Albert Camus

Viveu entre 1913 e 1960. Nascido na Argélia, tornou-se conhecido enquanto filósofo, autor, dramaturgo e jornalista. Vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1957, com apenas 44 anos, transformando-se no segundo galardoado mais jovem de sempre. As obras mais conhecidas incluem O Estrangeiro, «A Peste», «O Mito de Sísifo», «A Queda» e «O Homem Revoltado».

Albert nasceu na Argélia, à época colónia francesa, filho de pais humildes, pertencentes a um estrato social conhecido como «Pieds Noirs» (pés negros). Passou a infância num bairro pobre, tendo-se depois formado em Filosofia na Universidade de Argel. Estava já em Paris quando os alemães invadiram a França em 1940, no decurso da II Guerra Mundial. Ensaiou uma fuga, mas acabou por se juntar à Resistência Francesa, exercendo as funções de editor-chefe num jornal clandestino, chamado Combat. Finda a guerra, tornou-se numa celebridade e deu palestras um pouco por todo o mundo. Casou duas vezes e teve diversas aventuras extraconjugais. Politicamente activo, juntou-se à facção da Esquerda que se opunha ao ditador Estaline e à União Soviética totalitária. Tido como um moralista, simpatizava com o movimento anarco-sindicalista, apoiando múltiplas organizações que defendiam uma espécie de ideal europeu. Aquando da Guerra da Argélia (1954-1962), manteve-se neutro, defendendo uma nação multicultural e pluralista – ideias bastante controversas na altura, que lhe valeram a oposição da maioria.

A nível filosófico, as teses do autor contribuíram para o crescimento de uma corrente conhecida como «absurdismo». Embora alguns defendam que as obras deste são de carácter existencialista, Camus rejeitou sempre com firmeza esse carimbo.

 

Albert Camus nasceu a 07 de Novembro de 1913, num bairro social de Dréan (na altura conhecida como Mondovi), uma pequena cidade costeira da Argélia. A mãe, Catherine Hélène, era francesa com ascendência espanhola, das Baleares. Nunca conheceu o pai, Lucien Camus, um agricultor francês muito pobre, morto em combate em 1914, durante a I Guerra Mundial. Albert e a restante família passaram então por bastantes dificuldades e carências materiais. Camus era visto como um emigrante de segunda geração, numa Argélia integrante do território francês entre 1830 e 1962. O avô paterno, tal como muitos outros nesse tempo, tinha-se mudado para aquele país em busca de melhores condições de vida, durante as primeiras décadas do séc. XIX.

É então que surge o termo «pied-noir», gíria que designa os emigrantes franceses nascidos em território argelino. A identidade e o passado de carência tiveram importante influência na sua vida futura. Apesar disso, Camus era de forma efectiva um cidadão francês, estatuto que lhe facultava mais direitos que cidadãos de outras etnias.

É logo na infância que desenvolve o gosto pela natação e pelo futebol.

Influenciado e encorajado por um professor, Louis Germain, Albert beneficiou de uma bolsa de estudos em 1924, podendo assim prosseguir os estudos (ensino secundário) num liceu reputado, nos arredores de Argel. Em 1930, com 17 anos, foi diagnosticado com tuberculose, vendo-se forçado a ir viver com um tio, Gustave Acault, para não contagiar a família. Este era talhante e revelou-se outra grande influência na vida de Camus. Foi por esta altura que o autor ganhou interesse pela filosofia, sendo auxiliado e motivado pelo professor da disciplina, Jean Grenier. Ficou sobretudo impressionado com os clássicos gregos e Friedrich Nietzsche. As eternas dificuldades financeiras obrigavam-no a ocupar parte do dia em trabalhos menores e a manter-se um estudante intermitente.

Em 1933, inscreveu-se na Universidade de Argel e licenciou-se em Filosofia três anos depois. Manteve o inicial interesse em Nietzsche e descobriu Arthur Schopenhauer, cimentando as convicções no pessimismo e ateísmo. Na Literatura, revelou tendência para autores de cariz mais filosófico, como Stendhal, Herman Melville, Fiodor Dostoievski e Franz Kafka.

