de o esbofetear. O efeito desse estalo é tão poderoso que lhe permite até ganhar ulterior consciência que a rua onde se encontra o clube desportivo é a mesma que eles um dia atravessaram, em célebre fuga às autoridades – a tal onde Renton escapou ao atropelamento e à prisão, ao contrário dele.

E por vezes, a pena é mais poderosa que a espada (ou que a luva de boxe).

Gail fornece-lhe a matéria-prima: fotografias, cartas, apontamentos, recordações. A juventude cabe num saco de plástico.

É chegado o tempo de Daniel Murphy falar (ou escrever) do mesmo modo que alguém terá de calar Francis Begbie. Calar-lhe a frustração, o ódio e a crise de meia-idade.

De momento, a mezinha parcial é lidar com a recusa do filho em ser como ele. São conhecidas as dificuldades de «Franco» com a racionalidade, mas há que começar por algum lado, nem que para isso Frank Jr. tenha de se fazer homem.

Por esta altura, perguntarão: o que é feito de Diane?



Diane Coulston, adolescente esclarecida que se fez interesse amoroso de Mark Renton em tempos idos, terá mantido com este um relacionamento suficientemente importante para que ele ainda conserve o seu contacto, mas não o bastante para redundar em mais do que isso. Simon, que naquele tempo se atreveu a fazer-lhe propostas indecentes, terá agora de estar grato por ela ter seguido advocacia, muito bem paga por sinal.

Em princípio safa-se, se cumprir à risca o que aconselho. Ele ainda consome heroína?

Não.

E tu?

Também não.

Ainda bem. Estes são os meus honorários.

Parecem muito aceitáveis.

Essa quantia é por hora.

Ah, certo.

E depois, à saída:

É tua namorada?

Não faço comentários.

É muito nova para ti, Mark.

(Anedota privada, lógica apenas para quem conhece o primeiro filme).

Quanto a Simon, digamos que está carente da ajuda de todos, ou dito de outro modo, todos se ajudam se ajudarem Simon. Por exemplo:

 – Se Veronika o ajudar a montar um bordel/sauna no primeiro piso do velho bar, encontra o caminho que a leva para fora da prostituição;

 – Se Mark colaborar, reactiva a velha amizade com ele e poderá acender qualquer coisa com ela;

 – Se Daniel se desdobrar em decorador/remodelador com a ajuda dos colegas do grupo de apoio, encontra o caminho que o leva para longe do suicídio e para perto de Gail.

A única coisa que, neste momento, poderia estragar tal fenómeno de reabilitação colectiva seria a chegada serpenteante de alguém como Francis Begbie.

«Franco»?

Olá Simon. Estou em casa.

É possível que, por meros instantes, o sangue nas veias de Sick Boy tenha ficado tão gelado como a cerveja que ele acaba de servir.

Por outro lado, quem encontra a presença de espírito necessária à criação de um improviso que o retire das mãos assassinas de um grupo de nacionalistas, também pensa numa patranha ou duas para escapar à possível e provável fúria de Begbie.

Portanto, deparo-me com o fulano, que me conta o quê? Não adivinhas? O nosso velho amigo está a viver em Amesterdão.

Não me digas.

É isso mesmo, «Franco». Mais, se te mantiveres fora dos radares por uns dias, consigo arranjar-te um passaporte para a Holanda, de modo a obteres a tua merecida vingança.

É verdade. Não podes enganar todos para sempre, mas podes enganar alguns durante algum tempo. Veremos quanto.

Enquanto esperamos, observemos também quanto tempo passa até Renton seduzir Veronika – o que se torna bastante fácil quando o objecto de sedução pede para ser seduzido. O salvo-conduto chega, porém, de fonte inesperada.

O que quer dizer «Choose Life» (Escolhe a Vida)?

O quê?

Escolhe a Vida. O Simon está sempre a dizer isso: «Escolhe a Vida, Veronika».

(Desafiamos qualquer aficionado do primeiro filme a não abrir o mesmo sorriso que invade o rosto de Mark).

«‘Choose life’ was a well-meaning slogan from a 1980’s anti-drug campaign and we used to add things to it, so I might say for example, choose… designer lingerie, in the vain hope of kicking some life back into a dead relationship. Choose handbags, choose high-heeled shoes, cashmere and silk, to make yourself feel what passes for happy. Choose an iPhone made in China by a woman who jumped out of a window and stick it in the pocket of your jacket fresh from a South-Asian Firetrap.

