Júlio Verne

Viveu entre 1828 e 1905. Foi romancista, poeta e dramaturgo. A sua colaboração com o editor Pierre-Jules Hetzel resultou na colecção «Viagens Extraordinárias», um conjunto de bem-sucedidos romances de aventuras, onde se incluem Viagem ao Centro da Terra (1864), «20 000 Léguas Submarinas» (1870) e «Volta ao Mundo em 80 Dias» (1872). Os enredos, sempre baseados em apurada investigação, decorrem quase todos na segunda metade do século XIX, aproveitando os avanços tecnológicos ocorridos nesse período.

Para além dos romances, escreveu múltiplas peças de teatro, contos, relatos autobiográficos, poemas, canções e artigos científicos/literários. As suas obras foram adaptadas ao cinema e à televisão, mas também à banda desenhada, teatro, ópera e videojogos.

Verne é considerado um autor de renome, não só em França como no resto da Europa, notando-se a sua influência em vários movimentos literários, como o surrealismo. Pelo contrário, no mercado anglófono viu-se associado aos géneros menores da ficção científica e da literatura infantil, situação que advém da reduzida qualidade das traduções e das versões mutiladas publicadas nesses países. Ainda assim, a sua reputação literária melhorou bastante a partir dos anos 80 do século XX.

Transformou-se no segundo autor mais traduzido no mundo, rivalizando com Agatha Christie e William Shakespeare. É por vezes apelidado de «pai da ficção científica», epíteto que partilha com H. G. Wells. O ano de 2005 foi declarado «Ano de Júlio Verne», assinalando-se desse modo o centenário da sua morte. Em 2010, foi o autor francês mais traduzido em todo o mundo.

 

Júlio Verne nasceu em Fevereiro de 1828, em Île Feydeau, uma pequena ilha artificial situada no rio Loire, parte integrante da cidade de Nantes. O pai, Pierre Verne, era advogado e a mãe, Sophie Allotte de La Fuÿe, era oriunda de uma família de navegantes e armadores, com ascendência escocesa. No ano seguinte, nasceu o irmão Paul e depois mais três irmãs: Anne (1836), Mathilde (1839) e Marie (1842).

Em 1834, com apenas seis anos, Júlio foi inscrito num colégio interno, em Nantes. A professora, Madame Sambin, ficara viúva de um capitão da marinha, desaparecido 30 anos antes e afirmava com frequência aos alunos que o marido naufragara em lugar desconhecido e haveria de regressar, à semelhança de «Robinson Crusoé», da sua ilha deserta e paradisíaca. A temática do «náufrago» acompanharia o autor durante a sua vida e seria utilizada por este em vários romances, nomeadamente «A Ilha Misteriosa» (1874).

Em 1836, Verne foi transferido para uma escola católica, obedecendo assim às convicções religiosas do pai. De imediato se destacou dos colegas em disciplinas como Geografia, Grego, Latim e Canto. Nesse mesmo ano, o progenitor adquiriu uma casa de férias na aldeia de Chantenay (hoje em dia arredores de Nantes), junto ao rio Loire. Ao recordar a infância, Júlio confessa um enorme fascínio pelo rio e pelos navios mercantes que o navegavam. Passou também alguns períodos de férias em Brains, na casa de um tio chamado Prudent Allotte, um armador reformado que dera a volta ao mundo e chegara a exercer o cargo de presidente da câmara de Brains entre 1828 e 1837. Verne entretinha-se longamente na companhia do tio, em especial com um jogo de tabuleiro chamado Jogo do Ganso, tendo mais tarde utilizado esse passatempo (e o nome do tio) em dois dos seus últimos romances: «Robur o Conquistador» (1886) e «The Will of an Eccentric» (1900).

Conta-se que em 1839, com meros 11 anos, o autor teria aceitado em segredo um lugar como moço de cabine no veleiro «Coralie», com o objectivo de viajar até às Índias Orientais e trazer um colar de pérolas à sua prima Caroline. Na primeira noite de viagem, o barco fez uma paragem na localidade de Paimboeuf, tendo Pierre Verne chegado mesmo a tempo de resgatar o filho e fazê-lo prometer que viajaria apenas «na imaginação».

Mais tarde, concluiu-se que o episódio foi largamente ficcionado pela primeira biógrafa do autor – a sobrinha – embora o relato possa ter sido inspirado por um acontecimento verídico.