É também nesse ano que conhece Simone Hié, na altura companheira de um amigo e que mais tarde se transformará na sua primeira mulher.

Albert jogou como guarda-redes na equipa júnior do Racing Universitaire, entre 1928 e 1930. As noções de espírito de equipa, fraternidade e objectivo comum agradaram-lhe sobremaneira. Nas crónicas sobre os jogos, eram frequentes as referências elogiosas à sua paixão e coragem. Contudo, se por acaso tinha algumas ambições desportivas, estas desapareceram no momento em que contraiu tuberculose. Traçou então paralelos entre futebol, existência, moralidade e identidade pessoal. Segundo ele, a moral simples daquele jogo contradizia a complexa moralidade imposta por instituições autoritárias como o Estado e a Igreja.

Em 1934, com 21 anos, inicia uma relação com Simone Hié. Esta tinha desenvolvido uma dependência da morfina, droga que usava para aliviar as dores menstruais. O tio Gustave desaprovava a ligação, mas Albert casou-se com ela, convencido que iria ajudá-la a derrotar o problema. Pouco depois, descobre que a mulher se tornara amante do médico de família e acabam por se divorciar.

Camus aderiu ao Partido Comunista Francês (PCF) nos inícios de 1935. Julgava assim poder lutar com maior eficácia contra «as desigualdades entre europeus e nativos da Argélia» embora não fosse adepto do marxismo. Procurou explicar que «era possível encarar o comunismo enquanto rampa de lançamento e estilo de vida, que nos prepara para metas espirituais». Abandonou contudo o Partido no ano seguinte. Logo em seguida, aproveitando a fundação do Partido Comunista Argelino (PCA), muito focado nas questões da independência do país, aderiu ao mesmo, seguindo os conselhos de um dos seus mentores: Grenier. Tinha como tarefa principal dentro do partido organizar o «Théâtre du Travail» (Teatro dos Trabalhadores). Albert também sentia afinidade com o Partido do Povo Argelino (PPA), uma facção moderada de cariz nacionalista e anticolonialista. As tensões entre os dois partidos eram crescentes, levando à posterior rivalidade entre o mais estalinista PCA e o PPA. Camus foi então expulso do PCA por não concordar com as linhas orientadoras do mesmo. Todos estes episódios reforçaram a crença do autor na dignidade humana ao mesmo tempo que cimentavam a desconfiança deste em relação à burocracia orientada para a eficiência, em vez da justiça.

Manteve, apesar de tudo, a ligação ao teatro e renomeou o seu grupo «Théâtre de l’Equipe» (Teatro de Equipa). Alguns dos textos transformaram-se na base de futuros romances.

Em 1938, iniciou uma colaboração com o jornal de esquerda Alger Républicain, cada vez mais desagradado com a ideologia fascista, que estava em expansão por toda a Europa. Revelava também uma crescente antipatia pelo colonialismo autoritário francês, reflectido no tratamento rude dispensado aos árabes e restantes etnias. Contudo, a publicação foi banida logo em 1940 e o autor viajou até Paris de modo a iniciar as funções de editor-chefe no jornal Paris-Soir. Na capital, ficou próximo de terminar o «primeiro ciclo» de obras, dedicado aos temas do absurdo e do niilismo – o romance O Estrangeiro, o ensaio filosófico «O Mito de Sísifo» e a peça de teatro «Calígula». Cada ciclo incluía um romance, um ensaio e uma peça de teatro.