Choose Facebook, Twitter, Snapchat, Instagram and a thousand others ways to spew your bile across people you’ve never met. Choose updating your profile, tell the world what you had for breakfast and hope that someone, somewhere cares. Choose looking up old flames, desperate to believe that you don’t look as bad as they do. Choose live-blogging, from your first wank ’til your last breath; human interaction reduced to nothing more than data. Choose ten things you never knew about celebrities who’ve had surgery. Choose screaming about abortion. Choose rape jokes, slut-shaming, revenge porn and an endless tide of depressing misogyny.

Choose 9/11 never happened, and if it did, it was the Jews. Choose a zero-hour contract and a two-hour journey to work. And choose the same for your kids, only worse, and maybe tell yourself that it’s better that they never happened. And then sit back and smother the pain with an unknown dose of an unknown drug made in somebody’s fucking kitchen.

Choose unfulfilled promise and wishing you’d done it all differently. Choose never learning from your own mistakes. Choose watching history repeat itself. Choose the slow reconciliation towards what you can get, rather than what you always hoped for. Settle for less and keep a brave face on it. Choose disappointment and choose losing the ones you love, then as they fall from view, a piece of you dies with them until you can see that one day in the future, piece by piece, they will all be gone and there’ll be nothing left of you to call alive or dead.

Choose your future, Veronika. Choose life».

Ou, em Português:

«’Escolhe a Vida’ era um chavão cheio de boas intenções retirado de uma campanha antidrogas ocorrida nos anos 80 e nós costumávamos adicionar coisas. Agora podia lembrar-me de dizer, por exemplo, escolhe… roupa interior de marca na esperança inútil de reavivar uma relação morta. Escolhe malas de mão, escolhe saltos altos, cachemira e seda de modo a simulares felicidade. Escolhe um iPhone feito na China por uma mulher que saltou de uma janela e guarda-o no bolso do teu casaco acabadinho de chegar de uma fábrica de escravos no Sudoeste Asiático.

Escolhe Facebook, Twitter, Snapchat, Instagram e mil e uma maneiras de cuspires o teu fel nos perfis de pessoas que nunca viste. Escolhe actualizares o perfil e partilhar com o mundo o teu pequeno-almoço na esperança que alguém, nalgum lado, se interesse. Escolhe procurar velhos casos amorosos, desejoso de confirmar que não envelheceste tanto como eles. Escolhe vídeos em directo, da primeira masturbação ao último suspiro, reduzindo a interacção humana a algoritmos. Escolhe descobrir as dez coisas que ainda não sabias sobre celebridades que fizeram cirurgia estética. Escolhe protestar contra o aborto. Escolhe fazer piadas sobre violações, censura moral, pornografia de vingança e uma infinita e deprimente maré de misoginia.

Escolhe acreditar que o 11 de Setembro nunca existiu e a existir a culpa foi dos judeus. Escolhe recibos verdes e duas horas de sinais vermelhos até ao trabalho. E o mesmo para os teus filhos, só que ainda pior, enquanto murmuras para ti mesmo que talvez fosse melhor se eles nem tivessem nascido. E depois, recosta-te e afoga a dor com uma dose misteriosa de uma misteriosa droga feita na cozinha insalubre de um desconhecido.

Escolhe promessas por cumprir e desejar que tudo tivesse sido diferente. Escolhe nunca aprender com os erros. Escolhe ver a História a repetir-se. Escolhe aceitar lentamente aquilo que podes ter, em lugar daquilo que sempre sonhaste. Aceita o que há e aceita-o com um sorriso. Escolhe desilusão e perder todos os que amas. E à medida que desaparecem, levando com eles um pedaço de ti, entender que um dia não restará ninguém e nada em ti estará vivo ou morto.

Escolhe o teu futuro, Veronika. Escolhe a Vida».

Os sentimentos que viajam no rosto da jovem búlgara são talvez mais complexos do que se possa pensar numa primeira análise (tal ficará claro mais adiante), mas por agora são os suficientes para ela balbuciar um «simpatizo contigo, Mark».

Renton, que se deixou enredar numa curta e dolorosa viagem melancólica, parecendo disso arrepender-se quase de imediato, encobre com dificuldade as emoções latentes:

Enfim. Na altura fazia-nos rir.