Em 1840, nova mudança de casa, onde haveria de nascer a filha mais nova, Marie, em 1842. Na mesma altura, Júlio ingressou noutra escola religiosa. Um romance inacabado, «Um Padre em 1839», escrito na adolescência e o único da primeira leva a resistir à passagem do tempo, faz um relato sombrio da vida no seminário.

Entre 1844 e 1846, frequentou com o irmão o Lycée Royal (hoje conhecido como Lycée Georges-Clémenceau), em Nantes. Após terminar os estudos em Retórica e Filosofia, concluiu o Ensino Secundário em Rennes, tendo sido aprovado com a classificação «Suficiente», em Julho de 1846.

No ano seguinte, já com 19 anos, o autor começou a ponderar seriamente dedicar-se à Literatura, saindo-se com longos manuscritos à maneira de Victor Hugo – não só o já referido «Um Padre em 1839» mas também duas tragédias em verso, que chegou a concluir. O pai, no entanto, estava convencido que o filho, enquanto primogénito, nunca arriscaria sobreviver da Literatura, preferindo herdar o negócio de advocacia da família.

Nesse mesmo ano, Verne foi enviado para Paris, não só para dar início aos estudos de Direito, mas também (segundo consta) para se distanciar temporariamente de Nantes. A prima Carolina, por quem ele estava apaixonado, casou-se logo em Abril com Émile Dezaunay, um homem de 40 anos, com quem teria cinco filhos.

Após a curta estadia em Paris, onde passou nos exames do primeiro ano de Direito, o autor regressou a Nantes, de modo a recuperar energias para a etapa seguinte. Nessa fase, conheceu Rose Herminie Arnaud Grossetière, uma jovem um ano mais velha, tendo-se apaixonado intensamente por ela. Escreveu e dedicou-lhe mais de 30 poemas, tendo-a descrito num deles enquanto «loira e aliciente / alada e transparente». A paixão parece ter sido mútua, pelo menos durante algum tempo, mas os pais desta não viram com bons olhos o casamento da filha com um jovem estudante de futuro incerto, tendo-a casado em vez disso com um abastado proprietário de terras, dez anos mais velho, em meados de 1848.

O caso transtornou Júlio. Enviou uma carta alucinada à mãe, aparentemente escrita num estado de embriaguez, na qual, servindo-se de um teórico sonho, lamenta o seu destino infeliz. Este infortúnio amoroso terá marcado para sempre a vida e obra de Verne, uma vez que os seus romances incluem variados casos de jovens mulheres casadas à força, ao ponto de alguns estudiosos apelidarem tal característica de «complexo de Herminie». O incidente fez também com que o autor alimentasse um eterno ressentimento para com a sua cidade natal e respectivos habitantes, criticados num poema denominado «A Sexta Cidade de França».

Pouco depois, Verne abandonou Nantes, de novo rumo a Paris, já que o pai mantinha o desejo que ele terminasse os estudos em Direito e se iniciasse na profissão. Foi autorizado por este a alugar um apartamento mobilado, que partilhava com Édouard Bonamy, um estudante seu conterrâneo.

Chegou, no entanto, à capital numa fase de turbulência política: a Revolução de 1848. Em Fevereiro, o rei Luís Filipe I fora deposto e partira rumo ao exílio; pouco depois tomara posse o governo provisório da II República, mas os tumultos e as manifestações continuaram. Em Junho, ergueram-se barricadas nas ruas e o novo governo ordenou que a insurreição fosse esmagada. Quando Júlio entra na cidade, Napoleão III está prestes a ser eleito primeiro presidente da República, situação política que se manterá até ao novo golpe de 1851. Numa carta enviada à família, o autor descreve o estado calamitoso da capital, embora tenha garantido que o aniversário da Bastilha decorrera sem problemas significativos.

Verne serviu-se então do estatuto e influência familiares para se introduzir na sociedade parisiense. O tio aceitou iniciá-lo nos salões literários e o autor frequentava sobretudo os eventos organizados por uma amiga materna. Embora prosseguisse com os estudos em Direito, alimentava em paralelo a sua paixão pelo Teatro, escrevendo diversas peças. Admitirá mais tarde:

Estava muito influenciado por Victor Hugo, de facto, muito entusiasmado com a leitura e releitura das suas obras. À época, era capaz de recitar passagens inteiras de cor, embora preferisse acima de tudo o seu trabalho como dramaturgo.