Pouco depois da chegada a Paris, o desenrolar da Guerra começou a afectar a vida normal em França. Camus voluntariou-se para o exército mas foi rejeitado por ter padecido de tuberculose. No momento em que os alemães marcharam sobre a capital, Albert colocou-se em fuga. Foi naturalmente dispensado do Paris-Soir e refugiou-se em Lyon, cidade onde casou com a companheira, a pianista e matemática Francine Faure, a 03 de Dezembro de 1940. Regressaram depois à Argélia, para a cidade de Oran, onde o autor começou a dar aulas em escolas primárias. A tuberculose, porém, obrigou-o a mais uma mudança de planos e de território, refugiando-se então nos Alpes franceses a conselho médico. É lá que inicia o «segundo ciclo» de obras, desta vez sobre o tema da Revolta – o romance «A Peste» e a peça de teatro «Les Justes». Por volta de 1943, começou a beneficiar da reputação das obras do «primeiro ciclo» e regressou a Paris, onde se tornou amigo de Jean-Paul Sartre. Inseriu-se então num grupo de intelectuais, que incluíam Simone de Beauvoir, André Breton, Boris Vian e outros, como a actriz María Casares, com quem o autor mais tarde iniciaria um caso amoroso.

Camus teve papel activo no movimento de resistência clandestina contra a ocupação alemã. Exerceu funções de editor e jornalista no entretanto banido Combat, servindo-se de um pseudónimo e de um bilhete de identidade falso, para evitar a captura. Continuou a escrever artigos para esse jornal após a libertação. É também durante essa fase que escreve o livro «Cartas a um Amigo Alemão», onde explica os motivos que justificam a resistência.

Após a Guerra, o autor permaneceu em Paris, na companhia de Faure, que deu à luz os gémeos Catherine e Jean, em 1945. Camus tinha agora uma enorme reputação, construída sobretudo nos anos da Resistência. Deu várias palestras em diversas universidades dos EUA e da América Latina, em alturas diferentes. Visitou igualmente a Argélia, mas logo regressou, desiludido com a progressiva repressão do colonizador francês, situação para a qual tinha alertado inúmeras vezes. Por esta altura, encerra o «segundo ciclo», através do ensaio «O Homem Revoltado». Nele, insurge-se contra o comunismo totalitário, optando por defender o socialismo libertário e o anarco-sindicalismo, atitude que lhe valeu o desagrado de muitos colegas e companheiros de geração em França, com destaque para o fim da amizade com Sartre. A ligação à esquerda marxista deteriorou-se ainda mais com a Guerra da Argélia.

Albert era também um convicto defensor da integração europeia, trabalhando para esse objectivo em diversas organizações secundárias. Destacam-se as duas que fundou, a primeira logo em 1944 – o CFFE (Comité Francês para a Federação Europeia), onde se declarava que a Europa «só poderá atingir o progresso económico, a democracia e a paz se as nações-estado se transformarem numa federação» – e a segunda em 1947/48 – o GLI (Grupo de Ligação Internacional), um movimento sindicalista de cariz revolucionário. Protestou ainda contra a intervenção soviética na Hungria e os ímpetos totalitários de Franco, em Espanha.

No campo da Filosofia, privilegiava o movimento surrealista e o existencialismo, por oposição ao niilismo e negativismo de André Breton.

A nível pessoal, o autor manteve inúmeros casos amorosos, destacando-se o mais conhecido e polémico, com a actriz espanhola María Casares. A mulher, Faure, sofreu bastante com a situação, tendo mesmo um esgotamento e sido hospitalizada no início dos anos 50.

Albert, com remorsos, retirou-se da vida pública e sofreu ele próprio uma ligeira depressão.

Em 1957, Camus foi informado de que a Academia se preparava para lhe atribuir o Prémio Nobel da Literatura. A notícia apanhou-o totalmente de surpresa, pois estava convencido que o vencedor seria André Malraux. Com 44 anos, tornava-se assim no segundo galardoado mais jovem de sempre, apenas batido por Rudyard Kipling, com 42. Logo após, começou a trabalhar na autobiografia, «O Primeiro Homem», numa tentativa de analisar a «aprendizagem moral». Virou-se também, e de novo, para o teatro. Fazendo uso do dinheiro recebido com o prémio, adaptou e levou à cena a peça «Os Demónios», baseada no romance de Dostoievski. Esta estreou em Janeiro de 1959, em Paris, com grande sucesso.

