Honoré de Balzac

Viveu entre 1799 e 1850. Romancista e dramaturgo. A compilação em 24 volumes de um conjunto intitulado «A Comédia Humana» – que retrata a sociedade francesa no período pós-Napoleónico – é geralmente considerada a sua magnum opus.

À conta da sua eficaz atenção ao detalhe e capacidade para retratar a sociedade onde se movia sem filtros, Balzac é considerado um dos fundadores do Realismo na Literatura Europeia. Um dos principais atributos é o seu talento para construir personagens multifacetadas, até mesmo quando estas são secundárias. De uma forma geral, qualquer personagem de Balzac é complexa, moralmente ambígua e totalmente humana. Os seres e objectos inanimados são também eles donos de uma personalidade específica, com destaque para a cidade de Paris – palco de muitos dos seus enredos. A sua escrita influenciou inúmeros autores famosos, tais como Émile Zola, Charles Dickens, Gustave Flaubert ou Henry James. Podemos ainda acrescentar o cineasta François Truffaut ou os filósofos Friedrich Engels e Karl Marx. Muitos dos seus livros foram transformados em filmes e continuam a inspirar novos autores.

Leitor entusiasmado e pensador independente na infância, Balzac encontrou dificuldades para se adaptar ao estilo de ensino da sua escola. O temperamento rebelde valeu-lhe diversos problemas ao longo da vida e cerceou-lhe o objectivo de vingar no mundo corporativo. Após os estudos, o autor iniciou-se num escritório de advogados, mas depressa desistiu, cansado da insensibilidade e monotonia associadas à função. Antes e ao longo da sua carreira como escritor, tentou ainda ser editor, gráfico, empresário e político: fracassou em todas as áreas. «A Comédia Humana» aborda estas dificuldades e relata inclusive alguns episódios pessoais.

Balzac padeceu de diversos problemas de saúde ao longo da vida, decerto provocados pelo seu intenso ritmo de escrita. A relação com a família foi constantemente afectada por imprevistos pessoais e financeiros, tendo ainda perdido vários amigos à conta de críticas literárias.

Em 1850, o autor casou-se com Ewelina Hańska, uma aristocrata polaca e seu eterno amor. Faleceu em Paris cinco meses depois.

 

Honoré de Balzac é proveniente de uma família cujo mote passava por atingir um estatuto respeitável à conta do trabalho e da dedicação. O pai, Bernard-François Balssa, era uma de onze crianças descendentes de uma família de artesãos originária de Tarn, região do sul de França. Em 1760, este partiu em direcção a Paris com apenas uma moeda no bolso, decidido a melhorar a sua condição social. Dezasseis anos depois, tornara-se Secretário do Conselho do Rei e membro da Maçonaria (mudara também o nome para um mais sonante «Balzac», tendo o filho acrescentado – sem que isso tenha sido reconhecido oficialmente – o auxiliar «de»). Depois do período politico conhecido como «Reino do Terror» (1793-94), o pai foi destacado para Tours, de modo a coordenar o envio de mantimentos para o Exército.

A mãe do autor, Anne-Charlotte-Laure Sallambier, era proveniente de uma família de alfaiates e retalhistas, em Paris. A situação financeira parece ter sido um factor de peso na união, uma vez que esta tinha meros 18 anos na altura do casamento enquanto o marido tinha 50. Analistas consideram que:

Esta estava, decerto, penosamente consciente que tinha sido oferecida a um velho para saldar um conjunto de serviços profissionais que este fizera a um amigo da família e que o dinheiro era o seu maior aliado. Não estava apaixonada pelo marido.

Honoré (nome escolhido a partir do aniversário do bispo Saint-Honoré de Amiens, que se comemora a 16 de Maio, quatro dias antes do nascimento do autor) foi o segundo filho dos Balzac – exactamente um ano antes nascera Louis-Daniel, que sobreviveu apenas um mês. As irmãs de Honoré, Laure e Laurence, surgiram em 1800 e 1802. Por fim, chegou o irmão mais novo, Henry-François, em 1807.

Em criança, Balzac foi enviado para uma ama-de-leite, sendo acompanhado mais tarde pela irmã Laure. Ambos passaram os quatro anos seguintes fora de casa. (Apesar da obra «Émile», do filósofo Jean-Jacques Rousseau, ter convencido muitas mães da época a criar os próprios filhos, o envio de recém-nascidos para amas-de-leite ainda era prática comum entre as classes mais altas). Quando as crianças regressaram a casa, os pais mantiveram delas uma distância fria, situação que afectou significativamente o futuro autor. O seu romance de 1835, «Le Lys dans la vallée» contém uma cruel governanta, Miss Caroline, inspirada na própria ama de Balzac.

Com dez anos, foi enviado para uma Escola de Oratória em Vendôme, onde estudou até aos 17. O pai, procurando incutir no filho a mesma ética de esforço e trabalho que lhe tinha valido a estima da sociedade, dava-lhe pouco dinheiro de bolso, tornando-o objecto de troça entre os colegas, muito mais ricos.

Balzac encontrou também dificuldades para se adaptar ao método de ensino, baseado em técnicas de memorização. À conta disso, era com frequência enviado para a «alcova», uma divisão punitiva reservada para os alunos desobedientes. (O funcionário auxiliar da instituição, ao ser-lhe perguntado mais tarde se tinha memória de Honoré, respondeu: Se me recordo do senhor Balzac? Sem dúvida! Tive a honra de escoltá-lo até à masmorra mais de 100 vezes!) Apesar disso, o tempo que passava isolado ofereceu ao jovem estudante ampla liberdade para ler inúmeros livros.

O autor incorporou mais tarde estes episódios de juventude – a par de muitos outros da vida pessoal e alheia – na mencionada obra «A Comédia Humana». O período em Vendôme está reflectido em «Louis Lambert», um romance de 1832 acerca de um jovem rapaz que estuda numa instituição semelhante, na mesma localidade. Afirma o narrador:

Devorava todo o tipo de livros, alimentando-se indiscriminadamente de obras religiosas, históricas e literárias, passando ainda pela Filosofia ou pela Física. Chegou a confessar-me que conseguiu descobrir um prazer improvável na leitura de dicionários, quando lhe faltava outro género de leitura.

Balzac adoecia com frequência, forçando enfim o director a contactar a família, informando que o aluno tinha caído «numa espécie de coma». Quando este regressou a casa, a sua avó comentou:

Vejam em que estado são devolvidos os anjos que enviamos para a Academia!