Outra influência criativa chegava de um vizinho, um jovem compositor chamado Aristide Hignard, de quem Verne se tornou um bom amigo. É para ele que o autor escreverá alguns textos que serão transformados em canções.

As cartas para a família, neste período, abordavam sobretudo questões financeiras e a súbita aparição de violentas e repetidas cólicas estomacais, condição que o iria afligir ao longo da vida (hoje em dia acredita-se que Verne pudesse sofrer de colite e este sugeria que a doença teria sido herdada da família materna).

Indícios de um surto de cólera, em Março de 1849, aumentaram as suspeitas médicas sobre o caso. Seguiu-se outro problema de saúde em 1851, quando o autor sofreu a primeira de quatro paralisias faciais. As causas, que alguns diziam psicossomáticas, passavam afinal por uma inflamação no ouvido interno, embora a verdadeira razão para isso nunca tivesse sido descoberta.

Ainda nesse ano, Júlio foi convocado para o serviço militar, mas questões burocráticas acabaram por redundar na sua dispensa, que celebrou com alívio. Comentou com o pai: «Já conheces, papá, a minha opinião sobre o serviço militar e sobre esses criados de uniforme…é forçoso abandonar qualquer dignidade para ser capaz de cumprir tais funções». A postura convictamente pacifista do autor, para desencanto do pai, não sofreria alterações.

Apesar de escrever regularmente e frequentar os salões, Verne manteve-se aplicado no curso de Direito, tendo-se formado em Janeiro de 1851.

É nesses encontros literários que o autor conhece, ainda em 1849, Alexandre Dumas através de um amigo comum. Torna-se grande amigo do filho deste, também escritor, tendo-lhe mostrado a certa altura um manuscrito de uma comédia para teatro. Ambos trataram de rever o texto e o outro, falando com o pai, conseguiu que a peça se produzisse e fosse à cena no Teatro Histórico de Paris, em 1850.

Em 1851, Verne conheceu outro escritor, também de Nantes, chamado Pierre-Michel-François Chevalier (mais conhecido como «Pitre-Chevalier»), futuro editor do jornal «Le Figaro». Pitre-Chevalier estava interessado em artigos sobre Geografia, História, Ciência e Tecnologia, convencido que a estratégia para democratizar a Educação era utilizar uma prosa simples e/ou inserir a informação numa cativante história ficcionada. Júlio, que gostava bastante de investigação, especialmente em Geografia, encaixava como uma luva nas funções. Começou por escrever contos, de cariz histórico e aventureiro, tendo dois deles sido publicados ainda nesse ano. O segundo, que incluía uma narrativa aventureira, viagens e apurada investigação histórica, seria mais tarde considerado pelo autor «um primeiro sinal do estilo de romance que eu estava destinado a escrever».

O filho de Dumas apresentou-lhe Jules Seveste, o novo director do Teatro Histórico, rebaptizado Teatro Lírico. Seveste ofereceu-lhe um posto de secretariado, em troca de pouco ou nenhum salário. Apesar disso, Verne aceitou, já que o cargo lhe permitia escrever e produzir várias peças cómicas em colaboração, entre outros, com Michel Carré. Para celebrar as novas funções, o autor juntou mais dez amigos e fundou um grupo jantante de solteiros, os «Onze-sans-femme» (Onze Solteiros).

Durante algum tempo, o pai continuou a pressioná-lo para que este abandonasse a escrita e se dedicasse por fim à advocacia. O filho, em várias cartas, respondia que só poderia obter sucesso na Literatura. A insistência atingiu o nível máximo nos inícios de 1852, quando o progenitor decidiu oferecer-lhe, enquanto herança, o negócio familiar. Confrontado com o ultimato, Verne optou por seguir de uma vez por todas a via literária, tendo escrito outra carta a declinar a oferta e resumindo:

Estarei porventura errado em seguir as minhas convicções? É por saber quem sou que estou consciente do que posso vir a ser, um dia.