Nesta fase, tomou a decisão de publicar a título póstumo os trabalhos da filósofa Simone Weil, nas Edições Gallimard. Esta tinha-se revelado uma grande influência filosófica, pois o autor via nela o «antídoto» para o niilismo e considerava-a «o único espírito grandioso da nossa era».

Albert Camus morreu no dia 04 de Janeiro de 1960, com apenas 46 anos, num acidente rodoviário na aldeia de Villeblevin. Tinha passado o Fim de Ano na sua casa de Lourmarin, na companhia da família e do editor, Michel Gallimard (também com a mulher e filha). Francine, juntamente com as crianças, regressou a Paris de comboio, no dia 02 de Janeiro, mas o autor optou por apanhar uma boleia no carro de luxo de Gallimard. Durante a viagem, quando percorriam uma longa recta, parte integrante dessa estrada nacional, chocaram contra uma árvore. Albert, no lugar do passageiro, teve morte imediata e o editor faleceu poucos dias depois. A família deste último saiu ilesa do acidente.

Nos destroços do veículo foram encontradas 144 páginas pertencentes a «O Primeiro Homem». Camus estava convencido que esse texto, inspirado na juventude passada na Argélia, iria transformar-se na melhor obra. As cerimónias fúnebres ocorreram no cemitério de Lourmarin. O amigo de outrora, Sartre, homenageou-lhe o «obstinado humanismo».

O primeiro texto publicado pelo autor foi uma peça chamada «Révolte dans les Asturies», escrita em parceria com três amigos em Maio de 1936. Versava sobre a revolta mineira em Espanha, ocorrida em 1934, que tinha sido brutalmente suprimida pelo governo espanhol, redundando em cerca de 1500 a 2000 vítimas mortais.

Em Maio de 1937, completou o primeiro livro, «O Avesso e o Direito».

A obra de Camus divide-se em três ciclos, cada um deles formado por um romance, um ensaio e uma peça de teatro. O primeiro ciclo é acerca do Absurdo e é formado pelo romance O Estrangeiro, o ensaio «O Mito de Sísifo» e a peça «Calígula». O segundo ciclo aborda o tema da Revolta e é constituído pelo romance «A Peste», o ensaio «O Homem Revoltado» e a peça «Les Justes». O terceiro ciclo, dedicado ao Amor, tinha sido iniciado com as primeiras páginas do romance «O Primeiro Homem». Cada um dos ciclos baseia-se num mito pagão e em episódios bíblicos.

Os integrantes do primeiro ciclo foram todos publicados entre 1942 e 1944, embora o plano se tivesse iniciado muito antes, por volta de 1936. Nesta etapa, Albert procura questionar a condição humana, debater o mundo enquanto lugar absurdo e avisar a Humanidade para as consequências do Totalitarismo.

O autor iniciou os trabalhos do segundo ciclo numa visita à Argélia, nos finais de 1942, quando os alemães estavam já muito próximos do norte de África. Aqui, recorre ao mito de Prometeu, retratado enquanto humanista revolucionário, para salientar as diferenças entre revolução e rebelião. Analisa ainda vários aspectos relacionados com a metafísica do conceito de rebelião, a relação desta com a política e o papel de tudo à luz da modernidade, da História e da ausência de Deus.

Depois de galardoado com o Prémio Nobel, Camus decidiu reunir, rever e publicar um conjunto de crónicas pacifistas, distanciando-se do conflito entre França e Argélia, por considerar o tema demasiado emocional. Virou-se então para o teatro e para o terceiro ciclo, baseado na deusa Némesis.

Duas das obras foram publicadas a título póstumo: «A Morte Feliz» em 1970, que contém um personagem chamado Patrice Meursault, de certa forma semelhante ao Meursault d’ O Estrangeiro e «O Primeiro Homem», em 1995. O conteúdo da segunda levou a uma reavaliação das ideias de Camus acerca do colonialismo.