O jovem atribuiu a sua condição a uma espécie de «esgotamento intelectual» mas é evidente que os períodos extensos passados na «alcova» tiveram forte influência no caso. (Entretanto, o pai estivera a escrever um Tratado acerca dos «meios para a prevenção de roubos e assassinatos, bem como para a recuperação dos autores de tais crimes, transformando-os em elementos úteis para a sociedade», trabalho no qual confessava desprezo pelo cárcere enquanto solução para tais problemas).

Em 1814, a família mudou-se para Paris e Honoré foi enviado para tutores e escolas privadas, durante dois anos e meio. Revelou-se um período infeliz da sua vida, durante o qual chegou mesmo a tentar o suicídio ao saltar de uma ponte sobre o rio Loire.

Em 1816 Balzac ingressou na Sorbonne, onde foi instruído por três professores famosos: François Guizot, que mais tarde viria a ser Primeiro-Ministro, era o professor de História Moderna; Abel-François Villemain, chegado recentemente do Collège Charlemagne, ensinava Francês e Literatura Clássica; por último, o elemento com mais relevância no futuro do autor: Victor Cousin, professor de Filosofia que encorajava os alunos a serem livres pensadores.

Terminados os estudos, Balzac foi persuadido pelo pai a imitá-lo na carreira de advogado. Durante três anos, ganhou experiência nos escritórios de Victor Passez, um amigo da família. Nesta fase, o autor começou a entender os caprichos da natureza humana. Num romance de 1840, «Le Notaire», explica que um jovem que lide com o Direito presencia «as engrenagens escorregadias da fortuna, a histeria hedionda dos herdeiros em redor de cadáveres ainda quentes, o coração humano enredado no Código Penal».

Em 1819, Passez sugeriu que o jovem se transformasse no seu sucessor, mas este estava enfadado com o Direito. Desesperava ao considerar-se «um escrivão, uma máquina, uma fraude, obrigado a comer, beber e dormir a horas certas. Forçado a ser como todos os outros. É isto que consideram viver, uma existência escrava, repetindo as mesmas coisas todos os dias…tenho fome e nada me oferecem que acalme o meu apetite». Anunciou então o seu objectivo de ser escritor.

Ao desperdiçar aquela oportunidade laboral, Balzac provocou um tumulto entre a família, embora não tenha sido totalmente ostracizado. Em vez disso, em meados do mesmo ano, foi autorizado a ficar na capital francesa «num recanto decorado de forma espartana, com uma pensão miserável e uma idosa a prestar-lhe assistência básica», enquanto o resto da família se mudava para outra casa a 32 kms de Paris.

O projecto inicial do autor foi um libreto para uma ópera cómica chamada «Le Corsaire», baseada num texto de Lord Byron com o mesmo nome. Contudo, apercebendo-se que teria dificuldades em arranjar um compositor, desviou a atenção para outros objectivos.

Em 1820 Balzac concluiu «Cromwell», uma tragédia em verso em cinco actos. Apesar de estarmos perante um texto fraco quando comparado com trabalhos posteriores, alguns críticos já o consideram aceitável. Ao terminá-lo, o autor deslocou-se a Villeparisis e leu-o na totalidade à família: não os convenceu. Deu então início a novos projectos (sem no entanto os concluir): três romances, intitulados «Sténie», «Falthurne», e «Corsino».

No ano seguinte conheceu o empreendedor Auguste Le Poitevin, que o convenceu a escrever contos, (depois de concluídos seriam apresentados por este aos editores). No entanto, Balzac depressa regressou a trabalhos de maior fôlego, tendo escrito cerca de nove romances até 1826, todos eles publicados sob pseudónimos e escritos muitas vezes em colaboração com outros autores. Um exemplo é o escandaloso «Vicaire des Ardennes» (1822) – banido por descrever relações quase incestuosas e conter entre as personagens um padre casado – cujo autoria foi atribuída a um tal de «Horace de Saint-Aubin». Todas estas obras eram de cariz comercial, trabalhadas para vender rapidamente e provocar a curiosidade dos leitores. Na opinião de alguns, as mesmas são «curiosamente, cativantemente, envolventemente más». Robert Louis Stevenson, por exemplo, tinha fraca opinião destes primeiros trabalhos, mas outros críticos consideram que «sem o treino que tais esforços proporcionaram ao autor, que lutava por descobrir os caminhos que levavam à produção de um romance adulto, bem como o hábito que formou desde novo de escrever sob pressão, teria sido impossível a Balzac conceber algo como «A Comédia Humana». No fundo, ao «descobrir» o género do romance, o autor descobriu-se a si mesmo.

Por esta altura, o mesmo escreveu dois panfletos, em apoio do direito hereditário dos primogénitos e acerca dos Jesuítas. Este último entroncava na sua eterna admiração pela Igreja Católica. No prefácio da «Comédia Humana» escreveu:

Cristianismo acima de tudo, sendo o Catolicismo (…) um detalhado sistema de repressão das depravadas tendências do Homem, constituindo assim o mais poderoso instrumento ao serviço da ordem social.

No final da década, o autor envolveu-se em diversos negócios. O primeiro passava por fazer edições baratas de clássicos franceses – Molière, por exemplo. A ideia revelou-se um fracasso, com muitos dos exemplares a terminarem no lixo. Obteve depois melhor sorte ao publicar as memórias da Duquesa de Abrantès, com quem manteve um caso amoroso.

Balzac viu-se obrigado a pedir dinheiro emprestado à família e amigos, na tentativa de criar uma gráfica e depois uma tipografia. A sua inexperiência e carência de fundos condenaram estas ideias ao fracasso. Acabou por trespassar ambos os negócios a um amigo (que os tornou rentáveis) mas ficou durante muitos anos preso às dívidas. Em meados de 1828, devia 50 000 francos à mãe.

Tais experiências não acalmaram a sua queda para este género de divagações. Prova disso é um novo episódio – já enquanto autor atarefado e famoso – que o levou a viajar para a Sardenha com a intenção de reprocessar o restolho das minas romanas aí existentes. Já nos derradeiros anos, deixou-se ainda tentar pela ideia de abater 20 000 hectares de madeira de carvalho (81 km2) em território ucraniano e transportá-lo para futura venda em França.