Quanto ao improvisado e renovado discurso, muitos o consideram fraco quando comparado com o original – e estão certos – mas até isso nos parece adequado ao momento que este T2 pretende capturar. Trata-se de um sinal dos tempos e também um sinal dos tempos particulares destas personagens, símbolos de uma geração à beira de mergulhar na crise de meia-idade. A maior palidez das palavras, ou da força crítica/transformadora equivale à palidez/desencanto de quem as profere.

E nesse sentido, o simbolismo é perfeito.

Por falar nisso, haverá maior do que este, profetizado por Diane?

No momento em que Veronika arrasta Mark para o quarto, estamos a vê-lo vinte anos antes, quando Diane fez o mesmo. Quando a búlgara tomba nua na cama, este ensaia um regresso impossível, ainda mais constrangedor por todos – incluindo os participantes – saberem disso.

Se Renton procura em vão o passado, Spud procura com afinco o futuro (sóbrio) através desse mesmo passado – recorrendo a uma escrita frenética que regista em blocos A4 cada pequeno detalhe preso na memória.

Durante o dia, remodela o bar de Simon. Durante a noite, reconstrói as lembranças de todos.

É sem dúvida esse processo que o leva a recordar Tommy – o elemento saudável do grupo arrastado para o consumo exagerado por um conjunto de circunstâncias, opção que se revelou fatal, aos 23 anos.

Apesar de ser acompanhado nessa viagem física por Mark e Simon – a reprodução de uma imagem icónica do primeiro filme mostra-nos aquele apeadeiro desértico que precede a breve caminhada pelas montanhas – cedo fica evidente que Daniel é o único que está de facto imbuído pelo espírito de homenagem.

É ele quem mostra o caminho, é ele quem «observa» um jovem Tommy a desaparecer no trilho, é ele que leva as flores e as coloca solenemente em local específico.

Deixados para trás (ou para trás deixando-se ficar), Mark e Simon debatem a natureza do gesto.

Desculpa que te diga, Mark, mas não estou a sentir. Respeito e tal, mas sinceramente para mim não funciona. Foi há muito tempo, éramos jovens e idiotas, ponto final.

Vá lá, Simon. Estamos aqui a prestar tributo.

O diabo é que estamos. Vieste porque acabaste de ter uma experiência quase fatal e de repente estás todo quentinho e comovido. Nostalgia. É só isso. Estás a fazer de turista nas memórias da tua juventude.

(…)

Ou queres que te recorde aquilo que de facto matou o Tommy? Quem é que lhe vendeu a primeira dose de heroína, gesto que levou à dependência, que por sua vez provocou o HIV que redundou na sua morte? Que tal isso como homenagem?

Muito bem. Esse carimbo é meu. E tu? Podes falar? Não tens nada de que te arrependas? Não há uma certa bebé (Dawn) que hoje em dia seria mulher adulta, se calhar mãe de vários filhos? Uma certa bebé que morreu porque o pai estava demasiado drogado para verificar se ela ainda respirava no berço?

(…)

Então fiquemos por aqui.

Tal como no renovado discurso de Mark (Escolhe a Vida), a História está condenada a repetir-se – e nós como actores da mesma. Tal como há vinte anos, a catarse provocada pela caminhada força-os a «uma última dose». Renton tem passado a vida a relembrar-nos: existem «últimas doses» e últimas doses. A qual nos referimos?

Como sempre, é pergunta sem resposta.

Algo mudou, contudo. Daniel Murphy, na prática o único que oficialmente ainda é considerado drogado é também o único do trio que não cede à tentação.

Vinte anos obrigam, é verdade, a algumas alterações. O Mark Renton que em tempos «mergulhou» numa sanita fétida, parte integrante da «pior casa de banho da Escócia», não é o mesmo que agora se agonia perante a visão de um par de retretes menos imaculadas. Para além disso, em breve terá coisas mais graves com que se preocupar.

É que, reparem, Renton ainda está convencido que Begbie está preso e Francis ainda está convencido que Mark está na Holanda. Simon terá qualquer coisa a dizer sobre isto.

Contudo, o mundo é na verdade (muito) pequeno e ambos estão apenas separados por um frágil painel em madeira – a divisória entre dois compartimentos, na casa de banho da mesma discoteca.

