Prefácio
Spider, de David Cronenberg.
Boa parte da crítica e audiência encolheu os ombros perante «outro filme sobre esquizofrenia», contemporâneo do muito mais acessível e consensual «Uma Mente Brilhante», onde o factor psicológico é adocicado por conspirações governativas e mulheres fiéis que permanecem até ao último instante ao lado do «herói» reabilitado que «vence pelos seus próprios meios» a enfermidade, transformando-se num indivíduo «normal» e aceite por todos.
Não existe uma única grama desta falsa paz de espírito no trabalho de Cronenberg, nascido a partir de um romance de Patrick McGrath.
Não estamos de facto perante um retrato da esquizofrenia, antes se utiliza essa condição para abordar diversos planos da mente humana, doente ou nem por isso. É um tratado sobre a Culpa, o Complexo de Édipo e o Absurdo do Real.
Neste filme nada é supérfluo. O argumento vai ser fechado, conciso, claustrofóbico, sólido e vaporoso em simultâneo, jamais inútil ou inconsequente. À semelhança de todo o projecto, aliás. O orçamento foi limitado, o tempo de filmagens reduzido e nenhum dos actores ou produtores recebeu um cêntimo.
Aqui, o foco está na história. Na arte. Na mensagem.
O Filme
Na primeira cena, esvaziado o comboio de pessoas comuns, do mundo eléctrico em constante movimento, recheado de famílias, casais, novos e velhos, trabalhadores e turistas, a câmara foca, quase a contragosto, a porta por onde espreita Dennis Cleg. O inadaptado. O esquecido. A anomalia. Enquanto todos formigam velozmente rumo aos seus destinos, porque todos têm um destino, um lugar onde pertencem e onde são esperados, Cleg, por entre murmúrios ininteligíveis, rebusca um papel amarrotado onde anotou a morada do alojamento.
Não está bem certo sobre os passos a dar. Não está, na verdade, bem certo sobre coisa alguma.
Dennis Cleg é um homem na casa dos trinta, esquálido, curvado, de passinhos miúdos e desequilibrados, com os dedos amarelecidos de tanto apertarem pequenos cigarros de má qualidade. Balança no interior de roupas desmaiadas, na fronteira dos farrapos, e esmaga entre os dedos a mala dura que aparenta conter todos os pertences.
É envolto neste labirinto (ou teia) de hesitações e peculiaridades que Dennis se arrasta pelas ruas desertas, chuvosas e enlameadas de um cenário sombrio, bolorento e fora do tempo. Ainda não é seguro, mas tudo o que vemos e sentimos pode ou não estar apenas na mente de Cleg. Isto é, aquela solidão é sem dúvida dele mas não necessariamente do mundo, e o mesmo é válido para o cinzento, o frio, a pobreza, a ausência. O primeiro toque de Absurdo, de dentro para fora mais do que de fora para dentro. E com isto, estamos já na mente de Dennis, não em qualquer plano exterior que exista por si mesmo.
Depois de rebuscar nos labirintos internos, o solitário personagem encontra enfim a morada rabiscada no papel. Pelo caminho, recolheu um vasto conjunto de aparentes inutilidades, tais como gravetos, pedras e pedaços de corda.
O escritor Paul Auster construiu, há muitos anos, uma personagem com algumas destas características no seu bem-sucedido «Trilogia de Nova Iorque».
É uma tal de Mrs. Wilkinson que o recebe. É a gerente de uma espécie de albergue para doentes psiquiátricos em recuperação, algo comum na Londres dos anos 70. Os mais crédulos validarão o olhar que Dennis lança ao futuro abrigo. A solidão, negrume, decadência e desconforto vistos no exterior, encontram total equivalência no interior. As paredes são feitas de uma mescla de cores que as torna sem cor, os soalhos estalam debaixo dos passos, os corredores são labirintos opressivos afogados em mofo. Há portas para lugar nenhum e outras que encerram lugares onde ninguém deveria entrar. De imediato a associação a um mural por onde Dennis passou, à chegada: uma imensa tela de portas grafitadas numa parede, todas elas impeditivas de progressão. Ou seriam portas muradas? Quem sabe as passagens cerradas na mente de Cleg, que ele tanto deseja abrir.