Em 1832, depois de escrever vários romances, Balzac concebeu um vasto projecto literário, que passava por uma série de livros que retratassem «todos os aspectos da sociedade». Ao ser acometido por tal ideia, precipitou-se para casa da irmã e afirmou: «Estou prestes a tornar-me num génio!». Apesar do primeiro título da obra ser «Etudes des Mœurs» (Estudos de Costumes) esta acabou por ficar conhecida como «A Comédia Humana», tendo nela sido incluídos todos os trabalhos de ficção anteriormente publicados com o seu nome. Tal empreitada transformou-se no trabalho de uma vida e no seu maior feito literário.

Após o colapso dos negócios, o autor fez uma viagem até à região da Bretanha e hospedou-se em casa da família De Pommereul, nos arredores de Fougères. Foi lá que ganhou inspiração para «Les Chouans» (1829), uma história acerca de um amor infeliz ocorrido no seio das forças contra-revolucionárias (leais ao Rei deposto com a Revolução Francesa). Balzac, enquanto apoiante da Coroa, retrata os contra-revolucionários com termos favoráveis – apesar destes estarem na origem dos episódios mais sangrentos da narrativa. Tal romance foi o primeiro que o autor publicou com o seu nome verdadeiro, fornecendo-lhe assim aquilo que um crítico apelidou de «bilhete para a Terra Prometida». Ou seja, estabeleceu-o enquanto autor digno de registo (ainda que o seu romance histórico tenha muito de Sir Walter Scott) libertando-o por fim dos pseudónimos utilizados no passado.

Pouco depois, aquando da morte do pai, Balzac escreveu o conto «El Verdugo» – acerca de um protagonista de 30 anos que mata o progenitor (o autor tinha exactamente a mesma idade). É aqui que assina pela primeira vez «Honoré de Balzac». Até então, utilizava de facto o apelido paterno Balzac, mas agora adicionava-lhe a partícula de cariz aristocrático de modo a franquear portas na elite – um artifício nascido mais da astúcia do que do direito legal. Escreverá, aliás, em 1830:

A aristocracia e a autoridade nascidas do talento são mais respeitáveis do que as oriundas do nome e riqueza material.

A altura escolhida também não é inocente – o desaparecimento do pai é coincidente com a mudança do nome, revelando-se uma herança simbólica. Do mesmo modo que o progenitor ascendera na sociedade à conta do trabalho árduo, Balzac considerava serem essas características (talento e esforço) as verdadeiras marcas ilustres.

Quando a chamada «Revolução de Julho» (Segunda Revolução Francesa) derrubou Charles X em 1830, Balzac declarou-se um «legitimista», ou seja, apoiante da Casa Real de Bourbon. Considerava que esta nova Revolução (que obteve vasto apoio popular) era desorganizada e sem ideias concretas, carente de um mediador que mantivesse a estabilidade política entre o Rei e os revoltosos. Defendia o surgimento de um «cidadão jovem e energético, que não mantivesse alianças com nenhum dos lados, mas que encarnasse o espírito da época…». Planeava, no fundo, ser esse cidadão «salvador», contando sobretudo com o apoio das classes altas da região de Chinon. Contudo, na sequência de um acidente quase fatal em 1832 (escorregou e bateu com a cabeça no chão), Balzac decidiu abdicar de tais intenções.

Em 1831, obtém sucesso com o romance «La Peau de chagrin», dono de um enredo algo fantasioso no qual um jovem autoritário de nome Raphaël de Valentin ganha posse da pele de um animal com poderes mágicos – que lhe auguram grande poder e riqueza. Com o tempo, obtém de facto tais benefícios, mas falha na tentativa de os gerir da melhor forma. Por fim, a saúde começa a fugir-lhe e este acaba prisioneiro da sua própria desorientação. Balzac esforçou-se por criar um enredo moralista, que alertasse contra os imprevistos ingratos da existência, surgidos por entre um rumo «serpenteante».

Em 1833, publica «Eugénia Grandet», o primeiro grande sucesso comercial. Com um enredo que versa sobre uma jovem protagonista que herda o carácter avarento do pai, acaba por se tornar no romance que mais sucesso obteve junto dos críticos. Contém uma escrita simples, mas as personagens (especialmente a protagonista) são dinâmicas e complexas. Seguiu-se «La Duchesse de Langeais», provavelmente um dos seus melhores trabalhos.

O Tio Goriot (1835) transformou-se no êxito seguinte, no qual Balzac reproduz a história de «Rei Lear» para a Paris de 1820 de modo a poder barafustar contra uma sociedade carente de todo o tipo de amor, excepto o amor ao dinheiro. A centralidade de uma figura paterna no romance reproduz o estatuto social do autor – não só enquanto mentor da sua jovem e problemática secretária, Jules Sandeau, mas também por este ter perfilhado uma criança, Marie-Caroline Du Fresnay, nascida da relação com a sua amante casada, Maria Du Fresnay, fonte de inspiração para «Eugénia Grandet».

Em 1836, Balzac tomou as rédeas da Chronique de Paris, uma revista acerca de temas políticos e sociais. Procurou incutir uma rigorosa imparcialidade na publicação, baseada numa avaliação racional das diversas ideologias. Contemporâneos afirmam que este «estava aberto a qualquer teoria económica, política e social, viesse da esquerda ou da direita». O projecto acabou por fracassar, mas em Julho de 1840 o autor fundou outra revista – Revue Parisienne. Encerrou depois de três edições.

Estes projectos fracassados—a par das peripécias na Sardenha—foram terreno fértil para o enredo de «Ilusões Perdidas», que se estendeu por dois volumes (1843). O romance apresenta Lucien de Rubempré, um jovem poeta a lutar por reconhecimento, que se deixa aprisionar nos terrenos lodosos e contradições obscuras da sociedade em que se move. As empreitadas jornalísticas de Lucien baseiam-se nas experiências falhadas do autor nesse campo. «Esplendores e Misérias das Cortesãs» (1847) dá seguimento à história de Lucien. Este deixa-se enredar pelo Abade Herrera (conhecido como Vautrin n’O Tio Goriot) num plano complexo e desastroso para reconquistar o estatuto social perdido. A obra é cronologicamente irregular, já que a primeira parte (de quatro) comporta um período de seis anos e as últimas duas focam-se em apenas três dias.

«Le Cousin Pons» (1847) e «A Prima Bette» (1848) pertencem ao enredo de «Les Parents Pauvres». As maquinações e confusões em redor de testamentos e heranças aí existentes reflectem a experiência adquirida pelo autor enquanto jovem escriturário. Por esta altura, a saúde de Balzac estava a piorar, tornando a conclusão destas obras um verdadeiro feito.