Os romances e ensaios do autor permanecem influentes e depois da morte deste assistiu-se ao incremento (e posterior queda) da chamada Nova Esquerda, em resposta ao colapso da União Soviética e quando era necessária uma alternativa ao comunismo. Albert é recordado pelo humanismo céptico e pela tolerância política, diálogo e defesa dos direitos humanos.


Novela publicada em 1942. O protagonista é Meursault, um emigrante na antiga colónia francesa da Argélia, que tem uma atitude indiferente perante a vida. Algumas semanas após o funeral da mãe, este mata um árabe anónimo na capital, Argel. O enredo está dividido em duas partes – o discurso de Meursault antes e depois do crime.

Camus deu por concluído o manuscrito inicial em meados de 1941, tendo a versão final incluído sugestões de André Malraux, Jean Paulhan e Raymond Queneau e sido publicada no ano seguinte, pela editora Gallimard. A edição foi limitada a 4400 cópias, o que impedia a obra de se tornar num bestseller. Apesar de ter surgido durante a ocupação nazi, não sofreu qualquer tipo de censura das autoridades da época.

O Estrangeiro ganhou depois popularidade em círculos ligados à Resistência, à conta do artigo publicado em 1947 pelo filósofo Jean-Paul Sartre, intitulado «Explication de L’Étranger».

Considerado um clássico do séc. XX, o livro ganhou os favores da crítica, devido à abordagem filosófica do autor (absurdismo e existencialismo) e estrutura sintáctica. O Le Monde elegeu a obra como a melhor do século e esta foi adaptada ao cinema por duas vezes, em 1967 e 2001. Existem ainda numerosas referências na cultura popular, quer na televisão quer na música, tendo esta sido recontada na perspectiva do árabe anónimo no romance de Kamel Daoud, «Meursault, Contra Investigação», publicado em 2013.

 

Enredo

 

Parte 1

Meursault é informado do falecimento da mãe, que vivia num lar de terceira idade, na província. Tira uns dias de folga para estar presente no funeral, mas não demonstra o tipo de luto ou desgosto que as pessoas à sua volta estão habituadas nestas situações. Quando lhe perguntam se quer ver o corpo da falecida, recusa e passa o velório a fumar e a beber café (com leite, em vez do habitual preto). No monólogo que estabelece com o leitor, grande parte dos comentários são acerca da idade dos presentes, quer no velório quer no funeral, que tem lugar num dia extraordinariamente quente.

De regresso à capital, Argel, Meursault encontra por acaso Marie, antiga secretária da empresa onde ele trabalha. Metem a conversa em dia, combinam dar um mergulho, assistem a uma comédia no cinema e por fim envolvem-se romanticamente.

Tudo isto ocorre no dia do funeral.

Nos dias seguintes, o protagonista aceita ajudar Raymond Sintès, um vizinho e espécie de amigo com fama de proxeneta, que alega trabalhar num armazém. Este pretende vingar-se de uma namorada árabe, pois está convencido que ela tem aceitado presentes e dinheiro de outro homem. Raymond pede a Meursault para que este escreva uma carta à rapariga, convidando-a a comparecer no apartamento do primeiro, de modo a que ele possa ter sexo com ela, antes de lhe cuspir no rosto e expulsá-la.

À medida que escuta o plano de Raymond, Meursault revela-se desprovido de qualquer tipo de empatia, sem nunca considerar que a rapariga poderá sair emocionalmente traumatizada daquele esquema. Aceita, por isso, escrever a carta. De uma forma geral, o protagonista é bastante indiferente a quem o rodeia. Quando sente alguma coisa, alterna entre interesse moderado e aborrecimento.

A namorada de Raymond acaba por visitá-lo num domingo de manhã, mas depressa é necessário envolver a Polícia na situação, pois este agride a rapariga com violência após ter sido esbofeteado por ela, no momento em que a expulsava. Pede então a Meursault para testemunhar e corroborar a infidelidade dela.

Este, mais uma vez, aceita. Raymond acaba por ser libertado com um simples aviso.