Mas será que deve?
Mrs. Wilkinson é a face do mundo exterior, prático e mecanizado. Uma refeição, um colchão, um banho. Se preciso for, ajuda com rispidez paliativa o enfermo nas suas tarefas, como por exemplo, a despir-se antes de se lavar. Cleg não faz parte dessa realidade. E como perceberemos mais adiante, ser despido (ainda que de forma assexuada) por uma mulher é a última e inatingível fronteira. A própria água do banho pode ou não estar ali. Pode fazer parte da «nossa» realidade ou da mente de Cleg, se é que não se fundiram já ambas numa só coisa. O que sai das torneiras é algo acastanhado, visto como água barrenta expelida por canos de uma casa decrépita, ou é assim absorvido apenas pelos olhos de Dennis, um barrento que é vermelho e um vermelho que é sangue, por razões que ainda se escondem. Cleg não se banha naquela poça de sangue, deita-se nela apenas, em posição fetal, como se regressado ao útero materno, de onde (talvez) nunca tenha realmente saído.
Logo, outro aspecto primordial da fragmentada mente de Dennis. O diário.
Também aqui, outra «referência» à tal personagem de Auster, que escrevia compulsivamente em diários. Neste caso, porém, são evidentes as provas da distorção mental, pois a língua utilizada por Cleg é conhecida apenas dele e tal como um conjunto de memórias que se querem esquecer ao mesmo tempo que se querem lembrar, o diário é escondido numa panóplia de locais para logo deles ser retirado e de novo escondido, noutro sítio melhor e tão semelhante, debaixo de uma carpete, de um móvel, de uma peça de roupa.
Como veremos mais adiante, o registo faz parte de um tríptico de objectos tangíveis que Dennis utiliza para reconstruir a memória perdida, ou melhor, uma memória específica que parece escapar-lhe. A juntar às intermináveis páginas de gatafunhos, existe um puzzle e um vidro estilhaçado. Ainda um conjunto de cordas e fios de guita.
A única personagem que estabelece conversa com Dennis é um idoso que o acompanha no abrigo. Mrs. Wilkinson avisa que este «não é de confiança», mas o que significará isso quando nada nem ninguém merece a confiança de Cleg, a começar por ele próprio? Porque será o anónimo menos confiável que a própria Wilkinson, símbolo do mundo real que exorcizou Dennis?
Este partilha com ele duas histórias: a primeira, sobre um homem que morreu envenenado por um escorpião, ao encurralá-lo dentro do chinelo de quarto. A segunda, sobre outro indivíduo, que após mergulhar a cabeça no forno e ligar o gás, se arrependeu, mas entalando-se, acabou por sucumbir.
A pertinência destes relatos parece secundária, mas não é.
O que faz Cleg neste quotidiano? Rabisca. Constrói lentamente um puzzle (em diversos planos). Bebe exactamente o mesmo leite, com o mesmo número de colheres de açúcar, na mesma mesa do mesmo café. E deambula pelo bairro. Em breve se percebe que aquelas ruas são as mesmas da sua infância, há vinte anos. Dennis Cleg foi portanto enviado para o mesmo local que lhe provocou o trauma. Os médicos terão considerado que a familiaridade do bairro ajudaria à sua reabilitação total, ou terá sido apenas uma coincidência. Cleg, com maior ou menor consciência disto, parece aproveitar a proximidade das ruas conhecidas para mergulhar a fundo na sua missão de reconstruir o passado. Este «reconstruir» tem, contudo, dúbias interpretações.
O que sobra na mente de Dennis?