Muitos dos seus romances obedeceram inicialmente à lógica do folhetim, à semelhança do que acontecia com as obras de Dickens. Ou seja, o seu tamanho não estava decidido à partida. A título de exemplo, «Ilusões Perdidas» acaba por atingir as 1000 páginas depois de um começo titubeante, enquanto «A Rapariga dos Olhos de Ouro» (1835) inicia-se com uma descrição detalhada de Paris, apenas para se tornar numa novela hermética de apenas 50 páginas.

O ritmo de trabalho de Balzac era lendário. Escrevia diariamente entre a uma e as oito da manhã, por vezes mais. Redigia a uma velocidade incrível. Alguns dos romances, escritos à pena, eram produzidos a um ritmo equivalente a trinta palavras por minuto numa máquina de escrever moderna. O seu método preferido passava por fazer uma refeição ligeira entre as 17h e as 18h e depois dormir até à meia-noite. Depois levantava-se e escrevia durante muitas horas, apoiado por inúmeras chávenas de café. Chegava a trabalhar, com frequência, mais de 15 horas seguidas e alega mesmo ter atingido uma vez as 48h de trabalho, com apenas três de interregno.

Balzac revia de forma obsessiva, enchendo as primeiras impressões de correcções e adições. Repetia este hábito com frequência já durante o processo de publicação, provocando avultadas despesas ao editor e a si próprio. Assim, o produto final era quase sempre bastante diferente da primeira versão.

O autor, embora alternasse entre «uma vida de eremita e vagabundo», mantinha-se a par dos eventos sociais que alimentavam a sua escrita. Tinha vários amigos no meio literário e chegou mesmo a conhecer Victor Hugo. Apesar disso, não passava tanto tempo nos salões e clubes parisienses como os seus personagens.

Em primeiro lugar, estava demasiado ocupado – comentam os analistas – e em segundo, não se sentiria à vontade em tais sítios…sentia que o seu papel era criar uma sociedade, não imiscuir-se numa.

Por outro lado, passou longas temporadas em Château de Saché, perto de Tours, residência do seu amigo Jean de Margonne, amante da mãe e pai de um dos filhos desta. Muitas das atormentadas personagens do autor foram criadas num pequeno quarto situado no segundo andar deste castelo, que hoje em dia foi transformado num museu dedicado à vida de Honoré de Balzac.

Em 1833, numa confissão escrita à irmã, este revela ter iniciado um caso amoroso ilícito com a também escritora Maria Du Fresnay, então com 24 anos. O casamento desta com um homem bastante mais velho (Charles du Fresnay, prefeito de Sartrouville) tinha sido um fracasso desde o início. Na mesma carta, Balzac confessa ainda que a jovem mulher lhe comunicou que está grávida de um filho dele. Em 1834, oito meses depois, nasce Marie-Caroline Du Fresnay, filha do escritor.

Em 1955, é oficialmente confirmado que uma tal de «Maria», a quem o autor dedicou a obra «Eugénia Grandet», é a filha deste.

Em Fevereiro de 1832, Balzac recebeu uma curiosa carta vinda de Odessa – sem remetente e assinada apenas com «A Estrangeira» – na qual se lamentava o cinismo e ateísmo presentes em «La Peau de Chagrin», associados à imagem negativa que se fazia das mulheres. Este respondeu colocando um anúncio nos classificados da «Gazette de France», na esperança que a sua interlocutora anónima o visse. Tudo isto deu início a uma troca de correspondência – que durou 15 anos – entre o autor e «o alvo dos seus sonhos mais doces»: Ewelina Hańska.

Ewelina era casada com um nobre vinte anos mais velho, o Marechal Wacław Hański. Este era um abastado proprietário de terras, que morava perto de Kiev. O casamento tinha sido um arranjo de conveniência para que a fortuna da família dela fosse preservada. Em Balzac, a Condessa Ewelina encontrou um espírito terno e adequado aos seus desejos emocionais e sociais, para além de sentir nele uma espécie de ligação à glamorosa capital francesa. A correspondência entre ambos releva um curioso equilíbrio entre paixão, interesse e paciência, «uma espécie de romance experimental no qual a protagonista está sempre a tentar inserir realidades ousadas, enquanto o herói procura manter o rumo, nem que para isso recorra aos artifícios mais improváveis».

O Marechal Hański morre em 1841, pelo que a viúva e o seu pretendente podem finalmente satisfazer o desejo. Tendo agora como rival o compositor húngaro Franz Liszt, Balzac decide visitar a Condessa Hańska em São Petersburgo, corre o ano de 1843. Sai vencedor da contenda amorosa. Após uma série de problemas financeiros, complicações de saúde e dificuldades criadas pelo Czar Nicolau I, o par obtém por fim autorização para o casamento. A 14 de Março de 1850, com a saúde de Balzac seriamente afectada, viajam de carruagem durante dez horas a caminho de uma igreja, onde finalmente oficializam a união. Obrigados a regressar pouco depois, ambos pagam o preço de tão morosa deslocação: os pés da Condessa ficam tão inchados que esta não consegue andar e o autor começa a padecer de graves problemas cardíacos.

Em finais de Abril, decidem por fim voltar a Paris. A saúde de Balzac piorou ainda mais durante essa viagem, ao ponto de Ewelina escrever à filha, relatando que o autor estava «extremamente fraco, transpirando profusamente». Chegam ao destino a 20 de Maio, no 51º aniversário deste.

Cinco meses após o casamento, a 18 de Agosto de 1850, Balzac morre diante da mãe. A mulher estava deitada.

O autor tinha sido visitado nesse dia por Vitor Hugo, que mais tarde coordenou o funeral do amigo.

Balzac está sepultado no cemitério de Père Lachaise, em Paris. Na cerimónia fúnebre, Vitor Hugo afirmou:

Hoje estamos vestidos de negro devido à morte de um homem de talento; uma nação está de luto por um homem genial.

 

A Comédia Humana estava inacabada – o autor planeava incluir muitos outros volumes, não tendo sequer começado grande parte deles. Tinha o hábito de alternar entre diversos projectos incompletos e outros, rotulados de «concluídos», acabavam por ser revistos a cada nova edição. Este método de trabalho era um espelho da vida pessoal do autor, que ele decerto tentava estabilizar através da ficção.

Balzac focava-se invariavelmente nos detalhes, sobretudo ao nível dos objectos, de modo a ilustrar na perfeição o tipo de vida das suas personagens, transformando-o num pioneiro do Realismo. Embora admirasse e retirasse inspiração do estilo Romântico característico de Walter Scott, procurou retratar a existência humana através das suas particularidades. Afirmou a certa altura:

Acredito convictamente que o recurso aos pormenores será suficiente para aferir dos méritos da obra.