Nesta fase, o autor passava grande parte do tempo na Biblioteca Nacional, entregue à investigação necessária para as suas histórias e alimentando a paixão pela ciência e pelas mais recentes descobertas, sobretudo geográficas. É então que conhece o famoso geógrafo e explorador Jacques Arago, que apesar de cego (perdera por completo a visão em 1837), continuava a viajar frequentemente. Tornaram-se bons amigos e os relatos divertidos e originais do outro convenceram Verne a experimentar um recém-criado género literário: a literatura de viagens.

Em 1852, surgiram duas novas histórias na revista de Pitre-Chevalier: «Martin Paz», uma novela situada em Lima, e «Les Châteaux en Californie, ou, Pierre qui roule n’amasse pas mousse», uma comédia num acto recheada de atrevidas insinuações. Em meados de 1854, é a vez do conto «Master Zacharius», uma fantasia condenatória da exagerada ambição científica, logo seguido por «A Winter Amid the Ice», uma aventura polar cujos temas deixam já adivinhar os futuros romances do autor. A revista publica ainda alguns artigos científicos que, embora anónimos, são atribuídos a Verne. A colaboração deste é subitamente interrompida em 1856, no seguimento de uma discussão muito séria com Pitre-Chevalier, situação que se manterá até 1863, quando este último falece e a publicação muda de editor.

Ainda durante a colaboração com Pitre-Chevalier, Júlio começou a planear a criação de um novo género de romance, uma espécie de «romance científico», que lhe permitiria incorporar no enredo a imensa informação reunida nas suas investigações na Biblioteca. Terá partilhado a ideia com Alexandre Dumas, autor que tentara algo de semelhante num romance inacabado e que apoiou com entusiasmo o plano de Verne.

Nos finais de 1854, outro surto de cólera provocou a morte de Jules Seveste, o patrão de Júlio no Teatro Lírico e que se tornara, com o tempo, num bom amigo. Apesar do contrato em vigor ser de apenas mais um ano, Verne permaneceu ligado ao Teatro vários anos após a morte de Seveste, fazendo questão de concluir diversas produções. Continuou também a escrever peças e comédias musicais, embora a maioria nunca tenha sido levada à cena.

Em Maio de 1856, o autor deslocou-se até Amiens para apadrinhar o casamento de um conterrâneo seu amigo, Auguste Lelarge, com uma mulher local chamada Aimée du Fraysne de Viane. Hospedando-se com a família da noiva, formou amizade com todos e começou a sentir-se cada vez mais atraído pela irmã da noiva, Honorine Anne Hébée Morel, uma jovem viúva de 26 anos, mãe de duas crianças. Desejoso de encontrar estabilidade financeira, bem como oportunidade para cortejar Morel da melhor forma, aceitou de imediato uma oferta de trabalho do irmão desta, na área financeira. O pai de Júlio, embora inicialmente reticente, acabou por concordar. Reunidas as condições, Verne conquista enfim o coração de Morel e respectiva família, casando-se em Janeiro de 1857.

Dedica-se então ao novo emprego, enquanto corrector da Bolsa de Paris, abandonando o Teatro Lírico. Vê-se agora obrigado a despertar muito cedo, de modo a ter algum tempo para escrever antes de iniciar o dia de trabalho; nas poucas horas livres, mantém os encontros com o clube de amigos «solteiros», apesar de todos os 11 membros estarem por esta altura casados. Continua também a frequentar a Biblioteca, prosseguindo com as investigações científicas e históricas. Copia as informações para blocos de notas, reservados para eventual uso futuro, tendo mantido este sistema de trabalho durante toda a vida.

Em Julho de 1858, Verne e Aristide Hignard decidiram aproveitar uma oportunidade oferecida pelo irmão deste último: uma viagem marítima gratuita, entre Bordéus e a Escócia, com escala em Liverpool. Tratou-se da primeira expedição do autor ao estrangeiro e este ficou muito impressionado. No regresso, projectou um romance parcialmente autobiográfico, escrito nos finais de 1859, embora só publicado 40 anos mais tarde. Seguiu-se outra viagem em 1861, que levou o par de amigos até à Suécia e a várias regiões da Noruega. Hignard permaneceu mais algum tempo na Dinamarca, enquanto Júlio regressava apressadamente a Paris, sem no entanto conseguir chegar a tempo do nascimento do primeiro filho, em Agosto desse ano.