Este, mera criança, sentado na mesa da cozinha com a mãe. Habitam, com o pai, numa espelunca camarária, na zona oriental da cidade. Uma Mrs. Cleg deprimida e melancólica aproveita a devoção inocente do filho para recordar vezes sem conta os poucos anos em que não se sentiu infeliz. Descreve com pormenor as copas das árvores de Sussex, terra natal, quando envoltas por gigantescas teias de aranha, uma visão simultaneamente bela e arrepiante. Dennis, «um rapazinho deveras inteligente» aos olhos da mãe, parece adoptar o relato enquanto hino ao amor maternal (pois não conhece outro, embora exulte já esse estrondoso Complexo de Édipo) bem como a alcunha que a mãe lhe concede: Spider.
É também ele um modesto aranhiço, de perninhas magras, que usa pequenos cordéis para tecer formas entre os dedos, transformadas em «prendas para a mãe». Escova-lhe os cabelos e pede-lhe a milésima versão da mesma história. Mrs. Cleg, reduzida àquele homem em miniatura, desprezada pelo marido em todos os sentidos, pinta os lábios diante de um espelho de mão e faz-lhe a vontade.
Cleg, em corpo adulto, percorre diversos locais. A beira-rio e uma pequena cabana encolhida debaixo da ponte, patética alusão ao lado campestre inglês, com o carreiro delineado pelas rodas da bicicleta paterna, os canteiros de couves, as ferramentas alinhadas. Em todos estes quadros alterna um Cleg-criança e um Cleg-adulto. Cedo se conclui que em algumas destas situações o Cleg-criança não pode lá ter estado, sendo apenas um produto da imaginação do Cleg-adulto, na sua tentativa de encontrar as peças do puzzle em falta.
Por isso mesmo, o desespero na construção do puzzle palpável. Ainda que tenha conseguido formar uma bela asa de gaivota, as restantes peças anunciam-se disformes. «Isto não encaixa. Isto não encaixa», clama descontrolado, arremessando enfim toda a construção. «Vai apanhar todas as peças, Mr. Cleg, uma por uma», ralha Mrs. Wilkinson. Se ao menos ele pudesse fazê-lo. Se ao menos o conseguisse.
Dennis está perdido naquele processo de recolha de peças, de pequenos pedaços de corda e vidro e madeira das ruas, sem que tais elementos individuais formem a imagem que ele procura. Formam, algumas delas, uma bela asa de gaivota, mas de que serve uma asa sem par, sem o corpo que lhe dá movimento? Uma asa solitária não voa, é uma cruel anedota do que um dia podia ter sido. É algo grotesco, terrível e inútil, como ele próprio.
A única coisa que pode voar, ou divagar, é a imaginação de Cleg. Útil para encher os espaços. Junto à mesa do costume, no café do costume, está um quadro que evoca uma paisagem bucólica. É nela que vemos Cleg com outros dois pacientes, imóveis em planície florida. Cada um esconde um pedaço de si próprio, o pedaço que lhes falta para serem inteiros. Cleg rebusca uma fotografia de uma prostituta nua e passa as mãos pelas linhas daquele corpo, ao qual adiciona diversos rostos. Eis a primeira revelação.
Será Dennis o produto de um trauma? Ou o único trauma terá já nascido com ele? De volta à infância, o pequeno Cleg faz diligentemente um favor à mãe. «Vai chamar o teu pai ao bar». Aí chegado, o deslocado rapazinho tem vários encontros imediatos com os adultos alcoolizados e algumas prostitutas (mais ou menos assumidas). Uma delas rasga-lhe pela primeira vez a imagem da mulher platónica.
Numa segunda memória, é deixado sozinho em casa, enquanto os pais fazem uma triste fuga ao quotidiano e se deslocam ao mesmo bar, para uma curta saída nocturna. O que lá se terá passado é mera especulação da criança negligenciada, aquilo que Dennis sempre foi e sempre será, seja qual for a sua idade.