Múltiplas descrições da decoração, vestuário e bens materiais ajudam a construir as diferentes personagens e a torná-las realistas. Por exemplo, em O Tio Goriot, o autor recorre ao papel de parede da Pensão Vauquer para ilustrar a personalidade daqueles que a habitam.

Alguns críticos consideram no entanto que a escrita de Balzac está mais próxima do Naturalismo – uma forma mais analítica e pessimista de Realismo, que procura explicar o comportamento humano através da sua relação intrínseca com o meio envolvente. O romancista Émile Zola declarou Balzac «o pai do romance naturalista» explicando que, se os Românticos observavam o mundo através de uma lente colorida, os Naturalistas faziam-no através de um vidro transparente – precisamente o tipo de efeito que o autor procurava nas suas obras.

 

Personagens

O autor pretendia criar personagens reais, longe de maniqueísmos:

Para atingir a verdade, os escritores recorrem a qualquer artifício literário que ofereça o mais completo realismo às suas personagens.

As personagens de Balzac eram para ele tão reais como se estivesse a observá-las da janela. Tal facto foi salientado pelo escritor e dramaturgo Oscar Wilde, que terá dito:

Uma das grandes tragédias da minha vida é a morte de Lucien de Rubempré (protagonista de «Esplendores e Misérias de Cortesãs»). É algo que me assombra nos melhores momentos, surge-me a cada gargalhada.

Para além disso, a galeria de figuras inclui uma vasta gama de tipos sociais: o militar nobre, o patife, o operário orgulhoso, o espião arrojado, a cortesã sedutora. O facto de o autor ter conseguido equilibrar a força do individual com a representação dos arquétipos é prova suficiente do seu talento.

Ao repetir a presença de vários intervenientes em diversos livros integrantes d’ A Comédia Humana, o autor reforça o realismo associado:

Quando as personagens reaparecem, não surgem do nada, mas sim da privacidade da sua existência que, por momentos, nos foi ocultada.

Balzac recorreu ainda a uma técnica do Realismo que o romancista Marcel Proust mais tarde designou como «iluminismo retrospectivo», na qual o passado de uma determinada personagem é desvendado muito depois da sua primeira aparição.

Os protagonistas das suas obras parecem dotados de infinitas reservas de energia. Em permanente luta com as adversidades provocadas pela natureza humana e sociedade exterior, poderão perder mais vezes do que ganhar, mas raramente desistem. Tal característica é um reflexo do próprio contexto social do autor, que inclui a sua história familiar, para além daquilo que Balzac apelidava de «força fluida e agitada» entre indivíduos, essencial para escapar aos perigos do isolamento social.

 

Lugar

Representações urbanas, rurais e interiores são essenciais para a construção do Realismo balzaquiano, servindo com frequência estas como cenário naturalista para a existência das personagens. Os detalhes associados chegam por vezes a ocupar mais de quinze ou vinte páginas. O autor estudava em profundidade estes locais, viajando para zonas remotas e comparando apontamentos, datados de diferentes alturas.

A influência de Paris é notória: ali, a Natureza cede lugar ao artificialismo da metrópole, contrastando com as descrições meteorológicas e da vida animal nos cenários campestres. Em Paris, estamos numa região criada pelo Homem onde as estações sazonais são esquecidas, ao contrário das cidades de província, sempre em comunhão com o ambiente que as rodeia. Segundo Balzac:

As ruas de Paris possuem qualidades humanas e torna-se impossível afugentar as sensações que provocam no nosso imaginário.

A sua cidade labiríntica criou um modelo literário mais tarde utilizado pelos romancistas Charles Dickens e Fiodor Dostoievski. A centralidade de Paris n’A Comédia Humana é a chave do seu legado realista. «O Realismo é algo absolutamente urbano» e o cenário no qual um jovem protagonista chega à grande cidade em busca de melhor vida é omnipresente no romance do género, surgindo frequentes vezes nas obras de Balzac – por exemplo «Ilusões Perdidas».

O ambiente emocional nas obras do autor evoluiu ao longo dos anos, da desilusão e sofrimento para a solidariedade e coragem – embora sem nunca chegar ao optimismo.

Balzac preocupava-se sobretudo com a essência mais profunda da natureza humana, bem como a influência corrosiva das classes médias-altas. A sua missão era observar a Humanidade no seu estado mais verídico, mesmo que isso o obrigasse a divagar pelas ruas de forma discreta, misturado entre as massas.


Romance de 1835, parte integrante da temática «episódios da vida privada» presente na obra épica «A Comédia Humana». Situado em Paris, no ano de 1819, acompanha as existências interligadas de três personagens: um idoso dedicado chamado Goriot, um estranho criminoso em fuga conhecido como Vautrin e um ingénuo estudante de Direito de nome Eugène de Rastignac.

Publicado originalmente em formato de folhetim no Inverno de 1834/35, O Tio Goriot é considerado o romance mais importante da carreira de Balzac. É aqui que o autor recorre pela primeira vez de forma séria à técnica que o distingue pela positiva: a transposição de personagens entre romances. O enredo é ainda um exemplo do estilo realista, através do uso exaustivo do detalhe na formação de personagens e subtexto.

A narrativa decorre no período da Restauração dos Bourbon, que esteve na origem de enormes mudanças na sociedade francesa: a luta do indivíduo pela ascensão social é um dos grandes temas do livro. A cidade de Paris deixa também a sua marca nas personagens – em especial no jovem Rastignac, oriundo das regiões provincianas do sul de França. Balzac analisa, através dos olhos de Goriot e restantes, os conceitos de Família e Casamento, obtendo conclusões pessimistas sobre tais instituições.

Aquando da publicação, a obra obteve opiniões díspares. Alguns críticos elogiaram a complexidade das personagens e o rigor do detalhe, outros condenaram os inúmeros exemplos de corrupção e ganância. Um dos trabalhos preferidos de Balzac, depressa conquistou popularidade e foi mais tarde adaptado ao Cinema e Teatro.

Acabou ainda por dar origem à expressão francesa «Rastignac» para ilustrar um trepador social, disposto a servir-se de todos os meios para melhorar a sua condição.