Entretanto, mantinha viva a ideia de criar um «romance científico», tendo mesmo começado a desenvolver um primeiro rascunho. Segundo o próprio, a inspiração chegava-lhe do «gosto pelos mapas e admiração pelos grandes exploradores do mundo». Tal redundou num enredo acerca de uma viagem por África, que haveria de se transformar no seu primeiro romance publicado: «Cinco Semanas em Balão».

Em 1862, através de um amigo comum, o autor conheceu o editor Pierre-Jules Hetzel, tendo-lhe apresentado o manuscrito. Hetzel, que já publicava nomes como Honoré de Balzac, George Sand e Victor Hugo, planeava há muito tempo a criação de uma revista literária de qualidade, na qual se publicasse ficção acessível que incorporasse informação científica. Considerou portanto Verne o colaborador ideal e aceitou publicar o romance, embora tenha sugerido alterações ao enredo, que foram aceites. Meras duas semanas depois, Júlio regressou com a versão final e o texto foi publicado em princípios de 1863.

De modo a garantir a colaboração do autor a longo prazo, Hetzel redigiu um contrato no qual se estipulava que Verne produziria três exemplares por ano, cujos direitos seriam comprados sem condições, a preço fixo. Júlio, diante da possibilidade de um salário estável e de um veículo de exposição para a sua escrita, aceitou de imediato. Dali em diante, a maioria dos seus romances seria publicada em fascículos na revista de Hetzel, antes de serem reconvertidos em formato livro, tendo-se de imediato seguido nova obra: «As Viagens e Aventuras do Capitão Hatteras» (1864/65).

Após a publicação da obra em formato livro, em 1866, Hetzel anunciou publicamente as intenções literárias e educativas das criações de Verne, explicando num prefácio que os livros do autor fariam parte de uma colecção intitulada «Viagens Extraordinárias», cuja intenção era «partilhar todo o conhecimento geográfico, geológico, físico e astronómico reunido pela ciência moderna, relatando assim, numa narrativa original, pitoresca e lúdica, a história do Universo». Já nos derradeiros anos, Verne haveria de confirmar as palavras do editor:

O meu objectivo tem sido descrever a Terra, mas com esta o Universo…e em simultâneo, atingir o máximo grau de beleza e estilo. Afirma-se que não é possível encontrar um certo estilo num romance de aventuras, mas isso é falso.

Admite, contudo, a extrema dificuldade da tarefa:

Decerto! A Terra é muito grande e a vida é muito curta! De modo a deixar obra completa, teríamos de viver 100 anos!

Hetzel teve influência directa em vários romances do autor, em especial nos primeiros anos da colaboração, já que o último estava tão satisfeito com o simples facto de ter encontrado um editor, que aceitava praticamente tudo o que lhe era sugerido. Por exemplo, quando Hetzel discordou da conclusão inicial de «Capitão Hatteras», na qual figurava a morte do protagonista, Verne escreveu um final completamente diferente, poupando a vida do capitão. Hetzel recusou também o texto seguinte, «Paris no Século XX», considerando que uma visão tão pessimista do futuro, associada à censura do progresso tecnológico eram temas demasiado subversivos para a revista em causa (o manuscrito, que se julgava perdido aquando da morte do autor, foi por fim publicado em 1994).

A relação entre ambos mudou bastante por volta de 1869, a propósito de um desacordo em relação ao manuscrito de «20 000 Léguas Submarinas». O autor tinha inicialmente concebido que a personagem do Capitão Nemo seria um cientista polaco, cuja vingança estaria direccionada aos russos, assassinos da sua família na Revolução Polaca. Hetzel, pouco inclinado a perder o lucrativo mercado russo, exigiu que Nemo tivesse como inimigo o submundo esclavagista, contexto que lhe permitiria ser considerado um herói universal. Verne, após argumentar veementemente contra a mudança, decidiu por fim encontrar uma solução híbrida, na qual o passado do capitão é mantido na sombra. No seguimento deste episódio, Júlio tornou-se bastante mais reservado no trato com o editor, aceitando receber sugestões mas rejeitando a grande maioria.

A partir daqui, começou a publicar pelo menos dois livros por ano. Entre os mais bem-sucedidos estão Viagem ao Centro da Terra (1864); «Da Terra à Lua» (1865); «20 000 Léguas Submarinas» (1869) e «Volta ao Mundo em 80 Dias» (1872). Verne podia agora viver da escrita, embora grande parte da fortuna tenha surgido com as adaptações para teatro das obras «Volta ao Mundo…» e «Miguel Strogoff».