Revelado o mistério – à conta de hilariantes circunstâncias – é bom que Mark ainda consiga correr, pelo menos enquanto Francis salivar de ódio assassino.

Depois de uma primeira fase, a perseguição recupera fôlego num parque de estacionamento – Begbie cheira o ar, de lâmina em punho e Renton refugia-se entre um veículo e a parede.

A fortuna talvez o acompanhasse, mais uma vez – como sabemos, Mark Renton sempre foi um «tipo com sorte» – não fora a sempre atempada desajuda de Simon (de certa forma coerente com parte do seu desejo). Ao telefonar na pior das horas, denuncia-lhe a posição e despoleta a segunda fase do processo.

Nela, Mark salta para o tejadilho de um carro em movimento e escapa de Francis «apenas» com o antebraço esquerdo superficialmente aberto por uma facada.

Se (tal como ele) estávamos ansiosos por uma alucinante viagem nostálgica, este é o momento.

Francis Begbie, no final, pode não ter abocanhado a presa mas entendeu aquilo que nenhum comprimido de Viagra confessaria: é a violência que lhe aquece o sangue.

Em contraste, o sangue de Mark e Simon depressa se enregela. Expliquemos.

No dia seguinte, enquanto debatem quem sabia o quê e quem quis prejudicar quem nos últimos tempos, são amigavelmente forçados a entrar num daqueles veículos em que não devemos entrar, apenas para terminarem a viagem num ermo que pode muito bem ser o local das respectivas sepulturas – caso não colaborem.

Com quem? Obviamente com Doyle, que é assim uma espécie de «Rei das Saunas», como quem diz o líder local do negócio da prostituição de (relativo) luxo. O Sr. Doyle requisita uma coisa muito simples. Os dois «falhados» a quem deu «boleia» terão de abdicar daquele tipo de actividade – uma vez que ele não está interessado em concorrência. Se chegarem a um entendimento, serão deixados sem roupa e sem transporte, mas vivos.

É um problema, porque Simon e Mark já tinham obtido fundos na ordem dos 100 mil euros por parte da UE, graças a mais uma prestação muito convincente na área do logro.

Por outro lado, há diversas coisas que se podem fazer com 100 mil euros, sobretudo quando a vida continua.

Vida essa que se resume a uma frase lapidar, cortesia de um cada vez mais inspirado Daniel Murphy, mais conhecido como «Spud»:

Primeiro, surgiu uma oportunidade. Depois, uma traição.

Antes de mostrar a profusão de escritos e relatos a Gail – ou a alguém mais profissional – coloca alguns debaixo da porta de Veronika (a primeira a inspirá-lo para a escrita).

No entanto, em vez de ouvir a opinião da mais recente amiga, é visitado por um velho amigo, que nunca foi muito amigável e está mais colérico que nunca (em relação a Francis Begbie, quanto mais calmo se apresenta, mais perigoso se revela).

Onde está ele? Não perguntes «quem» e não digas «não sei».



A Spud não resta outra solução que não seja falar, mas sobretudo através daquilo que já disse nas folhas A4 que espalhou pelas paredes do apartamento. Francis retira uma após outra, ficando surpreendentemente agradado com os excertos que o mencionam.

Um, em particular, obriga-o a fazer algo que talvez nunca tenha conseguido (por manter o espaço mental sempre atulhado de ódio e ressentimento): reflectir sobre si próprio.

Numa certa noite acabámos numa estação de comboios desactivada e deserta. Divagando, procurava um sítio para me aliviar quando ouvimos a voz de um velho indigente, decerto alcoolizado: «O que estão aqui a fazer? Vieram ver os comboios a passar?». Apercebi-me que se tratava do pai de Francis.

Begbie retira-se para um último copo e volta poucos minutos depois, para azar de uma Veronika que tencionava felicitar Daniel pelo bom trabalho.

Depressa se vê obrigada a negociar a vida de ambos em troca do telemóvel (precioso porque contém os números de Simon e Mark). Como se perceberá em breve, não será o seu último negócio.

Begbie faz, por outro lado, a sua última visita a casa, por uma vez imbuído de uma calma genuinamente inofensiva.

Vou ter que resolver um último assunto e depois é provável que nunca mais me vejam. Quero apenas desejar-te boa sorte, filho. Segue a tua vida e torna-te num homem muito melhor que eu ou o teu avô alguma vez fomos.