O romance espelha diversos acontecimentos históricos que subverteram a ordem social francesa, de forma persistente: a Revolução Francesa, que originou a Primeira República; a tomada do poder por Napoleão; a queda e renascimento da dinastia dos Bourbon. O Tio Goriot inicia-se em Junho de 1819, quatro anos depois da derrota napoleónica em Waterloo que redundou na Restauração dos Bourbon. É visível, no enredo, uma animosidade crescente entre a aristocracia – rejuvenescida por Luís XVIII – e a burguesia saída da Revolução Industrial. Descreve-se uma França agrilhoada por classes sociais, com as mais baixas remetidas para uma pobreza inimaginável. Segundo estimativas, três quartos dos parisienses não eram capazes de obter os cerca de 500 francos anuais necessários para assegurar um nível de vida mínimo. Por outro lado, tais convulsões provocaram uma mobilidade social impensável nos tempos do Antigo Regime. Todos aqueles disponíveis para se moldarem a esta nova ordem tinham por vezes a oportunidade de subir alguns degraus, mesmo partindo de posições modestas – situação que desagradava sobremaneira às entrincheiradas classes altas.

Um dos aspectos que mais fascinava o autor era o mundo do crime. No Inverno de 1828/29, um pequeno falsário transmutado em polícia chamado Eugène François Vidocq publicou um par de memórias sensacionalistas, onde confessava o seu passado de pequenas burlas. Balzac encontrou-se com ele em Abril de 1834, transformando-o depois na personagem Vautrin.

No Verão desse ano, o autor começou a trabalhar numa história trágica acerca de um pai rejeitado pelas filhas. O seu diário regista alguns excertos (sem data) sobre o enredo: «Velho Goriot – bom homem – residência de classe média – 600 francos de rendimento – caiu na ruína para ajudar as filhas, ambas com 50 mil francos de rendimentos – a definhar como um cão».

Escreveu o primeiro rascunho em 40 dias, tendo a versão final sido publicada na revista literária «Revue de Paris» em formato folhetim, entre Dezembro e Fevereiro do ano seguinte. Foi depois lançado como romance em Março, na editora Werdet, que também assegurou a segunda edição, em Maio. Uma terceira edição, muito corrigida, saiu em 1839, pela Charpentier.

Balzac anotava e modificava extensivamente as versões provisórias que recebia dos editores, fazendo com que as versões mais recentes dos seus trabalhos surgissem muito diferentes do original. No caso específico d’ O Tio Goriot, foram transferidas diversas personagens de trabalhos prévios e acrescentados novos parágrafos, recheados de pormenores.

O personagem Eugène de Rastignac tinha já aparecido na sua versão idosa, num anterior romance filosófico intitulado «La Peau de Chagrin». Num primeiro ensaio, o autor apelidou a personagem de «Massiac», mas optou mais tarde por recorrer à mesma denominação do romance prévio. O processo repetiu-se com outros intervenientes. A partir daqui, esta técnica atingiu grande rigor e profundidade, passando a caracterizar futuros trabalhos.

Em 1843, Balzac inseriu a obra na secção d’ «A Comédia Humana» conhecida como «episódios da vida parisiense», mas pouco depois mudou de ideias – à conta da extrema atenção concedida à vida particular das personagens – optando por adicioná-la a «episódios da vida privada».

Tais categorias e os diversos romances que as formam eram a sua tentativa de criar um corpo de trabalho que «retratasse toda a sociedade, ilustrando-a em toda a sua imensidão e caos».

 

Enredo

 

O romance inicia-se com uma descrição pormenorizada da «Maison Vauquer», um alojamento situado na rua Neuve-Sainte-Geneviève, em Paris. Coberto de videiras, é propriedade da viúva Vauquer. Entre os residentes, encontram-se o estudante de Direito Eugène de Rastignac, um problemático e misterioso Vautrin e um idoso reformado e apreciador de aletria de nome Jean-Joachim Goriot. Este último é o frequente alvo da chacota dos restantes hóspedes, que logo descobrem que ele mergulhou na falência ao tentar sustentar as duas filhas, esposas de maridos ricos.

Rastignac, recém-chegado do sul de França, deixa-se fascinar pelo modo de vida das classes altas. Encontra naturais dificuldades de aceitação, mas começa a receber lições da prima, Madame de Beauséant, acerca da etiqueta necessária. Este insinua-se a uma das filhas de Goriot, Delphine, com a ajuda de fundos arrancados à empobrecida família. Vautrin, entretanto, tenta convencê-lo a empenhar as energias numa mulher solteira, de nome Victorine, cuja fortuna familiar é apenas guardada pelo respectivo irmão. A certa altura, voluntaria-se para abrir caminho a Rastignac através de um duelo com o outro, onde o mataria.

Rastignac recusa seguir em frente com o estratagema, chocado pela ideia de retirar a vida de alguém em nome da respectiva fortuna, embora registe o carácter de Vautrin. Acaba por ser a sua primeira lição acerca das verdadeiras cores da alta sociedade. Pouco depois, os hóspedes descobrem que a Polícia está em busca de Vautrin, na verdade um criminoso profissional conhecido como «Trompe-la-Mort» («Aventureiro», ou sendo literal, «Engana-Morte» ou «Malabarista da Morte»). Este convencera um amigo a matar o irmão de Victorine, gesto que o atira para os braços das autoridades.

Goriot, que na verdade aprova o interesse de Rastignac na sua filha e vive furioso com o controlo tirânico que o marido desta exerce na vida dela, não é capaz de ajudar. Quando a outra filha, Anastasie, o informa de que tem estado a vender as jóias de família de modo a pagar as dívidas do amante, é tomado de profunda tristeza (constatando a sua impotência) e sofre um colapso.

Delphine não visita Goriot no seu leito de morte e Anastasie chega demasiado tarde, pouco depois deste ter perdido a consciência. Antes disso, o idoso vocifera acerca do desrespeito que elas demonstram. No funeral, estão apenas presentes Rastignac, um criado de nome Christophe e duas carpideiras profissionais. As filhas de Goriot primam pela ausência, enviando apenas as carruagens vazias, que exibem os brasões de família dos maridos. Após a curta cerimónia, Rastignac encara a cidade parisiense, tomada pelas primeiras sombras do crepúsculo. Tem jantar marcado com Delphine e anuncia à urbe: «À nous deux, maintenant!» (Agora, é entre nós dois!).