A trama, real ou congeminada, prossegue. O pai renega a mãe. O pai é mal-encarado. O pai é quase violento. O pai chega tarde a casa. O pai não janta. O pai está sempre no bar. O pai ignora a mãe. O pai tem certamente uma amante. A amante é sem dúvida aquela mulher que conspurcou a inocência de Dennis. Por mais teias que o pequeno Spider faça, na amplitude do quarto, com fios de guita (e na imaginação) a verdade foge-lhe(nos). Não é isso, contudo, o que ele pensa. Spider, o cavaleiro andante, o menino inteligente que talvez assim fosse visto pela mãe apenas por ser diferente e por isso especial e por isso quem sabe, dizemos nós, dono de alguma patologia não-diagnosticada, julga estar na posse de todos os dados. Na penúltima noite, a mãe está diferente. Veste uma camisa de noite justa e quase transparente, revela o corpo de uma forma demasiado semelhante à mulher do bar, que tanto o perturbou (em diversos sentidos). Mas aquele corpo e aquela camisa e aquele amor não são para ele. Não são para Spider, que lhe penteia os cabelos. Que lhe ouve as histórias, que cuida dela, que a ama. Não. São, pelo contrário, para o pai. O mesmo que a maltrata. Que chega tarde a casa. Que não a valoriza. Que tem uma amante.
Podemos então perguntar o que foi, na verdade, vivido pelo pai e o que esteve apenas na mente de Dennis, o que equivale a ter sido «vivido» por este. A noite em que o pai se desloca com Ivone, a pretensa prostituta, para debaixo da ponte é um facto ou uma consequência da latente puberdade de Cleg? A noite posterior, na qual o progenitor vai mais longe, carregando uma embriagada Ivone para a cabana (até que ponto as divagações da mãe estariam alimentadas pelo álcool, padrão admissível numa dona de casa desesperada que tem apenas o filho como interlocutor?) será o escape perfeito para a mente traumatizada e potencialmente doente daquele menino, que ouve a sua mãe (a que ele imagina existir e não a real, seja lá o que isso for) dizer-lhe: «Vou procurar o teu pai» e nunca mais regressa?
Poderia aquela mãe, perfeita aos olhos do filho, objecto de um amor platónico por não possuir este outras ferramentas conscientes, abandonar o seu Spider? Não. Poderia no entanto esta ser vítima de um acto terrível por parte daquele pai tão horroroso, tão ausente, tão rival? Claro que sim. Sendo a opção mais rebuscada no plano «real», é no entanto a única possível no plano «Dennis». A mãe, decerto, foi até ao bar onde o pai estaria. Se o tivesse encontrado, teria vindo para casa. Se tal não ocorreu é talvez porque assumiu, tal como o próprio Spider, que este teria arrastado a pérfida amante para a cabana. Ao dirigir-se ao local para comprovar a teoria, o que terá acontecido? O pior possível, na mente de uma criança aterrorizada. O pai, monstro infame, matou a mãe com uma pá. A amante, bruxa malvada de todos os contos infantis, gargalhou maleficamente e juntos, dançando e rindo, bebendo e praguejando, como perfeitos vilões da história, enterraram a pobre e inocente mãe num buraco profundo.
Depois, como se nada fosse, o pai substituiu a mãe pura pela mãe pérfida. A princesa morta pela bruxa má.
Não existe qualquer prova de que Dennis esteja errado. Um qualquer conjunto de acções semelhantes a estas pode ter tido lugar. Mas esta versão não é mais plausível que outras, que sugerem o simples desaparecimento da mãe naquela noite, abandonando marido e filho. Ou, mais aceitável ainda, que tenha realmente encontrado o pai no bar e juntos tenham regressado a casa, alcoolizados e reconciliados.