Entretanto, o patrão de Meursault pergunta se este gostaria de exercer funções numa filial que, em princípio, será aberta em Paris e Marie pergunta se ele quer casar-se com ela. Em ambos os casos, o protagonista responde que não tem opinião formada sobre o assunto, mas que está disponível para uma mudança ou para um casamento se tal for do agrado do interlocutor em causa.

Salamano, um idoso rezingão, vizinho de Meursault e Raymond, apercebe-se um dia da ausência do cão, um animal doente e maltratado. Embora mantenha para o exterior a mesma postura amarga e indiferente, não resiste a visitar Meursault algumas vezes, em busca de algum conforto e aconselhamento. Numa dessas conversas, Salamano, que confessa ter adoptado o cão para obter companhia depois da morte da mulher, comenta que certos vizinhos fizeram «comentários negativos» acerca de Meursault quando este enviou a mãe para um lar de idosos. O protagonista recebe com espanto estas notícias.

Raymond convida Meursault e Marie para um fim-de-semana na casa de praia de um amigo. Lá chegados, notam com desagrado a presença do irmão da ex-namorada de Raymond e de outro homem de origem árabe, que o tem seguido nos últimos tempos. O duo confronta-os e o irmão dela golpeia Raymond com uma faca, antes de fugir. Mais tarde, o protagonista opta por caminhar na praia, sozinho, já na posse de um revólver que retirou do alcance de Raymond, de modo a prevenir qualquer acto precipitado do amigo e nesse passeio encontra de novo o atacante. Algo desorientado e afectado por um iminente golpe de calor, Meursault prime o gatilho quando o outro volta a exibir a faca. O tiro revela-se fatal, mas este dispara outras quatro vezes, após hesitação. Não partilha com o leitor nenhuma razão específica para este comportamento, ou que espécie de emoções o atravessam naquele instante, confessando apenas sentir-se bastante incomodado com a luz intensa do sol e o calor extremo.

 

Parte 2

Meursault está agora na prisão. Mantém um comportamento indiferente e revela certa facilidade em adaptar-se a qualquer circunstância, tornando a estadia na cadeia mais tolerável. Com o tempo, habitua-se a estar confinado e longe de Marie, embora ganhe consciência a certa altura de que passou alguns dias a falar em voz alta, consigo próprio. Durante quase um ano, limita-se a dormir, a observar através da pequena janela do compartimento e a enumerar mentalmente todos os objectos do antigo apartamento, enquanto aguarda pelo julgamento em tribunal.

O protagonista admite sem dificuldade ter morto o árabe, logo, durante o julgamento, o advogado de acusação preocupa-se sobretudo em demonstrar a incapacidade ou recusa deste em chorar no funeral da mãe e menos com os detalhes do crime. Alega então que a calma e passividade de Meursault são a prova evidente de uma personalidade criminosa e vazia de arrependimento, pintando a imagem de um monstro gélido que merece sem dúvida morrer pelo seu crime. Perante o leitor, o acusado reconhece que nunca sentiu qualquer espécie de arrependimento por nenhuma das suas acções, uma vez que esteve sempre demasiado absorvido pelo momento presente.

Apesar do testemunho favorável de vários amigos e da esperança irrealista do advogado de defesa, Meursault é condenado à morte por decapitação.

Transferido para outra cela, este fica então obcecado com o destino que o aguarda e com o recurso entretanto apresentado, procurando imaginar um cenário no qual é possível escapar à sentença. Recusa por diversas vezes a visita do capelão, mas por fim este impõe a presença. O protagonista declara que não acredita em Deus e que não possui qualquer tipo de interesse no assunto, mas o capelão insiste em afastá-lo do ateísmo (ou talvez do apateísmo). Este acredita ainda que o recurso de Meursault será bem-sucedido embora explique que uma eventual libertação nunca terá o poder de eliminar nele o sentimento de culpa ou corrigir a relação com Deus. O prisioneiro responde então de forma irada, atacando a perspectiva do capelão sobre o mundo e o associado paternalismo. Garante que, ao ser colocado na iminência da morte, retirou inspiradas conclusões acerca da vida, situação que o colocou num plano mental superior ao do capelão.