 

O estilo de Balzac presente na obra provém das influências do romancista americano James Fenimore Cooper e do autor escocês Walter Scott. No retrato que Cooper traça dos americanos nativos, Balzac encontrou um primitivismo que tem resistido a todas as tentativas de civilização. No prefácio da segunda edição, em 1835, o autor informa que o protagonista, – Goriot – enriquecido através da venda de aletria num tempo de fome generalizada, era o «Illinois da farinha» e o «Huron do grão» (Illinois e Huron são antigas tribos). Vautrin apelida Paris de «floresta do Novo Mundo onde colidem entre si 20 tribos selvagens diferentes».

Scott é outra grande influência, sobretudo no recurso a eventos históricos enquanto cenário para os enredos. Apesar da História não ser tema central n’O Tio Goriot, o período pós-napoleónico acaba por fornecer alguma estrutura. Outra característica retirada de Scott é a utilização exaustiva do detalhe. Num prefácio de 1842 presente n’ «Comédia Humana», o autor elogia o escocês enquanto «trovador moderno» que «rejuvenesceu a Literatura com o espírito do passado». Por outro lado, acusa o outro de romantizar a História e procura dotar a sua obra com uma visão mais equidistante da natureza humana.

Apesar do romance ser muitas vezes considerado «de mistério», não se trata de um policial ou de uma história de crime. Em vez disso, os dilemas centrais versam sobre as origens do sofrimento e as motivações para comportamentos desviantes. As personagens surgem através de fragmentos, com cenas curtas que estão lá para fornecer pequenas pistas sobre as respectivas identidades. Vautrin, por exemplo, entra e sai do enredo com frequência – oferece conselhos a Rastignac, ridiculariza Goriot, suborna o empregado Christophe para que este o autorize a entrar fora de horas – até se descobrir que estamos perante um criminoso. Este padrão, de pessoas a entrar e a sair com frequência, espelha a conhecida técnica de Balzac no que diz respeito às personagens que formam «A Comédia Humana».

A obra é também classificada como «romance de formação», no qual um jovem ingénuo consuma o seu crescimento interno. Rastignac é informado por Vautrin, Madame de Beauséant, Goriot e outros, acerca das agruras da sociedade parisiense, recheada de esquemas frios e pragmáticos em busca do sucesso. Como qualquer homem comum, começa por rejeitar e censurar as desencorajantes realidades ocultas pela superfície envernizada, mas com o tempo, acaba por imiscuir-se nas mesmas. Pondo de parte o seu objectivo inicial de se formar em Leis, dedica-se à busca por dinheiro e mulheres, enquanto meios para ascender na vida. De certa forma, este enredo espelha a realidade social do próprio Balzac, que se desinteressou do estudo das Leis após três anos de labuta.

O Tio Goriot, sobretudo na sua versão final, marca também o início da imagem de marca do autor no que diz respeito à transversalidade das personagens, ou seja, participantes de enredos anteriores surgem em histórias seguintes, normalmente em fases diferentes da vida. Satisfeito com o resultado obtido com Rastignac, Balzac incluiu mais 48 personagens que surgiriam em obras posteriores. O percurso de Rastignac exibe, pela primeira vez, uma estrutura narrativa consistente associada a uma personagem, essencial para a sua importância e desenvolvimento.

Balzac aperfeiçoou esta técnica ao longo dos trinta anos em que construiu «A Comédia Humana». Tal permitiu-lhe uma profundidade de caracterização que ultrapassava a simples narração ou diálogos. Apesar da complexidade inerente à vida destas personagens ter levado o autor a cometer erros inevitáveis, no que diz respeito à cronologia e consistência, estes são considerados males menores face à grandeza do projecto. A principal preocupação dos leitores é antes o elevado número de personagens presente no mundo balzaquiano, situação que retira contexto importante a cada uma delas. Arthur Conan Doyle, por exemplo, confessa que nunca tentou ler Balzac, uma vez que «não saberia por onde começar».

O padrão acaba mesmo por, no futuro, influenciar o enredo d’ O Tio Goriot: o reaparecimento do Barão de Nucingen na obra «La Maison Nucingen» (1837) revela que o caso amoroso da sua mulher com Rastignac foi algo planeado e coordenado pelo próprio barão. Este detalhe esclarece de forma decisiva os comportamentos das três personagens no enredo em análise, complementando a sua evolução na história posterior.

O autor recorre a detalhes abundantes e intrincados para descrever a «Maison Vauquer», os seus habitantes e o mundo que os rodeia. Esta abordagem valeu-lhe então o epíteto de «pai do romance realista». Os detalhes abordam sobretudo a penúria que domina os habitantes da «Maison Vauquer». Muito menos importantes são as descrições das casas abastadas, nomeadamente a que se refere aos aposentos de Madame de Beauséant ou à residência da família Nucingen, que se fica por um retrato breve e impreciso.

 

Temas

 

Estratificação Social

Um dos temas estruturantes na obra é a busca pelo domínio e ascensão na hierarquia social. O regime estabelecido por Luís XVIII declarava a existência de um «território legal» que autorizava o voto apenas a uma pequena elite de homens abastados. Assim, o desejo de Rastignac em progredir na sociedade comprova, não só a sua ambição particular, mas também a intenção de participar nas decisões políticas. Tal como certas personagens de Scott, Rastignac representa, em palavras e acções, o «espírito de época».

Através das personagens e descrições, Balzac torna evidente o darwinismo social que define a sociedade em causa. Veja-se o exemplo deste discurso em particular, na voz de Madame de Beauséant:

Quanto mais implacáveis forem os teus planos, mais longe chegarás. Ataca sem piedade; serás temido. Homens e mulheres para ti, não podem ser mais do que bestas de carga; troca de montada frequentemente, abandona a prévia na sarjeta; só desta forma atingirás os objectivos ambicionados. Aqui nunca serás nada, repara, a não ser que uma mulher demonstre interesse por ti; e terá de ser jovem e rica, uma mulher do mundo. Por isso, se tens coração, guarda-o a sete chaves, como um tesouro; não deixes que ninguém o suspeite, ou estás perdido; deixarias de ser o carrasco, para tomar o lugar da vítima. Caso alguma vez te apaixones, nunca deixes que esse segredo seja revelado!

Esta abordagem é reforçada por Vautrin, que diz a Rastignac: «O segredo para um grande sucesso é um crime que nunca tenha sido descoberto, pois foi bem executado». Esta frase tem sido citada com frequência – incorrectamente – da seguinte forma: «Atrás de uma grande fortuna, esconde-se um grande crime».