É preciso não esquecer que tudo o que sabemos da personalidade dos adultos é-nos transmitido pelos olhos e mente parciais de uma criança de dez anos com possíveis patologias mentais. Na sua versão, a mãe admiravelmente pura jamais poderia envergar aquela camisa de noite. Não poderia, além disso, embriagar-se na companhia do pai naquele bar, onde todas as mulheres decadentes o faziam. Não poderia, sem dúvida, regressar a casa naquele estado. Para Dennis – e para nós se quisermos acreditar nele – a mulher que voltou para casa não pode, em nenhum plano mental, ser a mãe, mas antes uma madrasta, alguém sujo e vil, de conluio com o pai, que levou ao «desaparecimento» da mãe-virgem, a mãe santa que Dennis sempre conheceu e amou.
O Cleg adulto, estando aparentemente mais perto da «verdade», começa de forma contraditória a receber sinais desencorajadores. O contador de histórias, seu colega de residência, tem um estranho ataque, comprovador das palavras de Mrs. Wilkinson: «Não é de confiança». Nesse processo, parte-se um vidro, o frágil vidro da consciência e dos reflexos. Cleg apodera-se de um fragmento. E esse fragmento, o da sua existência, o elo que falta para a compreensão da história, poderá ser-lhe fatal. Existe uma parte da mente de Dennis que está afogada em Culpa. Algo correu mal e é esse algo que atormenta o pequeno Spider. A frágil teia que envolvia as copas das árvores de Sussex rompeu-se e Spider não consegue tecer outra. Pondera suicidar-se com esse fragmento, com esse que lhe grita a culpa, mas faz uma última tentativa. Entrega o elo perdido ao Médico, que lhe responde: «Estávamos à procura deste». O que o mundo exterior a Dennis procurava era a ordem considerada perfeita, o retalho que forma a realidade da maioria. Contudo, quando Cleg observa aquele puzzle esventrado, está perante outra coisa, que mais ninguém assimila. Uma imagem completa sim, mas estilhaçada sem remissão. E nenhum acto altruísta, nenhum pedido de ajuda ao Outro conseguirá remendar o que foi outrora quebrado.
Spider (adulto e criança) está agora entregue a si próprio, ou melhor, está agora conscientemente entregue a si próprio. No passado, vê-se obrigado a coabitar com os «assassinos da mãe» que procuram enlouquecê-lo, esconder a verdade evidente, aproveitar-se da sua fragilidade e inocência, querendo à força convencê-lo que tudo «está bem» e que aquela outra mulher «é a mãe». De notar que Dennis foge de casa, para longe daquele pai que não o entende e daquela mulher que bebe, pragueja, e se revela a todos os níveis leviana (a mãe dele nunca seria assim, pois não? Nem que para isso a imaginação entrasse em campo). Foge de casa, dizia, ao som de um «não te preocupes em voltar» que pode facilmente ser transformado em «volta aqui imediatamente». Uma vez lançada, a mente pode alterar tudo a contento.
Vejamos, se o pai não o quisesse de volta, não o procuraria na cabana, suposto local do crime. E contudo, Spider, cuja mente alberga esta versão das coisas, nunca busca na realidade as provas que o auxiliem. Nunca tenta desenterrar o corpo da mãe do ponto onde terá sido colocado, antes se deita sobre a terra em choro convulsivo e o mesmo se passa em adulto, quando poderia facilmente utilizar uma pá para revelar o que agora seria um esqueleto.
E não o faz por uma razão que procura não ser aparente, sendo-o todavia: receia ser desmentido. Receia não ter nada para desenterrar, o que revelaria (provaria) uma outra verdade.
Quando o pai o resgata, dispensando a sua evidente perturbação (e ao mesmo tempo confirmando-a dentro dos limites que possui) com um «tens de ter mais amigos, todas as crianças precisam de amigos», Spider atira um «desculpa» na direcção do suposto túmulo improvisado da mãe, com a mesma solenidade com que todas as crianças abordam os amigos imaginários, os únicos que Dennis possui.