Em 1867, o autor comprou um pequeno barco, o «Saint-Michel», depois substituído pelo «Saint-Michel II» e «Saint-Michel III», à medida que a situação financeira melhorava. A bordo deste último, viajou por toda a Europa. Tornou-se rico e famoso.

Em contraste, o filho, Michel Verne, casou-se com uma actriz contra a vontade paterna, teve dois filhos de uma amante menor de idade e afogou-se em dívidas, embora a relação entre ambos tenha melhorado com os anos.

Apesar de ter sido educado na religião católica, Júlio gravitava em direcção ao agnosticismo. Há quem encontre nos seus romances indícios disto mesmo, uma vez que a noção de Deus está presente, mas raras são as referências a Jesus Cristo.

Em Março de 1886, quando Verne voltava para casa, um sobrinho de 26 anos, chamado Gaston, disparou um par de tiros de pistola na sua direcção. A primeira bala falhou o alvo, mas a segunda atingiu-o na perna esquerda, alterando-lhe para sempre a mobilidade. O caso foi aparentemente mantido em segredo, mas o sobrinho foi condenado a passar o resto da vida num asilo.

Com a morte da mãe e do editor, Hetzel (falecido em 1886), Júlio começou a publicar obras mais soturnas. Em 1888, entrou no mundo da política e foi eleito para um cargo em Amiens, onde liderou diversos projectos inovadores e se manteve durante 15 anos.

Foi ainda agraciado com diversas honrarias em 1870 e 1892.

Em Março de 1905, já doente com diabetes crónica e complicações provocadas por um AVC que lhe paralisou o lado direito, o autor faleceu na sua casa de Amiens. O filho supervisionou a publicação de mais dois romances, após a morte do pai. A colecção «Viagens Extraordinárias» prosseguiu, mantendo o ritmo de dois títulos anuais, embora mais tarde tenha sido descoberto que Michel Verne terá adulterado significativamente essas histórias. As versões originais foram publicadas no final do século XX, pela «Sociedade Júlio Verne».

A grande obra do autor é a referida colecção «Viagens Extraordinárias», que inclui a totalidade dos romances (exceptuando os rejeitados «Backwards to Britain» e «Paris no Século XX», publicados em 1989 e 1994, respectivamente). Verne escreveu ainda diversas peças de teatro, poemas, canções e contos, para além de ensaios e outros textos académicos.

Iniciada a colaboração com Hetzel, Júlio foi recebido com entusiasmo pelas comunidades literária e científica, estando George Sand e Théophile Gautier entre os primeiros admiradores.

Apesar disso, a crescente popularidade entre leitores e apreciadores de teatro (em especial depois da bem-sucedida adaptação da obra «Volta ao Mundo em 80 Dias»), provocou uma alteração gradual nas opiniões da crítica. Esta considerava que o sucesso comercial de Verne transformava-o num mero contador de histórias, aprisionado num subgénero e incapaz de merecer o estatuto de «autor sério», digno de estudo académico.

Esta ausência de estatuto literário manifestou-se de várias formas, quer através de críticas negativas de outros escritores, como Émile Zola, quer através do desprezo a que foi votado pela Academia Francesa de Letras. O autor admite, numa entrevista:

A maior tristeza da minha vida é não ter obtido o meu lugar nas Letras Francesas.

Para Verne, que se considerava «homem de Letras e artista, com a existência dedicada a um ideal», o desprezo a que era votado, baseado em mera ideologia, era visto como a maior das ofensas.

Esta dicotomia entre bem-sucedido escritor comercial e autor desvalorizado pela crítica permaneceu após a sua morte. Os biógrafos destacam os graduais erros de percepção que transformavam Júlio em mera figura popular, esquecendo a sua importância enquanto escritor metódico. Com isso, as vendas dos livros originais caíram a pique, mesmo em França, dando lugar a versões adulteradas e adaptações para crianças.

Por outro lado, algumas décadas mais tarde, surgiu uma espécie de «culto de Verne», alimentado por um grupo crescente de académicos e jovens escritores, que levaram a sério o trabalho do autor, reconhecendo-lhe o valor literário e considerando-o influente nas gerações vindouras. Alguns deles fundaram a «Sociedade Júlio Verne», outros viriam a tornar-se figuras literárias respeitadas. A sua análise e consideração revelou-se de grande importância para o futuro.