Influência de Paris

A estratificação social presente no romance é algo específico da cidade de Paris, talvez a metrópole europeia com uma densidade populacional mais elevada, à época. Atravessar meia dúzia de quarteirões – acção muito comum em Rastignac – transporta o leitor para mundos completamente diferentes, que se distinguem pela sua arquitectura e reflectem a classe social dos seus habitantes. Paris, na época pós-napoleónica, estava dividida em múltiplos bairros. Três deles surgem com frequência no enredo: o aristocrático Faubourg Saint-Germain, o cada vez mais reputado Chaussée-d’Antin, e a zona carente de Montagne Sainte-Geneviève.

Estes locais funcionam enquanto microcosmos, que Rastignac procura entender e dominar; Vautrin, por outro lado, prefere uma abordagem furtiva, movendo-se pelas ruas de forma anónima. Rastignac, símbolo do jovem provinciano ingénuo, busca refúgio em qualquer um destes mundos. Paris oferece-lhe uma oportunidade para abandonar a família distante e reconstruir-se à imagem (cruel) da cidade. O seu percurso assemelha-se ao de tantos outros recém-chegados à capital francesa, que duplicou a sua população entre 1800 e 1830. A textura do enredo está por isso inevitavelmente mesclada com a cidade que lhe dá palco. Segundo alguns críticos, «Paris é uma presença constante, que empresta ao romance um tom particular».

De certa forma, n’O Tio Goriot, Paris transforma-se ela própria numa personagem, tal como aconteceu n’«O Corcunda de Notre Dame» ou Londres é parte integrante dos trabalhos de Charles Dickens. Isto mesmo se demonstra no retrato pintado pelo autor, que revela uma sociedade parisiense radicalmente estratificada, corrupta, amoral e gananciosa. Para além disso, cada personagem está perfeitamente integrada no respectivo ambiente urbano.

Corrupção

Rastignac, Vautrin, e Goriot representam indivíduos corrompidos pelos seus desejos. O primeiro, no que diz respeito à sua sede de ascensão social, chega a ser comparado a Fausto, tendo o segundo por Mefistófeles. O sermão deste último a Rastignac é considerado «um dos grandes momentos de toda a ‘Comédia Humana’ e até da própria literatura universal». As convulsões sociais no país oferecem a Vautrin um terreiro apropriado para a implementação de uma ideologia baseada apenas no progresso individual, com a qual este procura seduzir o interlocutor.

Apesar de tudo, é a estrutura social no seu todo que termina por consumir o espírito de Rastignac – Vautrin limita-se a explicar como e porquê. Apesar do jovem recusar a proposta criminosa do outro, acaba por sucumbir aos princípios brutais que sustentam todo o edifício social. No final, confessa mesmo a Bianchon: «Estou no Inferno e não me resta outra coisa senão aqui ficar».

Se Rastignac ambiciona riqueza e estatuto, Goriot deseja apenas ser amado pelas filhas: um sonho que raia a idolatria. Uma vez que este simboliza a riqueza burguesa, adquirida através do negócio – em lugar da original acumulação aristocrática – as filhas não se incomodam de receber o dinheiro, mas aceitam vê-lo apenas em privado. Mesmo à beira da morte, num cenário de extrema privação como aquele que é descrito no final do livro, este vende as poucas coisas que lhe restam de modo a enviar os lucros para as filhas, que desejam estar deslumbrantes num baile.

 

Relações familiares

As relações familiares seguem dois padrões: os compromissos matrimoniais obedecem sobretudo à matriz maquiavélica, rumo à independência financeira, enquanto as obrigações da geração mais velha para com a mais nova assumem a forma de um sacrifício e de uma privação. Delphine está presa num casamento de conveniência com o Barão de Nucingen, um banqueiro astuto. Este está plenamente consciente das infidelidades da mulher, servindo-se delas para lhe extorquir dinheiro. Anastasie, por outro lado, está casada com o Conde de Restaud, que fica mais afectado com a perda das jóias que esta vende para sustentar o amante (que por sua vez está a burlá-la através de um esquema popular em Paris, que já chegou aos ouvidos de Rastignac) do que com os filhos ilegítimos que esta possa ter. Este retrato do casamento, enquanto ferramenta de poder, reflecte a dura realidade das estruturas sociais precárias, à época.

Os pais, por sua vez, sustentam os filhos indefinidamente; Goriot sacrifica tudo em nome das filhas. Balzac chega mesmo a apelidá-lo, a certa altura, de «Cristo da parentalidade» devido ao sofrimento constante deste em nome das descendentes. Quando estas o abandonam, inebriadas pela busca do estatuto social, a sua infelicidade aumenta. O final do enredo contrasta o leito de morte de Goriot com um baile concorrido, organizado pela Madame de Beauséant – ao qual as filhas deste se deslocam, tal como Rastignac – sugerindo com isso uma fissura elementar entre sociedade e família.

A traição das filhas de Goriot é muitas vezes comparada com a das personagens de «Rei Lear», na obra de Shakespeare; Balzac chegou mesmo a ser acusado de plágio aquando da publicação do seu romance. A propósito do tema, afirma-se:

As filhas de Goriot são decerto as assassinas do pai, tal como Goneril e Regan (em «Rei Lear»). Contudo, a obra do francês é, em certos aspectos, mais trágica, pois Goriot tem uma Regan e uma Goneril, mas não tem uma Cordélia.

O episódio doloroso entre Goriot e as filhas pode ainda ser interpretado enquanto parábola tragicómica do declínio de Luís XVI. Num momento crucial, Vautrin lança-se numa cantoria, com os versos de «O Richard, O mon roi» – o hino monárquico que precipitou a revolução de 1789 e a queda do monarca – sugestão que terá sido poderosa nos leitores contemporâneos de Balzac, em 1830. Pode dizer-se que uma fé deslocada de Goriot e do Rei na legitimidade patriarcal acompanha ambos rumo ao túmulo.

A família de Rastignac, em segundo plano, também se presta a enormes sacrifícios por ele. Convencido que as suas hipóteses de obter um estatuto convincente em Paris são mínimas, a não ser que exiba recursos financeiros opulentos, este escreve à família e pede-lhes dinheiro:

Venda algumas das suas velhas jóias, minha mãe, pois terei oportunidade de lhe oferecer novas, muito em breve.

O dinheiro é enviado, tal como ele deseja, e – embora tal não seja descrito de forma directa no romance – a família padece de enormes privações à conta disso. Apesar do sacrifício, o distanciamento entre todos aumenta cada vez mais. Ainda que Goriot e Vautrin sejam uma espécie de figuras parentais para Rastignac, no final da trama ambos desapareceram e este está entregue a si mesmo.

 

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