A teia está tecida na mente, aquela que o obriga a honrar e vingar a memória da mãe (morta, desaparecida, desvanecida). O método escolhido é tão elaborado como o de uma viúva negra (e Dennis está, no seu plano muito próprio, viúvo de qualquer coisa). Utiliza os intricados fios de guita para tecer uma armadilha, que activa sem qualquer perturbação ou hesitação a partir do refúgio do quarto. Fio após fio, teia após teia, um passo depois do outro, o dispositivo acciona o gás do fogão, que silenciosamente retira a vida à mulher que vive com o pai. Mesmo que Dennis tenha repensado o seu ataque, mesmo que se tenha arrependido a meio, as coisas são como foram descritas pelo companheiro de residência, o idoso contador de histórias: «arrependeu-se a meio, mas estava já de cabeça presa e o acto consumou-se».
Poderemos sempre reflectir sobre o plano em que estas histórias foram contadas. Sobre a coincidência dos relatos. Sobre a efectiva presença desse «idoso» na casa de acolhimento. «Não ser de confiança», como descreve Mrs. Wilkinson, deve-se ao facto de este ser louco ou de simplesmente não estar ali?
Spider criança observa, enquanto o pai arrasta para o exterior o corpo da mulher. «Mataste a tua mãe», grita. Dennis parece afastar a nuvem de gás e de preconceito que o envolvia, ao menos os segundos bastantes para vislumbrar o verdadeiro rosto da mãe. Fica para sempre a dúvida, nas nossas mentes e na dele.
Quem era aquela mulher, para lá do rosto que tão facilmente mudava? Quem morreu às mãos de Spider?
Os fantasmas de Cleg recuperam o terreno que 20 anos de internamento pareciam ter conquistado. Quem o acorda é a mãe-prostituta com um maternal «toca a levantar», utilizado decerto vezes sem conta pela mãe-santa. Esta, contudo, exibe uma garrafa e uma mão suja de sangue – e quem diz sangue, diz sémen, muito semelhante ao que a dita prostituta enxotou para o rio depois do primeiro encontro com o pai (segundo a imaginação de Spider). Estará Cleg a ser acordado pela mãe «verdadeira» ou pela mãe «falsa»? Haverá alguma diferença?
Rapidamente a mãe deixa de o ser, para ser Mrs. Wilkinson. A mulher exterior, a mulher ameaça, a mulher fatal em todos os sentidos da palavra. A que pretendia despi-lo antes do banho. A que pretende revistá-lo, em busca das chaves perdidas, as chaves que ele roubou para abrir as portas da sua mente que teimam em permanecer encerradas. As portas sem fechadura. Quando Mrs. Wilkinson vai à rua, embrulha-se, claro está, na mesma gabardina de cor clara usada pela mãe na noite da fuga/morte/ ida ao bar.
Quando Cleg revista o quarto de Wilkinson, encontra, claro está, o mesmo casaco de peles usado por «Ivone» no encontro com o pai, debaixo da ponte.
Quando Spider planeia uma vez mais matar a «mãe falsa», de novo durante o sono (Dennis está agora traumatizado com o gás e «cheira-o» frequentemente nos locais mais improváveis), esta acorda, recuperando o rosto «real» de Mrs. Wilkinson, do mesmo modo que a «mãe falsa» recuperou no último momento o rosto «real» de «mãe-santa» e pergunta o que todos nós, inclusive o próprio Dennis «Spider» Cleg, pretendemos saber, sem nunca encontrar resposta: «O que foi que o senhor fez, Sr. Cleg? O que foi que o senhor fez?».
Dennis «Spider» Cleg não sabe. Nós também não.
O mundo exterior, porém, o «real», desconfia que foi algo terrível. Nós também.
Logo, Spider, para sempre enrolado na sua teia, é de novo conduzido à instituição psiquiátrica de onde saiu. «Não vou ficar aqui muito tempo», tinha ele profetizado no início.
Não é, certamente, um local seguro para Dennis.
Não existe um local seguro para Dennis.