Nas décadas de 60 e 70 do século XX, em grande parte devido a esta onda de estudos literários levados a cabo por conhecidos académicos franceses, a reputação de Verne voltou a atingir o topo, com diversas revistas literárias a publicarem ensaios sobre o autor e o seu trabalho. As obras são reeditadas, sem alterações ou infantilização. A partir daqui, o mérito de Júlio passou a ser reconhecido na Europa, tornando-o parte do cânone literário e alvo de múltiplos estudos académicos.

Nos países anglófonos, em especial nos EUA, o estigma prolongou-se durante mais algum tempo. Ao longo de todo o século XX, a maioria dos académicos reduziu o escritor a mero autor de literatura infantil e amador ingénuo no campo da ciência e tecnologia (apesar de fortes evidências em contrário), transformando-o numa espécie de «profeta» ou rival literário de autores como Edgar Allan Poe e H. G. Wells.

Esta opinião baseia-se sobretudo nas traduções de péssima qualidade que chegaram ao mercado nesse países e nas adaptações muito vagas feitas por Hollywood, que mancharam o contacto do público com a obra do autor. A situação começou a mudar nos anos 80, indicando que a reabilitação de imagem já experimentada na Europa estava a caminho.

A relação entre a obra de Verne e o género literário conhecido como ficção científica é dúbia. O autor, à semelhança de H. G. Wells, é com frequência considerado um dos «fundadores», mas sendo certo que a sua influência é inegável, também é verdade que vários outros o antecederam – Voltaire e Mary Shelley por exemplo – o que apenas comprova a dificuldade em definir este género literário.

Questiona-se, desde logo, se a obra de Verne deve ser considerada ficção científica, de todo. Há quem afirme que o autor «nunca escreveu uma linha sobre o assunto» e o próprio declarou múltiplas vezes que os seus romances não deviam ser associados ao género e que «não inventara nada». Em vez disso, o objectivo era «descrever o planeta e atingir um certo ideal de beleza estilística»:

A obra «Cinco Semanas em Balão» não pretende ser um romance sobre viagens de balão, mas sobre África. Tive sempre grande interesse em Geografia, História e Viagens e como tal quis fazer uma descrição romantizada do continente africano. Contudo, era impossível colocar as personagens a percorrer o continente de outra forma, portanto optei por introduzir o balão como meio de transporte. Na altura em que o escrevi, tal como agora, nunca acreditei na possibilidade real de transformar os balões em meios de transporte.

A par da reputação de Verne enquanto autor de ficção científica, está a famosa teoria de que este foi uma espécie de «profeta» do progresso tecnológico, já que muitos dos seus romances contêm referências consideradas fantásticas para a época, ainda que hoje em dia sejam banais. Embora a reputação seja antiga, em especial nos EUA, o consenso actual é de que existe grande exagero nessa afirmação.

Vários críticos consideram que as capacidades literárias do autor, associadas à tendência das crianças para agregarem aos livros informações que não estão lá, em muito contribuíram para o caso.

O próprio autor negou com veemência as suas pretensas capacidades de profeta, considerando as ligações estabelecidas «meras coincidências» e preferindo justificar a sua perspicácia com a detalhada investigação prévia: «Mesmo antes de me tornar escritor, já tinha o hábito de tirar inúmeras notas sobre qualquer livro, revista, jornal ou relatório científico que me viesse parar às mãos».

Entre os autores que se diz terem sido influenciados por Júlio Verne estão Marcel Aymé, Roland Barthes, Júlio Cortázar, Antoine de Saint-Exupéry ou Jean-Paul Sartre.


Romance clássico de ficção científica. Publicado inicialmente em 1864, foi depois reeditado em 1867. O protagonista é o professor Otto Lidenbrock, um excêntrico cientista alemão que acredita na existência de túneis vulcânicos ligados ao centro da Terra. Na companhia do sobrinho Axel e de um guia islandês chamado Hans, desce até ao interior de um vulcão inactivo, o famoso Snæfellsjökull. Nele, o grupo depara-se com vários perigos, incluindo desmoronamentos, furacões gélidos, um oceano subterrâneo e criaturas pré-históricas. Os três exploradores acabam por ser devolvidos à superfície através de um outro vulcão, este activo e localizado no sul de Itália (Stromboli).