Afirma também que, embora o que dizemos, fazemos e/ou sentimos possa alterar o tempo ou o modo, estamos de qualquer maneira condenados a morrer, portanto nada de facto importa.

Após a saída do capelão, Meursault reflecte com algum conforto no paralelismo existente entre aquela situação e a que decerto foi experienciada pela mãe, no lar de idosos, rodeada de morte e à beira da morte. Ao discutir com o clérigo, libertou-se de qualquer tipo de esperança, planos de fuga ou expectativa associada ao recurso, estando agora livre para receber «a benigna indiferença do universo». Dessa forma, conclui que foi – e ainda é – feliz. O derradeiro pensamento explica que a presença de uma multidão odiosa no momento da execução terá o poder de acabar, enfim, com a solidão que o atormenta e que estará, então, diante do final perfeito.

 

Personagens

 

 – Meursault – Imigrante francês na Argélia, que é informado da morte da mãe através de um telegrama. A relativa indiferença que revela perante a notícia comprova certo desapego emocional do ambiente que o rodeia, teoria reforçada noutros exemplos. Revela-se alguém honesto, sem medo de afirmar o que pensa, apesar das eventuais consequências. Embora desligado do mundo à conta da personalidade, admite uma certa afeição por Marie.

 – Mãe de Meursault – Enviada para um lar de idosos três anos antes da morte, tal como é referido nas primeiras linhas do enredo. À medida que o protagonista vê aproximar-se a hora da execução, estabelece um laço emocional com a mãe, ao concluir que também ela se rendeu a um universo desprovido de sentido.

 – Thomas Pérez – Noivo da mãe do protagonista, durante a estadia desta no lar. É ele que encerra a procissão, no funeral. Meursault descreve com apurado detalhe o esforço que este faz para concluir o percurso. Integra o leque de testemunhas no julgamento.

 – Céleste – Dono do café frequentado por Meursault. Outra testemunha.

 – Marie Cardona – Dactilógrafa, que em tempos foi colega de Meursault na empresa. Imediatamente a seguir ao funeral da mãe deste, encontra-o numa piscina municipal e no final do dia iniciam um relacionamento. A certa altura, pergunta-lhe se está apaixonado e noutra ocasião se gostaria que se casassem. Ele responde «não» à primeira pergunta e fica indiferente à segunda. Marie visita-o na prisão, mas é impedida de voltar uma vez que não são casados. Testemunha, também ela, no julgamento.

 – Salamano – Um idoso que dá frequentes passeios com o cão. Revela-se um dono cruel, embora ligado ao animal. Quando lhe perde o rasto, esconde com dificuldade o nervosismo e pede conselhos a Meursault. Outra testemunha.

 – Raymond Sintès – Vizinho de Meursault que maltrata a amante de origem árabe. O irmão e amigos desta tentam vingar-se. O protagonista é arrastado para o conflito e acaba por matar o irmão dela. Raymond e Meursault formam uma espécie de amizade e o primeiro é uma das testemunhas que procuram favorecê-lo no julgamento.

 – Masson – Dono da casa de praia para onde Raymond convida Marie e Meursault. Indivíduo despreocupado, que pretende apenas viver a vida e ser feliz. Mais uma testemunha.

 – Árabes – Grupo que inclui a amante de Raymond e supostos amigos. Todos eles se revelam anónimos, simbolizando deste modo a distância entre os colonos franceses e os nativos.

 – O Árabe – Irmão da amante de Raymond. Vítima mortal do gesto de Meursault, assassinado numa praia argelina.

 

Numa análise à obra, em 1956, afirmou Carl Viggiani:

À primeira vista, ‘O Estrangeiro’ aparenta ser uma obra extremamente simples, embora planeada e executada com aprumo. Trata-se, de facto, de um enredo denso e fértil, pleno de significados ocultos e qualidades formais. Seria preciso outro livro, pelo menos, para analisar de forma completa o significado e a forma que moldam ‘O Estrangeiro’.

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