O assunto que Francis tem em mãos resume-se à armadilha que montou a Simon e Mark, ao pedir-lhes para se encontrarem com ele no bar do primeiro (ambos comparecem julgando tratar-se de Veronika e provando que mais uma vez tencionavam trair-se, ficando com a totalidade do dinheiro e com a «menina»).

Primeiro, surgiu uma oportunidade. Depois, uma traição…

…Volta a murmurar Spud, que correu sem freio ao seu encontro numa vã tentativa de evitar o inevitável. Notem, também ele se enredou naquela espécie de aforismo ao «negociar» com Veronika parte dos 100 mil euros (que ela deverá entregar a Gail) como agradecimento por Daniel ter forjado as assinaturas de Mark e Simon num documento que autoriza a transferência do dinheiro para a conta da jovem búlgara.

Aqui, recordemos um instante parte do novel discurso de Mark.

 – Daniel «aprendeu com os erros» – em vez de aceitar parte do saque (sujeito a mais uma vez desperdiçá-lo), ofereceu-o às pessoas que ama: a ex-mulher e o filho adoptivo.

 – Veronika «escolheu a vida», ainda que à conta deles – já que comprovadamente eram incapazes de ser leais (a si mesmos, um ao outro e a ela), denúncia que Mark já fizera antes.

É decerto por isso que nenhum dos três se enfurece com os restantes. Conhecem-se, reconhecem a justiça e lógica do sucedido, admitem enfim que terão de viver consigo próprios e uns com os outros, continuando aquele longo processo de reabilitação.

Antes, porém, terão de resolver um derradeiro (e grave) problema: Francis Begbie.

Em resumo:

 – Simon é deixado inconsciente – «lido contigo mais tarde»;

 – Daniel é poupado, ao tombar de joelhos;

 – Mark coloca-se mais uma vez em fuga.

Desta vez, contudo, a sorte parece tê-lo abandonado. O primeiro andar é sem saída, a janela muito alta para tentar um salto. Francis empurra-o através do soalho parcialmente desfeito e, na queda, Renton deixa-se enlear por um cabo eléctrico. Quem diz enlear, diz enforcar.

É possível que, por um segundo, o rosto de «Franco» tenha permitido algo semelhante a misericórdia. Todavia, este depressa a substitui por alívio. Um imenso e por demais aguardado alívio ao estar enfim perante a vingança consumada: a morte de Mark Renton às suas mãos.

Isto, claro, se os restantes não puderem evitá-lo.

Simon é o primeiro a reagir, cegando o outro com gás pimenta (que costumava usar quando tinha de proteger Veronika). Francis não cede e retira do saco uma caçadeira de canos serrados.

É então que intervém o mais tímido e inesperado dos heróis – por fim liberto do medo:

Daniel «Spud» Murphy.

É o seu golpe eficaz (servindo-se curiosa e ironicamente de uma sanita) que derruba Begbie. Dali, este é arrastado para a bagageira do carro de Simon e deixado à porta do local de onde nunca deveria ter saído: a prisão.

Onde estiveram as oportunidades para tipos como eu (entenda-se, com poucas capacidades académicas)? Em lado nenhum. Só obtive o que pude agarrar à lei da bala.

Enquanto esmurra o porta-bagagens, Francis Begbie sabe – de uma vez por todas – que nunca se libertará de uma prisão chamada Francis Begbie.

Simon «Sick Boy» Williamson também cumpre pena. Uma feita de melancolia e desespero, confirmada todos os dias, pontualmente, quando abre a porta daquele bar.

Veronika voltou a casa – seguindo o exemplo de Mark – para tentar, como ele, curar a relação com as pessoas que mais importam (no caso dela, o pequeno filho).

Mark «Rent Boy» Renton sobe com passos lentos e dolorosos as escadas da sua casa de infância, aguardado no cimo das mesmas por um pai disponível para o definitivo perdão.

Daniel «Spud» Murphy espera com desconfiança a opinião de Gail acerca dos famosos escritos.

Parece que ele está a escrever as memórias da nossa juventude.

A sério?

Sim.

O Murphy?

Sim.

Mas quem é que vai ler uma porcaria dessas?

É esse o problema. Ninguém.

Gail, contudo, tem visão diferente.

Pensei num título.

E agora sim, caro Mark. Agora, estás pronto para voltar a ouvir «Lust for Life».



Venham de lá esses derradeiros 30 anos.

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