A temática acerca de aventuras subterrâneas surgiu muito antes do romance de Verne, mas o que distingue e valoriza a obra do autor são os factos científicos rigorosos e a original contribuição para o subgénero da ficção científica relacionado com as viagens no Tempo – nomeadamente a existência de um reino pré-histórico em paralelo com o mundo moderno. O livro inspirou vários autores, incluindo Sir Arthur Conan Doyle.

 

Enredo

 

Tudo começa em Maio de 1863, na residência do professor Otto Lidenbrock, situada em Hamburgo, Alemanha. Ao desfolhar um manuscrito original em língua rúnica, acerca de uma saga islandesa, Lidenbrock e o sobrinho Axel descobrem uma anotação codificada junto do nome de um alquimista islandês do séc. XVI – Arne Saknussemm. Ao traduzi-la para inglês, lê-se:

Desce às crateras de Snaefells Jökull, acariciado pela sombra de Scartaris antes das calendas de Julho, oh corajoso viajante, pois atingirás desse modo o centro da Terra. Assim ocorreu comigo. Arne Saknussemm.

Lidenbrock arranca para a Islândia imediatamente, levando consigo o desconfiado Axel. Após uma rápida passagem pela Dinamarca, chegam à capital. Contratam um guia local, Hans Bjelke, um caçador de patos que fala dinamarquês e com a ajuda deste atingem o sopé do vulcão Snæfellsjökull.

Em finais de Junho, atingem o topo do mesmo e decidem mergulhar nas entranhas da Terra, gesto que os coloca diante de múltiplos perigos e fenómenos inexplicáveis. Tomando a certa altura o caminho errado, esgotam praticamente as reservas de água e Axel fica à beira da morte. Contudo, Hans consegue salvá-los ao descobrir um rio subterrâneo, cujo afluente recebe o nome «Hansbach», em honra do guia.

Ao seguirem o curso de água, os exploradores prosseguem a enorme descida, desaguando num mundo oculto. Constroem então uma jangada a partir de madeira milenar e partem à aventura. Em pleno mar subterrâneo, deparam-se com peixes pré-históricos e enormes répteis marinhos, que datam da Era dos dinossauros. Uma tempestade eléctrica ameaça destruir a embarcação e reclamar a vida dos passageiros, mas estes acabam por ser atirados para junto de um imenso cemitério de fósseis, onde descobrem ossos de animais milenares e o cadáver preservado de um homem.

Lidenbrock e Axel arriscam entrar numa floresta composta por vegetação primitiva. Nela, ficam abismados ao encontrar um ser humano pré-histórico e gigante, que vigia um grupo de mamutes. Com receio de serem descobertos, abandonam o local.

Exploram depois a costa marítima e a certa altura encontram uma passagem subterrânea assinalada por Saknussemm, agora bloqueada por um desmoronamento. O trio decide então rebentar a pedra com explosivos artesanais, recuando para uma distância segura, a bordo da jangada. No processo, deparam-se com um abismo sem fundo, situado do outro lado da rocha destruída, sendo arrastados pela corrente associada à medida que o mar é atraído pela enorme abertura. Sobrevivendo ao prolongado mergulho, notam que a jangada é de seguida impulsionada através de uma chaminé vulcânica, que os lança pelos ares. Quando recuperam a consciência, concluem que foram expulsos pelas acções do Stromboli, um vulcão situado numa ilha ao largo da Sicília.

Regressam à Alemanha, onde são acolhidos como heróis: Lidenbrock atinge o estatuto de melhor cientista da sua geração, Axel casa-se com a namorada, Gräuben, e Hans volta pouco depois à sua rotina islandesa, feita de paz e tiro aos patos.

 

Personagens Principais

 

 – Professor Otto Lidenbrock: um geólogo intempestivo, recheado de ideias mirabolantes.

 

 – Axel: sobrinho de Lidenbrock. Um jovem estudante, mais racional e cauteloso.

 

 – Hans Bjelke: caçador islandês, contratado como guia da expedição. Homem multifacetado e sereno.

 

 – Gräuben: Afilhada de Lidenbrock e interesse amoroso de Axel. Nascida em Hamburgo.

 

 – Martha: Governanta de Lidenbrock.

 

Um pensamento sobre “Júlio Verne

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